Opinião

Candidaturas eleitorais fictícias e a proteção jurídica insuficiente

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21 de março de 2019, 7h07

Nada obstante o evidente intento constitucional de igualdade e equilíbrio entre os gêneros (CF, artigo 5º, I), lamenta-se que o Congresso Nacional conte com tão poucas mulheres. Dos 513 deputados federais atuais, as mulheres são apenas 77, ou 15% do total. O Censo de 2010 indica que elas representam 51,03% do povo brasileiro[1]. Já por esse dado, mostra-se evidente que a Câmara dos Deputados não espelha uma tradução direta da nossa sociedade. É enorme o fosso de representação, que, considerados os objetivos e as garantias constitucionais (CF, artigos 1º, I e 3º, III e IV), é dever do sistema jurídico eliminar.

No cenário global, nesse quesito, a posição do Brasil é vexatória. Na classificação internacional de participação de mulheres no parlamento, estamos na 133ª colocação[2]. A Argentina, que ocupa o 18º lugar nesse ranking, no último dia 8 de março elevou a cota de participação feminina naquele país para 50%[3]. Estamos longe disso.

Para mudar esse quadro, há de se mencionar os esforços legislativos envidados a partir da Lei 9.504/96, que fixou a reserva de candidaturas à proporção de 30% para cada sexo (artigo 10, parágrafo 3º). Esforços que foram somados à interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal a essa cláusula, no recente julgamento da ADI 5.617/DF. Nele, entre outras determinações, ficou expresso o comando de “equiparar o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (hoje o do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997, isto é, ao menos 30% de cidadãs), ao mínimo de recursos do Fundo Partidário a lhes serem destinados, que deve ser interpretado como também de 30% do montante do fundo alocado a cada partido, para eleições majoritárias e proporcionais”. Também o de “(b) fixar que, havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do partido destinados a campanhas lhes seja alocado na mesma proporção”.

Em obediência a essas ordens, o Tribunal Superior Eleitoral deixou explicitadas tais obrigações no artigo 19, parágrafos 3º e 4º, da Resolução 23.553/17, que regeu o pleito de 2018. Mais ainda: deixou assentado que o gênero de que se está a cuidar é aquele autodeclarado pelo indivíduo, desafetado do determinismo biológico (Consulta 060405458).

É um começo que, todavia, se revela trôpego e com necessidade de urgentes providências buscando evitar que uma norma que busca dar consistência aos preceitos constitucionais isonômicos não venha a ser esvaziada, perdendo sua efetividade. Diz-se isso em razão do noticiário mais recente, revelador de que muitas candidaturas femininas poderiam ser simulações, fraudes, fictícias, ou, em linguagem corriqueira, “de simples fachada”, “laranjas”. O propósito delas seria, primeiramente, o de cumprir uma formalidade legal, apresentando o número mínimo de registro de candidaturas femininas. Paralelamente, elas permitiriam utilizar indevidamente os recursos reservados do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC), recém-criado pela Lei 13.487, de 6/10/2017. Mulheres seriam formalmente candidatas, os valores do bilionário FEFC seriam despendidos com as candidaturas delas. Entrementes, os gastos, em realidade, seriam endereçados a candidatos do gênero masculino, ou a outros fins, havendo fortes indícios de locupletamento de uma verba pública.

Desponta, então, além do evidente machismo incrustado na dinâmica partidária, a tristemente notória capacidade de o ambiente político brasileiro desvirtuar recursos públicos. Cabe, a partir disso, perquirir se o sistema normativo nacional dispõe de ferramentas de defesa dos valores destinados a esse universo particular. A resposta que propomos é sim, existem, mas os meios são precários. Insuficientes, portanto.

Do ponto de vista moral, ao lado da repugnante cumplicidade de mulheres a essa fraude à política igualitária (a “laranja” é, necessariamente, uma mulher que aceitou se candidatar), sobreleva a indecência do desvio de fundos que são supostos como a garantia de que a democracia terá condições de ser exercitada. O FEFC, em si mesmo polêmico, porque destina recursos públicos para uma atividade privada — a campanha —, torna-se ainda mais difícil de ser sustentado quando parcela significativa de suas verbas são encaminhadas para destinos diversos daqueles indicados pela legislação regente. Tal constatação está a revelar, a mais não poder, a necessidade de revisão da oportunidade e conveniência de um fundo oficial com tais características, de dificílima fiscalização, administrado por particulares, muitas vezes encastelados em carcomidas estruturas partidárias, nas quais vigora o mandonismo e o caciquismo.

Do prisma estritamente cível-eleitoral, o descumprimento objetivo, formal, da cota feminina pode levar ao indeferimento do registro de todas as candidaturas da coligação ou do partido, acaso este esteja competindo de forma isolada. Avistam-se precedentes do Tribunal Superior Eleitoral nesse norte (AgR-REspe 1.684-14, REspe 29-39 e o REspe 214-98, entre outros). Mas os aludidos precedentes, como anotado, dizem respeito ao aspecto exclusivamente formal, quantitativo, nada avançando quanto a candidaturas fictícias. Para estas, há uma assombrosa dificuldade em seu reconhecimento pelos tribunais.

