Opinião

A LGPD na saúde: a MP 869/2018 e os centros de pesquisa clínica privados

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20 de março de 2019, 6h27

Este artigo tem o objetivo de dar continuidade ao exame do impacto da Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, a chamada Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), na área da saúde, especialmente no que se refere à pesquisa clínica com seres humanos. Trata-se de sequência do texto publicado pela autora na ConJur em 2 de novembro de 2018, intitulado “Impactos da nova Lei Geral de Proteção de Dados na pesquisa com seres humanos”[1]. O intuito é analisar a repercussão da nova lei na rotina dos centros de pesquisa clínica brasileiros com natureza jurídica de direito privado e fins lucrativos, à luz do enfoque dado pela LGPD a órgãos de pesquisa.

A Medida Provisória 869, de 27 de dezembro de 2018, altera o conteúdo normativo da LGPD com o propósito de: “(i) excepcionar, condicionar ou adequar sua aplicação em situações específicas, como a pesquisa acadêmica, a formulação de políticas públicas ou a prestação de serviços por órgãos estatais ou por seus prepostos; e (ii) instituir a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão competente para regulamentar, interpretar e fiscalizar o cumprimento da referida lei, bem como, eventualmente, sancionar agentes responsáveis por seu descumprimento”[2].

Contextualizando, em 14 de agosto de 2018, foi sancionada pelo Poder Executivo a LGPD, publicada no dia seguinte. O texto foi inspirado no regulamento europeu relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (General Data Protection Regulation – EU 2016/679, ou GDPR, na sigla em inglês). A LGPD consolida princípios e normas esparsas e introduz inovações, tendo os seguintes fundamentos: o respeito à privacidade; a autodeterminação informativa; a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; a livre-iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

Em 27 de dezembro de 2018, já no recesso do Congresso Nacional e no final do mandato presidencial, foi editada pelo presidente Michel Temer a Medida Provisória 869/2018, que altera a LGPD. Além de versar sobre a proteção de dados pessoais, tem por objetivo a criação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), instituída como órgão integrante da Presidência da República, dotada de autonomia técnica e sem acarretar aumento de despesas. Conforme a MP 869/2018, a ANPD será composta de um Conselho Diretor, um Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, uma Corregedoria, uma Ouvidoria, um órgão próprio de assessoramento jurídico e as demais unidades administrativas necessárias ao exercício de suas competências legais.

A MP 869/2018 também equaciona a vacatio legis da LGPD em duas situações: quanto aos artigos relacionados à criação da ANPD (artigos 55A-K e 58-A), os efeitos jurídicos são imediatos, isto é, vigoram desde a data de publicação, em 28 de dezembro de 2018. Quanto aos demais artigos da LGPD, a MP aumenta o prazo original (de 18 meses) para 24 meses após a data de sua publicação, isto é, vigorarão a partir de 15 de agosto de 2020 (artigo 65 da LGPD).

Medida provisória é um diploma normativo com força de lei, editada pelo presidente da República por ser considerada pelo Poder Executivo de relevância e urgência. Apesar de produzir efeitos jurídicos imediatos, precisa da posterior apreciação pelas Casas do Congresso Nacional (Câmara e Senado) para se converter definitivamente em lei ordinária, sem estar sujeita a sanção ou veto presidencial. O prazo inicial de vigência e tramitação no Congresso é de 60 dias, in casu, até 4 de abril deste ano[3], podendo ser prorrogada automaticamente por igual período caso não tenha sua votação concluída.

Importa salientar, portanto, que a criação da ANPD, na forma como foi concebida, ainda não é definitiva. Atualmente, a MP 869/2018 encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, aguardando a instalação da comissão mista desde 20 de fevereiro. Essa comissão destina-se a examinar e emitir parecer sobre a matéria, antes de ser submetida aos Plenários da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (artigo 62, parágrafo 9º da Constituição Federal).

