Opinião

A aplicação excepcional do princípio da bagatela imprópria na violência doméstica

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21 de março de 2019, 6h12

O Superior Tribunal de Justiça sumulou o entendimento de que é inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas (Súmula 589). O princípio da insignificância, aqui, abrange tanto a bagatela própria (princípio da insignificância propriamente dito) quanto a bagatela imprópria.

A partir daí, podemos concluir que, no âmbito da Lei 11.340/06, sempre haverá necessidade da pena. E é neste ponto que discordamos. Nem sempre o sempre se faz presente.

Em regra, na seara dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a bagatela imprópria não é admissível. Porém, vislumbramos situações excepcionalíssimas em que a norma bagatelar merece incidência. Na prática, deparamo-nos com casos em que, apesar do desvalor da conduta e do desvalor do resultado, a pena mostra-se absolutamente desnecessária. Trata-se de casos típicos de perdão judicial.

Para tanto, é preciso que estejam presentes, no caso em apreço no juízo competente, os seguintes requisitos cumulativos:

1. Que tenha sido praticada uma contravenção penal
Apesar de não existir diferença ontológica entre crimes e contravenções penais, entendemos que a admissibilidade da bagatela imprópria apenas para os “crimes anões” prestigia a axiologia realizada pelo legislador e confere critérios objetivos ao magistrado, evitando que a liberdade jurisdicional conduza a violação do princípio da proporcionalidade em sua vertente de vedação da proteção deficiente.

2. Que a contravenção penal tenha sido praticada de forma unissubsistente (um único ato)
Não se trata de desistência voluntária ou arrependimento eficaz (artigo 15 do Código Penal), pois o delito estará consumado. Trata-se de valoração do modus operandi. Se alguém pratica vias de fato de forma plurissubsistente, a reprovabilidade de seu comportamento é maior e isso evidencia a necessidade da pena.

3. Que, no caso, fosse possível a continuidade da agressão ao bem jurídico tutelado, a despeito de já consumada a infração, mas que o agente tenha interrompido voluntariamente sua conduta
A infração já está consumada, mas, podendo o autor prosseguir sem repercussão criminal do ponto de vista do número de delitos, decide não continuar. Trata-se de estímulo a não continuidade da agressão e de diferenciação de condutas que recebem igual capitulação, sejam uni ou plurissubsistentes, apesar de terem gravidades diversas.

4. Que seja o primeiro registro formal ou notícia informal de delito perpetrado pelo agente
Os três primeiros requisitos colocam os olhos sobre o fato, já o quarto tem por objeto o autor. É necessário analisar qual o histórico formal e informal do comportamento do agente para que se conclua sobre a necessidade ou não da pena. A oitiva da vítima em audiência de instrução e julgamento é imprescindível.

5. Que não existam registros de delitos imputados ao autor após o fato em apreço
Mais uma vez, nosso foco está no autor e ressalto que não se trata de direito penal do autor, mas da análise da necessidade da pena ou não. A inexistência de registro posterior ao crime demonstra que o fato delitivo foi um episódio isolado na vida do agente, e não uma mudança comportamental iniciada na infração em apreço. Caso haja registros de outras condutas delitivas posteriores ao fato em apreço, conclui-se que a sensação de impunidade tem incentivado a continuidade da vida ilícita, que não há arrependimento pelo fato praticado e que é necessária célere punição.

6. Que haja notório arrependimento do auto do fato
A partir da oitiva da vítima, de testemunhas e, especialmente, do interrogatório do acusado, é possível verificar se o próprio processo penal e as consequências da vida foram suficientes para incutir no autor arrependimento pelo feito, o que dificultará a prática de novas infrações penais (arrependimento como efeito preventivo especial).

7. Que tenha ocorrido o restabelecimento da relação harmônica entre as partes
A partir do sétimo requisito, colocamos nossos olhos sobre a vítima. Consideramos a vítima e a necessidade de sua proteção para avaliar a possibilidade de concessão do perdão judicial. Como se tratou de contravenção penal isolada, nunca antes e nunca depois praticada, cometida de forma unissubsistente e as partes restabeleceram a relação de forma harmoniosa, temos que houve a superação do episódio pela vítima;

8. Que exista descendente incapaz em comum entre as partes
Aqui, a aplicação do perdão judicial considera também o princípio da prioridade absoluta da criança e do adolescente (artigo 227, caput, do Código Penal) e guarda íntima relação com o novo requisito.

9: Que o risco de prejuízo à vítima e ao incapaz seja superior ao caráter educativo, punitivo e preventivo da pena
Consideramos, neste ponto, o interesse da vítima e do incapaz com prevalência sobre o fato. Pensamos ser o requisito mais importante para aplicação da bagatela imprópria. Trata-se de prestígio ao mundo do ser. No caso, houve o restabelecimento da relação entre as partes, elas têm descendente incapaz em comum, o fato foi isolado, não há notícia de fato semelhante anterior ou posterior ao delito e o prejuízo para a vítima e para o incapaz com a punição do autor supera o benefício educativo, preventivo e de justa punição do agente. A vergonha do processo penal já exerceu todas as funções da pena.

10. Que a distância entre a data do fato e a data da sentença seja superior a um ano
Considerando todas as particularidades da situação em análise, que exige a presença dos nove requisitos acima colacionados, a relativa morosidade reforça a absoluta desnecessidade da pena. Dado todo o contexto, o lapso temporal superior a um ano faz com que a pena perca indubitavelmente sua razão de ser.

Concluo: defendemos que o princípio da bagatela imprópria não deve ser aplicado, em regra, aos crimes cometidos na seara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Mas, em situações excepcionalíssimas, quando presentes os dez requisitos descritos acima, o magistrado deve promover a superação episódica da Súmula 589 do STJ e conceder o perdão judicial. Ainda, destaco que nada impede que a opinião do autor deste artigo evolua em qualquer sentido. Encontro-me aberto para tanto.

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    é juiz de Direito substituto do TJ-DF, ex-delegado da Polícia Civil de Goiás, professor de Direito Penal, mestrando em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás.

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