Anuário da Justiça

"Juiz só deve agir na afirmação de direitos em posições contramajoritárias"

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23 de março de 2019, 7h07

Spacca
Em um país cujo sistema observa estritamente o que está indicado na lei, o julgador só encontra uma possibilidade de adotar interpretação expansiva: para afirmação de direitos fundamentais de minorias sem representação no Legislativo. Fora disso, configura-se o ativismo judicial. Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça Luís Felipe Salomão, esse é o limite que deve ser observado em meio ao “muro das lamentações” em que se transformou o Judiciário brasileiro.

“Minorias nunca vão conseguir ver o seu direito reconhecido no parlamento, justamente porque são minorias. Então, quando se fere um dos direitos fundamentais da minoria, é o Judiciário que, adotando uma posição contramajoritária, potencializa esse direito. Aí se justifica uma interpretação expansiva da lei. Do contrário, não”, exemplifica Salomão, em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2019, com lançamento previsto para maio.

O ministro avalia que a judicialização das relações sociais pode quebrar o sistema se não for otimizada através de soluções extrajudiciais e mecanismos estabelecidos pelo Código de Processo Civil de 2015. Salomão acredita que o Judiciário, sempre avesso a mudanças, está no momento de mudança de mentalidade. Inclusive na maneira de reagir à sua recente popularidade, ao buscar a “virtude da média” e se preocupar com o impacto da opinião pública sobre as decisões de primeiro grau.

Os elogios vão para atuação do Tribunal Superior Eleitoral durante o conturbado período eleitoral em 2018, marcado pelo uso das fake news. “A natureza da rede social é: ela se regula. Ela que vai dizer o que é falso, o que é verdadeiro, quem acredita no que. O juiz não está ali para isso. Está para, na propaganda eleitoral, manter a igualdade no pleito, manter nível do debate, mas não para dizer o que é certo e o que é errado”, defende.

Leia a entrevista:

ConJur — O Judiciário por vezes é chamado a deliberar sobre questões que influenciam e até alteram política pública. Qual é o limite a ser observado?
Luís Felipe Salomão —
A questão do ativismo é real e às vezes é confundida com processo de judicialização, onde o Judiciário vive uma espécie de muro das lamentações, e aí é preciso tentar entender isso e separar o joio do trigo. O Judiciário, em um país como o nosso, de legalidade estrita, onde você tem que seguir a lei — diferente dos países da common law, onde são os precedentes, é o Direito Consuetudinário. No nosso caso, é legalidade estrita: interpreta a lei e aplica ao caso concreto. Claro que não é a boca inanimada da lei, como se queria, mas ele é o intérprete dentro da lei. Não pode sair da lei. E se justifica ele dar uma interpretação mais expansiva quando é um caso de afirmação de direitos fundamentais em posições contramajoritárias. 

ConJur — Como assim?
Luís Felipe Salomão —
Por exemplo: determinadas questões que envolvem minorias e que mexem com direitos fundamentais. Essas minorias nunca vão conseguir ver o seu direito reconhecido no parlamento, justamente porque são minorias. Então quando se fere um dos direitos fundamentais da minoria, é o Judiciário que, adotando uma posição contramajoritária, potencializa esse direito. Aí se justifica uma interpretação expansiva da lei. Do contrário, não. Fora dessas hipóteses, a interpretação tem que ser circunscrita aos limites e às balizas da lei. 

ConJur — É como uma proteção.
Luís Felipe Salomão —
O ponto X da questão é esse: direitos fundamentais em posições contramajoritárias, em que as minorias não encontram respaldo no parlamento. Aí é hora de o juiz atuar. 

ConJur — E como compreender o processo de judicialização? Por exemplo, casos envolvendo saúde suplementar.
Luís Felipe Salomão —
É um fenômeno que precisa ser tratado como política judiciária. Você precisa entender por que essas causas estão vindo parar no Judiciário, porque vai dar alteração na conta final do produto. Todo setor que fica muito judicializado implica custo, repasse. Precisa entender o fenômeno e tentar solucioná-lo.