Existe, na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, o reconhecimento de que a ação de impugnação de mandato eletivo (REspe 149) e a ação de investigação judicial eleitoral (REspe 243-42) são meios processuais de identificação dessa fraude. Mas os sinais jurisprudenciais são todos no sentido da confusão entre o aspecto formal/quantitativo e o material/fraudulento. Há entendimento pretoriano no sentido de que, pelo simples fato de a candidata haver sido votada, não há qualquer fraude subjacente à candidatura. Nesse sentido, em sede regional, já se decidiu que “o fato de candidatas alcançarem pequena quantidade de votos, ou não realizarem propaganda eleitoral, ou, ainda, oferecerem renúncia no curso das campanhas, por si só, não é condição suficiente para caracterizar burla ou fraude à norma, sob pena de restringir-se o exercício de direitos políticos com base em mera presunção”[4]. Independentemente das características da espécie julgada, na qual o TRE-RS assinalou que houve efetiva, mas infrutífera busca de votos, se esses fundamentos invocados (a não realização de propaganda/campanha, a renúncia e os poucos votos), em tese, não são aptos a caracterizar uma candidatura fictícia, é difícil imaginar o que a revelaria.

Houve, recentemente, um caso em que o TRE-SP reconheceu a fraude e derrubou toda a chapa[5]. No entanto, a decisão foi suspensa pelo TSE (AC 0600489-52), que ainda não apreciou o recurso em Plenário (REspe 0000409-89.2016.6.26.0031). No episódio mencionado, segundo o acórdão paulista, as próprias candidatas admitiram que não fizeram campanha, que foram convidadas apenas para cumprir a cota. Contudo, a decisão cautelar suspensiva ponderou que a situação reclamaria melhor análise, pois “poder-se-ia discutir se a fraude realmente partiu da agremiação, que registrou as candidatas sem o respectivo consentimento, ou se as próprias candidatas, à revelia do partido, decidiram apenas se registrar e não efetuar gastos arrecadação ou gastos de campanha nem/ou veicular propaganda eleitoral”. Isso implica dizer que não há precedentes de cassação, por esse específico motivo, no âmbito do TSE, até o presente momento. Vale dizer: a sanção civil, até este instante, é nula, na prática.

Na leitura do fenômeno, há de se perquirir sobre a efetiva realização de campanha. Se houve atos praticados nela, sendo despesas uma revelação disso. Há que se notar, porém, que também estas podem ser fraudadas. A candidatura, em si mesma, pode ser a base para o desvio de recursos da sua finalidade legal. Daí que a prova deva ser feita no sentido da confirmação da realização da campanha, da participação efetiva na propaganda eleitoral em rádio e televisão e de atos públicos, nas ruas ou nas redes sociais. Vê-se, pois, que mais que o aspecto contábil (notas fiscais e contratos), próprios das prestações de contas, falta à legislação exigir das candidaturas a demonstração inconteste de que existiu campanha, omitindo-se a lei quanto a tais exigências, facilitando a ocorrência da fraude examinada.

Supondo, porém, que fiquem superados esses óbices práticos e normativos e seja provada a inexistência de campanha real, demonstrada, por conseguinte, a candidatura fictícia, para além das punições eleitorais próprias, a serem perseguidas em sede de Aije e Aime, tem-se a dificuldade de delimitação de quem deve sofrer as consequências da infração: se a candidata “laranja”, se todos os membros da chapa, se o partido/coligação, se todos juntos. Há insuficientes elementos normativos de precisão dos destinatários da sanção, que, evidentemente, não pode ultrapassar a pessoa dos culpados. Outra lacuna normativa fica patenteada.

Sob o vértice eleitoral-penal, é imperioso apurar a existência de infração penal punível. A primeira aparente possibilidade de enquadramento típico seria a do delito de falsidade ideológica eleitoral, previsto no artigo 350 do Código Eleitoral. Há, contudo, acertados precedentes que indicam a atipicidade do registro de candidatura pro forma, haja vista que nenhuma declaração é formalmente falsa e o comportamento não se enquadraria em nenhum tipo incriminador específico. Nesse sentido, afirma a jurisprudência do TSE que “é atípica a conduta de candidata que, com a única intenção de satisfazer o percentual legal de 30% de inscrição do sexo feminino, registra a candidatura, mas não promove campanha”[6].

