Opinião

CPC exige que se siga orientação da jurisprudência e dos precedentes

Autor

  • José Roberto Mello Porto

    é defensor público do Rio de Janeiro assessor jurídico da presidência do Supremo Tribunal Federal e presidente da Comissão em Estudos em Processo Civil da OAB/RJ.

27 de março de 2019, 6h05

Spacca
Jurisprudência é um daqueles conceitos com os quais temos contato tão logo iniciamos o estudo do Direito.

O advento do Código de Processo Civil de 2015 reaqueceu o tema, despertando, ainda, o interesse da comunidade jurídica para os precedentes judiciais. No entanto, embora se escute, cotidianamente, a menção aos institutos, percebe-se que o uso das expressões raramente é o mais adequado.

Na verdade, não é de todo simples conceituar jurisprudência. Pode-se extrair do termo duas noções.

A primeira diz respeito ao conjunto de decisões proferidas por um determinado tribunal sobre determinado assunto. Nessa linha, jurisprudência seria a reunião dos julgados a partir dos quais se compreende o posicionamento da corte acerca de uma matéria de relevância jurídica.

Por outro lado, sempre houve entendimento de que jurisprudência, tecnicamente, seria um posicionamento pacífico e reiterado de certo tribunal sobre um tema. Ou seja, nem todo conjunto de decisões atinge o patamar de qualidade (e quantidade) exigido para que se trata de jurisprudência.

Até esse ponto, chegava-se à época do código de 1973. O Código Fux, porém, não ficou silente a respeito.

O artigo 926[1] do atual diploma processual geral trata diretamente no tema. O CPC predicou a jurisprudência, assentando que para o apanhado de julgados merecer tal denominação deve ser uniforme (una), íntegro (mantida uma), estável (se mantenha por período razoável de tempo) e coerente (seja alvo de prestígio por parte dos membros da própria corte e dos julgadores a ela hierarquicamente subordinados).

A partir desse afirmado desejo do legislador, que nada mais reflete que a intenção constitucional de isonomia, e não se podendo ignorar que a jurisdição passa a ter um crucial papel uniformizador[2], haveria modificação no conceito de jurisprudência?

Parece que, para os que a reputam sinônimo da coleção de decisões do tribunal, existiria uma jurisprudência ruim ou desqualificada (aquela que não ostenta as qualidades do artigo 926) e outra, um degrau acima, boa ou qualificada, por ser uniforme e prestigiada.

Já quem prefere enxergar no próprio vocábulo um caráter qualitativo dirá que o código adotou tal concepção. A mudança é que, doravante, jurisprudência passa a ser apenas o posicionamento pacífico do tribunal, não necessariamente reiterado.

Isso porque a reiteração sempre foi meio para que se conseguisse afirmar que o entendimento era pacífico e, portanto, jurisprudencial. Hoje, a reafirmação ganha contornos residuais: são preceituados diversos instrumentos mais seguros e céleres para que se esclareça a interpretação legal reputada correta pelo tribunal — dentre os quais os incidentes fixadores de tese jurídica (incidente de resolução de demandas repetitivas, incidente de assunção de competência e julgamento de recursos repetitivos).

Na prática, quando se depara com uma decisão “isolada”, contrária à compreensão corrente, majoritária, do tribunal, a depender da noção que se adota acerca da jurisprudência, se estará diante de uma parcela da jurisprudência ruim, inconsistente, ou, para a segunda linha conceitual, de mera decisão, sem efeitos exoprocessuais relevantes.

Pois bem. Se jurisprudência é terminologia capaz de gerar polêmica, precedente é quase certeza de mau emprego vocabular.

Chega-se a ler, na praxe forense, que a jurisprudência do tribunal é tranquila em tal sentido, embora exista precedente em sentido diverso. Nada mais errado.

A doutrina acerca dos precedentes judiciais é, há tempos, desenvolvida nos países de common law, nos quais o respeito aos padrões decisórios funciona como pilar do sistema jurídico, especialmente com a evolução da compreensão da necessidade de se garantir segurança jurídica, chegou-se à teoria do stare decisis (et non quieta movere)[3].

Na tradição romano-germânica, contudo, o tema é relativamente recente. Após a Revolução Francesa, esperava-se que o Legislativo delineasse as normas de conduta com clareza e amplitude tais que bastaria ao Judiciário aplicá-las. Daí a famosa expressão de Montesquieu: juge bouche de la loi — o juiz seria mera boca que pronuncia a lei, em basilar atividade de subsunção.

Evidentemente, a previsão não se confirmou, em especial com a assunção do neoconstitucionalismo e, entre nós, do controle difuso de constitucionalidade. Tudo é muito claro até que um julgador afaste uma lei com base em princípios ou por suposta ofensa à Constituição Federal. Ressurge a insegurança jurídica, demandando solução diversa do moroso procedimento legiferante. Passa-se, então, à aproximação entre os dois sistemas, o que fez o civil law se debruçar sobre os precedentes.

O passo inicial é definir o que seria um precedente judicial.