ConJur — Tem como apontar alguma causa específica para isso?
Luís Felipe Salomão —
Essa judicialização das relações sociais vem num crescente a partir de uma Constituição analítica onde se restabeleceu a redemocratização do país, onde era preciso renumerar os direitos e onde resolveu-se colocar o Judiciário como guardião dos direitos. É um fenômeno que aconteceu no país — aconteceu no mundo em menor escala, mas aqui por alguns motivos, entre eles a falta de política de soluções fora do Judiciário. Temos componentes que agravaram essa crise. Esse processo de judicialização precisa ser otimizado. Do contrário, vamos ter situação de colapso, porque vai chegar uma hora que não vai ter condição de dar vazão a essa quantidade de demandas. 

ConJur — É um sistema condenado.
Luís Felipe Salomão —
O sistema vai colapsar. Estamos começando a trabalhar soluções que sejam efetivas. O CPC criou alguns mecanismos: IRDR, soluções extrajudiciais, filtros nos tribunais. É preciso programar essas ações para que essa desjudicialização aconteça, que é o caminho natural. Chegamos ao pico, a tendência é encontrar formas para que o Judiciário trabalhe com razoabilidade, com segurança, e não aos borbotões.

ConJur — O país está culturalmente preparado para assimilar a cultura de precedentes?
Luís Felipe Salomão — 
Estamos exatamente no momento do câmbio. O Judiciário é muito avesso a qualquer mudança. Ela é sempre mais difícil, porque é um sistema muito baseado em ritos, procedimentos. Qualquer alteração mexe muito com o sistema. Mas a velocidade com que o mundo moderno, hoje, exige essas mudanças faz com que Judiciário acelere seu ritmo. É exatamente o momento do câmbio. As universidades começam a preparar profissionais não só mais vocacionados para o litígio individual, hoje tem demandas coletivas, tem as soluções extrajudiciais, que abrem flanco novo, o próprio sistema judicial. Se você não trabalhar na faculdade o overrulling e temas que eram específicos do Direito da common law, o profissional está incompleto. 

ConJur — Há uma nova geração sendo formada com essa mentalidade.
Luís Felipe Salomão —
Como todo momento de mudança, não é instantâneo. Olha-se para trás, vislumbra-se o que fez de errado, se situa no presente e olha-se o futuro em perspectiva para tentar caminhar. Esse é o momento da mudança de mentalidade. Estamos introduzindo temas completamente novos para nós: o Direito da jurisprudência, direito à segurança jurídica, precedentes estáveis, coerentes. Está se abrindo porta para as soluções extrajudiciais, mediação, arbitragem, mundo novo para o advogado. Estamos trabalhando com ferramentas de tecnologia, inteligência artificial, todo mundo complemente diferente. Está preparado? Tem que estar preparado para ir caminhando na direção dessa mudança. Não é instantânea. 

ConJur — O senhor já se manifestou favorável a uma série de soluções extrajudiciais para coibir a judicialização de alguns temas. Os exemplos internacionais são apontados. No Brasil, há essa abertura para coloca-las em prática?
Luís Felipe Salomão —
Nesse ponto estamos também no momento da virada. Começamos muito tarde com esse movimento. Outros países já desenvolvem tribunais multiportas, mediação, avaliação de terceiro neutro, júri simulado, arbitragem. Outros países fazem há muito tempo como política pública ao Judiciário. Para você ir à Justiça é caro, porque se convencionou que tem que esgotar outros meios antes de acessar a máquina judiciária. Então é cultural. Como começamos tarde, agora temos ferramenta legislativa: marco legal da mediação, ampliação da lei de arbitragem, que pegou no Brasil e funciona bem, tem o novo CPC, que estimula. É momento da curva, em que estamos rompendo o rubicão para implementar. Acho que a mediação privada, soluções privadas — não estou falando dos Cejuscs — fora do Judiciário tende a se desenvolver.