Também do prisma criminal, avista-se o novel o tipo etiquetado no artigo 354-A do Código Eleitoral: “Apropriar-se o candidato, o administrador financeiro da campanha, ou quem de fato exerça essa função, de bens, recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral, em proveito próprio ou alheio. Pena – reclusão, de dois a seis anos e multa”. Cuida-se de crime próprio, pois somente pode ser praticado pelo candidato regularmente registrado para disputar mandatos eletivos, pelo administrador financeiro da campanha ou quem exerça essa função. Assemelha-se ao crime de peculato-apropriação (artigo 312, 1ª parte, Código Penal), cuja pena máxima é de 12 anos, mas dele se distancia exatamente no preceito secundário, apesar da semelhança de proteção do bem jurídico patrimônio público.

Para exemplificar a anomalia, a pena máxima para quem desvia de forma vergonhosa milhares de reais do FEFC, valendo-se de “laranjas” e inviabilizando o fortalecimento das mulheres na política é de 6 anos, enquanto para o administrador que não prestou contas adequadamente de R$ 1 mil de um convênio é de 12 anos. Além disso, falta ao tipo penal eleitoral a presença do elemento “desvio”, presente no peculato do CP, o que, nada obstante a referência do artigo 354-A à apropriação para terceiros, pode gerar vácuo de incidência da norma penal incriminadora em situações de reprovação manifesta. Há, por fim, uma situação existencial de elevação da culpabilidade quando referida apropriação indébita ocorre justamente nas candidaturas femininas. Tal percepção, contudo, não se traduz em qualquer agravante, majorante ou qualificadora.

Tem-se, portanto, situação que fere de morte o princípio constitucional implícito da proporcionalidade. Para condutas que lesam primariamente o mesmo bem jurídico, penas potencialmente diversas. É incongruente. Isso mostra, também no plano penal, uma proteção jurídica insuficiente em uma situação de especial intento protetivo do legislador. Há, ademais, déficit na proteção da realização de eleições livres, eis que a apropriação de recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral é um ato atentatório ao Estado Democrático de Direito e à própria democracia[7].

A conclusão a que se chega é que existe um caminho longo a se percorrer na construção de uma representatividade adequada da sociedade brasileira no Congresso e que ela confronta com uma ideia de política como atividade privada[8]. Que mesmo com o advento de uma incipiente legislação protetiva e afirmativa, se não forem estabelecidas mais regras de tutela jurídica eficaz dessas políticas de incorporação, o avanço pretendido será prejudicado ou tornado inútil pela sempre robusta resistência dos grupos sedimentados nas posições de mando. É certo que existe bastante resistência venal à democratização dos espaços de poder, afinal, “na democracia brasileira, as eleições são um grande negócio”[9]. Mas esse enfrentamento em busca de aperfeiçoamentos nas funções de representação é inevitável, eis que não se deve esquecer que “a política é o único poder ao alcance dos que não têm poder”[10].


[1] https://brasilemsintese.ibge.gov.br/populacao/distribuicao-da-populacao-por-sexo.html. Consultado em 22/2/2019, às 11h36.
[2] http://archive.ipu.org/wmn-e/classif.htm. Consultado em 11/3/2019, às 8h56.
[3] Argentina aumenta cota de mulheres no Congresso para 50%. In: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/argentina-aumenta-cota-de-mulheres-no-congresso-para-50.shtml. Consultado em 11/3/2019, às 8h51.
[4] TRE-RS – RE: 78107 IBIRAPUITÃ – RS, Relator: DR. EDUARDO AUGUSTO DIAS BAINY, Data de Julgamento: 11/07/2017, Data de Publicação: DEJERS – Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 122, Data 13/07/2017, Página 6.
[5] TRE-SP – RE: 40989 CAFELÂNDIA – SP, Relator: MARCUS ELIDIUS MICHELLI DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 21/11/2017, Data de Publicação: DJESP – Diário da Justiça Eletrônico do TRE-SP, Data 27/11/2017.
[6] Recurso em Habeas Corpus nº 2848, Acórdão, Relator(a) Min. Gilmar Mendes, Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Tomo 229, Data 04/12/2014, Página 11-12.
[7] “Megaprincípio que transluz em cada um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (incisos I a V do art. 1º da Carta de 1988) e em toda cláusula pétrea explícita da nossa atual experiência constitucional (incisos I a IV do § 4º do art. 60 da mesma Constituição cidadã”. BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 183.
[8] “Há duas maneiras de fazer política. Ou se vive ‘para’ a política ou se vive ‘da’ política”. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução: Leônidas Hagenberg. 18ª ed., São Paulo: Cultrix, 2011, p. 78.
[9] SAAD-DINIZ, Eduardo. MARCOANTONIO, Jonathan Hernandes. Financiamento corporativo de campanha eleitoral: controle, transparência e integridade. Boletim Ibccrim, ano 23, nº. 266, p. 05.
[10] INNERARITY, Daniel. A política em tempos de indignação: a frustração política e os riscos para a democracia. Tradução: João Pedro George. Rio de Janeiro: LeYa, 2017, p. 18.

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