De novo, um breve comparativo: no common law, precedente é, grossíssimo modo, uma decisão judicial que, por ter suas razões de decidir tomadas como fundamentação em casos posteriores, vem a ser alçada, involuntariamente, a patamar de influência, devendo ser observada a ratio decidendi a posteriori. Por isso é que, nos cursos de Direito em tais países, se dedica tanto tempo ao estudo de casos (case law).

Entre nós, essa noção está longe de ser natural. O conceito de precedente, palavra que, por quatro vezes, é expressamente mencionada pelo código, é fonte de larga divergência.

Uma primeira possibilidade é importar a noção anglo-saxã, pura e simplesmente. O problema é que, como dito, não há doutrina suficientemente sedimentada sobre o tema, soando irrazoável que o legislador tenha pretendido tamanha revolução com tão poucas menções.

Também é comum a consideração de que precedentes judiciais seriam alguns pronunciamentos que demandam observância obrigatória pelo juiz. Quais seriam essas decisões é a indagação seguinte, de onde emergem as mais diversas respostas, dentre as quais aquela que reputa como tal as eleitas pelo legislador no artigo 927 — um dos artigos mais aclamados do diploma processual.

Sua dicção não poderia ser mais simples: assevera que “os juízes e tribunais observarão” os seguintes entendimentos:

I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – os enunciados de súmula vinculante;

III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

A essa altura do campeonato, praticamente nenhum leitor acreditará que os juízes e tribunais efetiva e invariavelmente observarão tais decisões se não houver um mecanismo apto a controlar eventuais descumprimentos. O legislador também não foi ingênuo e garantiu que o juiz só pode deixar de seguir súmula, jurisprudência ou precedente se demonstrar sua superação ou a distinção em relação ao caso concreto a ser resolvido (artigo 489, parágrafo 1º, VI).

Assim, deveria funcionar o sistema de pronunciamentos vinculativos[4]: em havendo desrespeito, o pronunciamento judicial será nulo — basilar lição ignorada por 52% dos magistrados brasileiros, que afirmam discordar do dever de seguir súmulas e precedentes[5].

Some-se a isso outros instrumentos atribuídos a algumas das decisões mencionadas no artigo 927, como a possibilidade de julgamento liminar (artigo 332) e o manejo de reclamação (artigo 988). O tratamento, no entanto, não é nada homogêneo: por exemplo, as teses fixadas em incidente de assunção de competência não vêm mencionadas como hipótese autorizativa de tutela da evidência (artigo 311, II), sem motivo aparente[6].

A verdade é que o artigo 927, isolado de outros comandos legais, que outorgam eficácia e vinculatividade às decisões nele mencionadas, é insuficiente, quiçá desnecessário.

O melhor conceito de precedente judicial, no Brasil, é o de decisões que possuem eficácia vinculativa, sendo de observância obrigatória pelos julgadores em casos futuros análogos, porque a lei assim determina. O efeito prospectivo daquele julgamento é que o alça ao patamar de precedente, como sucede nos incisos I a III[7] do artigo 927.

Não existe interseção, portanto, entre a lógica do common law, onde há um histórico de julgamentos, e a do Direito brasileiro, em que pode bastar um julgamento histórico.

O panorama geral da questão colocada, então, é o seguinte: a jurisprudência é um gênero de decisões judiciais particularmente qualificadas, concentrando entendimentos pacíficos, seja porque reiterados (hipótese que tende a desaparecer), seja porque formados em procedimentos específicos, nos quais o debate é especialmente elaborado.

O ordenamento processual brasileiro, não à toa, é referência no Direito Comparado, encontrando saída sob medida para as necessidades geradas pelo novo perfil da atividade legislativa, incapaz de acompanhar todas as modificações sociais, e jurisdicional, empenhando significativos esforços para combater a litigiosidade repetitiva.

No common law, possível fonte de inspiração, o sistema de precedentes está calcado na eficiência e na humildade dos julgadores[8]. A eficiência está desenhada no código de 2015. Seu real funcionamento entre nós, porém, depende do segundo fator.


[1] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
[2] PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Jurisdição e pacificação: limites e possibilidades do uso dos meios consensuais de resolução de conflitos na tutela dos direitos transindividuais e pluri-individuais. Curitiba: CRV, 2017, p. 201.
[3] Na verdade, a doutrina dos precedentes e o stare decisis não coincidem quanto ao conteúdo nem quanto ao surgimento. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 29.
[4] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas: sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 97.
[5] Como revelou recente pesquisa sobre o perfil da magistratura, em que 52% dos juízes externaram não concordar em seguir a jurisprudência: https://www.conjur.com.br/2019-fev-11/juizes-entendem-nao-seguir-jurisprudencia-pesquisa
[6] Tanto que a doutrina admite a possibilidade (Enunciado 135 da II Jornada de Direito Processual Civil do CJF).
[7] Outras concepções são encontradas na doutrina, alegando-se que, no common law, precedente é sempre fruto de uma quebra de jurisprudência da corte, o que divorciaria a noção de súmula vinculante da de precedente.
[8] TUSHNET, Mark (trad. SIRANGELO, Flavio Portinho). Os Precedentes Judiciais nos Estados Unidos. Revista de Processo, vol. 218, Abr/2013, p. 102.

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