ConJur — O Judiciário hoje vive um momento de popularidade, em que é alvo do escrutínio do cidadão. Qual é o efeito de estar sob os holofotes?
Luís Felipe Salomão —
Na minha geração, assistimos muito a uma cobrança sobre transparência ao Judiciário. Vínhamos de um processo de um regime fechado, onde o Judiciário não prestava contas, não tinha que dar satisfação. Cobrava-se muito: falava-se da caixa preta, de ser transparente, se comunicar mais. E aí foi-se abrindo, por exigência da sociedade, a ponto que chegou no outro extremo: hoje se fala demais, tem a questão do ativismo. É momento de voltar pro meio termo e encontrar a virtude da média. Precisamos ser transparentes e prestar contas, mas não significa ser juiz ativista ou falar fora do processo. Significa voltar para sua atividade principal, que é composição de conflitos, de interesses.

ConJur — A transmissão dos julgamentos tem algum efeito sobre isso?
Luís Felipe Salomão —
Fiz pesquisa boa sobre esse processo de visibilidade nos principais países do mundo. Foquei na parte de televisionamento de julgamentos, e aí segreguei um pouco. O julgamento das cortes supremas é uma tendência mundial. É impossível, hoje, não ter transparência nos julgamentos. A questão não está propriamente nas cortes superiores, a questão está nos julgamentos em primeiro grau, onde a primeira decisão é proferida sob o calor da opinião pública, que sofre a influência nítida da mídia na transmissão daqueles fatos do julgamento. 

ConJur — É preciso analisar as consequências.
Luís Felipe Salomão —
É esse estudo que sugeri que fizéssemos. Já há indicativos de que, nessas circunstâncias, a pressão que se pode exercer é pressão que pode comprometer a lisura da transparência do julgamento, e é preciso saber como dosar isso. Outros países já adotam algumas medidas. Se houver realmente influência no júri e no juiz, e isso ficar demonstrado, realmente pode chegar a anulação de julgamento. É preciso tentar entender como isso está se desenvolvendo no mundo das redes sociais, é preciso ter prudência na condução do tema.

ConJur — Como o senhor avalia a atuação no TSE durante o conturbado período eleitoral?
Luís Felipe Salomão — 
Foi experiência interessante porque, como você sabe, o STJ fornece dois ministros titulares e dois suplentes. E o suplente mais antigo, que fui eu, participei da propaganda eleitoral. Foi experiência muito interessante, porque tivemos que enfrentar essa coisa completamente nova, que foram as notícias falsas e o impacto disso para a propaganda eleitoral, onde, a despeito do que acabou se falando — de que “comeu solta”, que atrapalhou — eu tenho visão completamente diferentes disso e não é em causa própria. 

ConJur — Qual é a visão?
Luís Felipe Salomão —
No futuro, o debate eleitoral vai ser feito fundamentalmente em rede social. Prova disso foi agora. Televisão teve pouca influência. Se nós começarmos a limitar o debate para o juiz dizer o que é certo e o que é errado, vamos estar cerceando a própria democracia. Esse experimento foi bom. A natureza da rede social é: ela se regula. Ela que vai dizer o que é falso, o que é verdadeiro, quem acredita no quê. Juiz não está ali para isso. Está para, na propaganda eleitoral, manter a igualdade no pleito, manter nível do debate, mas não para dizer o que é certo e o que é errado. Foi essa postura que tomamos desde o começo, e tenho certeza que hoje, olhando para trás, foi com muito acerto, porque se resolvêssemos interferir no processo, viraríamos protagonistas, e não os próprios candidatos. Estou convicto que acertamos na mão.

ConJur — Tenho a impressão de que a percepção do público é justamente o contrário: de que o Judiciário agiria para impedir a propagação de fake news.
Luís Felipe Salomão —
Esse foi o erro, a falsa percepção de que o Judiciário participaria desse tipo de ação. Quando chegamos ali na propaganda, dissemos: 'Não. Nós vamos, aqui, equilibrar o jogo da propaganda oficial nos meios de comunicação. No resto é propaganda que os candidatos têm que talvez criar autorregulação'. Não é o juiz que vai dizer o que é certo e o que é errado. 

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