Controle pela criminalização

OAB-RJ critica condenação de DJ por gerir bailes funk e ter amigos traficantes

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26 de março de 2019, 15h50

Lamentar a morte de pessoas mortas na guerra às drogas e ganhar dinheiro com bailes funk não são indícios de que alguém esteja envolvido com tráfico de drogas. Por isso, a Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito da OAB do Rio de Janeiro repudiou a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de condenar o DJ Renan Santos da Silva, conhecido como Renann da Penha, a 6 anos e 8 meses de prisão por associação ao tráfico.

Renann da Penha, criador do tradicional Baile da Gaiola, foi absolvido em primeira instância. Para o juiz, não havia provas de que ele estivesse envolvido em crimes e suas publicações em redes sociais eram "manifestações da cultura cotidiana de quem reside numa comunidade onde há tráfico de drogas".

Mas, na quarta-feira (20/3), a 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ aceitou apelação do Ministério Público e reverteu a sentença. "Chamam a atenção fotos de possíveis pessoas mortas com referência de afeto e saudades", afirmaram os desembargadores, apontando que as menções indicam que o DJ teria ligações com traficantes. Além disso, os magistrados destacaram que "a confissão do próprio Renan de que organiza os bailes funk e recebe rendimentos através dessa atividade" era suficiente para provar que ele tem envolvimento com vendedores de entorpecentes.

Em nota, assinada por Luís Guilherme Vieira (presidente), José Ricardo Lira (vice-presidente) e Reinaldo Santos de Almeida (secretário-geral), a comissão da OAB-RJ critica as conclusões dos desembargadores.

"A teratologia do caso de emitir juízo de valor negativo em relação a alguém que demonstra afeto a pessoas que faleceram na falida guerra às drogas ou que possuem uma atividade econômica lícita vinculada a um estilo musical marginalizado pela classe dominante da sociedade salta aos olhos."

Os advogados lembram que o Estado brasileiro sempre controlou classes sociais por meio da criminalização de estilos musicais e representações culturais. Esse processo já teve como alvos a capoeira, o samba e, mais recentemente, o funk.

"A Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito manifesta a sua preocupação e repúdio ao uso do sistema de justiça criminal contra setores marginalizados da sociedade com a finalidade de reproduzir uma ideologia dominante em detrimento da cultura popular e, no uso de suas atribuições regimentais, em conformidade com os anseios da sociedade civil que está atenta e preocupada com o caso, declara que confia no Poder Judiciário no sentido de que os direitos e garantias fundamentais do cidadão Renan Santos da Silva serão respeitados e seu caso será reavaliado oportunamente nos Tribunais Superiores, como já indicado pela defesa técnica, a qual impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça", declaram os advogados.

Leia a nota:

NOTA DE REPÚDIO À CRIMINALIZAÇÃO DA ARTE POPULAR

O controle das classes sociais subalternas e marginalizadas pelo Estado brasileiro é realizado por intermédio de processo de criminalização cujo critério determinante é a posição de classe do “autor” e de sua cor de pele.

Nos idos do Século 20, dos batuques de candomblé e pernadas de capoeira da Pequena África, da zona do Cais do Porto até a Cidade Nova, tendo como capital a Praça Onze, verificou-se a repressão penal do samba e, de modo geral, das festas populares como o Carnaval, que passou a ser cada vez mais controlado e disciplinado pelo Estado, das ruas para o desfile em cortejo na Avenida. 

À medida que a indústria cultural transformou o samba em mercadoria a ser consumida pelas classes médias e altas, o funk surgiu como manifestação cultural popular marginal no Rio de Janeiro, ao lado do rap, de maior expressão em São Paulo.

O funk é uma espécie de crônica do dia a dia dos moradores dos morros e favelas cariocas, com especial destaque para o “proibidão”, que sofre criminalização por suposta “apologia ao crime”. 

Nos idos de 2013, o governo estadual na gestão Sérgio Cabral editou a Resolução 13, que impedia a realização de bailes funks nas comunicadas “pacificadas”, pois dava a última palavra sobre o evento para o comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Em seguida, a resolução foi revogada e devolveu-se aos órgãos competentes a aferição do cumprimento das normas gerais para a realização de eventos, como, por exemplo, o Corpo de Bombeiros.

Recentemente, o Decreto Municipal 43.219/2017, que condicionava a realização de evento à aprovação do gabinete do prefeito Marcelo Crivella, foi declarado inconstitucional por configurar censura prévia e violação à liberdade de expressão e de crença, sobretudo nas áreas culturais e religiosas de matrizes africanas.

No referido ano, foi apresentado projeto de lei, de relatoria do senador Romário, que pretende criminalizar o funk como “crime de saúde pública à criança, aos adolescentes e à família”.

Na última quarta-feira, dia 20, após o DJ Rennan da Penha, criador do “Baile da Gaiola” – que já reuniu dezenas de milhares de pessoas em seus eventos – ser absolvido em primeira instância por ausência de provas suficientes para sustentar um decreto condenatório, vez que se tratava de “manifestações da cultura cotidiana de quem reside numa comunidade onde há tráfico de drogas”, a Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça julgou procedente o apelo ministerial para condená-lo a seis anos e oito meses de prisão em regime inicialmente fechado pelo crime de associação ao tráfico, sob o argumento de que “chamam a atenção fotos de possíveis pessoas mortas com referência de afeto e saudades”, bem como “a confissão do próprio Rennan de que organiza os bailes funk e recebe rendimentos através dessa atividade (…)”. A decisão considerou suficiente a prova colhida, de forma a permitir a procedência do pleito ministerial de reforma da sentença absolutória.

A teratologia do caso, ao emitir juízo de valor negativo em relação a alguém que demonstra afeto a pessoas que faleceram na falida guerra às drogas ou que possua atividade econômica lícita vinculada a um estilo musical marginalizado pela classe dominante da sociedade salta aos olhos.

Isto posto, por meio de sua Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito (CDEDD), a OAB/RJ manifesta preocupação e repúdio ao uso do sistema de justiça criminal contra setores marginalizados da sociedade com a finalidade de reproduzir uma ideologia dominante em detrimento da cultura popular e, no uso de suas atribuições regimentais, em conformidade com os anseios da sociedade civil, que está atenta e preocupada com o caso, declara que confia no Poder Judiciário no sentido de que os direitos e garantias fundamentais do cidadão Renan Santos da Silva serão respeitados e o caso será reavaliado oportunamente nas cortes superiores, como já indicado pela defesa técnica, a qual impetrou habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça.

Luís Guilherme Vieira
Presidente da Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito

José Ricardo Lira
Vice-presidente da Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito

Reinaldo Santos de Almeida
Secretário-geral da Comissão de Defesa do Estado Democrático de Direito

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