O prazo regimental para apresentação pelos parlamentares de emendas à MP 869/2018 encerrou-se em 12 de fevereiro de 2019, com um total de 176. Depois de instalada a comissão, são eleitos o presidente e vice-presidente e designados o relator e relator-revisor. Caberá ao presidente da comissão a prerrogativa de indeferir liminarmente as emendas apresentadas que forem estranhas ao texto original. Em seguida, o texto apresentado pelo relator será submetido à votação pelo colegiado, passando a constituir parecer da comissão mista, se aprovado.

Dentre as emendas apresentadas, interessa ao presente estudo a de número 120, submetida pelo deputado Silvio Costa Filho (PRB-PE), que pede a adequação do texto dado pela MP 869/2018 à definição de “órgão de pesquisa”, trazida pelo inciso XVIII do artigo 5º da LGPD. O parlamentar sugere a alteração da definição de órgãos de pesquisa, incluindo pessoas jurídicas de direito privado legalmente constituídas sob as leis brasileiras, sem restrição quando à finalidade lucrativa. O texto sugerido é o seguinte: “órgão de pesquisa: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico, estatístico ou de inovação”.

Ao passo que a designação oferecida pela MP 869/2018 à LGPD é o seguinte: “órgão de pesquisa: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico” (grifo da autora).

Restringir órgãos de pesquisa a pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos não parece razoável e não contribui para o progresso da ciência ou para o avanço da inovação no país. Deve ser permitido que instituições privadas com fins lucrativos possam realizar tratamento de dados pessoais e dados pessoais sensíveis no âmbito da LGPD, devendo, para tanto, se submeter ao marco legal, sob pena de deixar sem regramento órgãos de pesquisa com fins lucrativos (no caso, centros de pesquisa clínica privados) que já praticam pesquisa clínica em seres humanos. Portanto, a restrição imposta pelo inciso XVIII do artigo 5º da LGPD afeta a pesquisa clínica com seres humanos em que o tratamento de dados pessoais sensíveis relativos à saúde constitui a natureza essencial do negócio.

A Resolução 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, é o diploma normativo que rege a pesquisa clínica no Brasil, que estabelece preceitos éticos com fundamento em tratados de direitos humanos, documentos com natureza de soft law internacionalmente reconhecidos e direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. Ela qualifica, em seu item II.8, instituições de saúde que realizam pesquisas envolvendo seres humanos como “organização, pública ou privada, legitimamente constituída e habilitada, à qual o pesquisador responsável está vinculado” (grifo da autora).

Em pesquisa clínica, a instituição — um hospital público ou privado, com ou sem fins lucrativos — é onde a pesquisa é conduzida e dados pessoais sensíveis são tratados. Pode ser também uma clínica, que deve necessariamente estar conveniada a um hospital, para atendimento de eventos adversos (o hospital de referência ou de base). O médico responsável pela condução da pesquisa é denominado investigador principal. Instituição e investigador principal costumam ser denominados conjuntamente como centro de pesquisa (ou site, na expressão em inglês).

As instituições ou organizações de saúde nas quais se realizem pesquisas envolvendo seres humanos podem constituir um ou mais de um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), conforme suas necessidades e atendendo aos critérios normativos. Na inexistência de um CEP na instituição ou em caso de o médico pesquisador não possuir vínculo institucional, caberá à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) a indicação de CEP para proceder à análise ética da pesquisa.

Segundo dados apresentados pela Conep[4], existem 832 comitês integrados pelo sistema, que visam, especialmente, a proteção dos participantes de pesquisa do Brasil, de forma coordenada e descentralizada por meio de um processo próprio de acreditação. Sobre o total, 347 comitês encontram-se constituídos na região Sudeste. É pouco provável que todos estejam vinculados a instituições de saúde sem fins lucrativos, o que não deve prejudicar a interdisciplinaridade e independência dessas entidades.

Centros de pesquisa clínica privados, com fins lucrativos, podem prever em sua missão institucional ou em seu objeto social outras atividades além da pesquisa científica (ou pesquisa clínica experimental na área médica e farmacêutica), como, por exemplo, atividade médica ambulatorial em determinada especialidade. A inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) pode prever como atividade secundária “pesquisa e desenvolvimento experimental em ciências físicas e naturais”. Isso quando não se tratar de um hospital privado com fins lucrativos.

Daí a importância de ser acatada a emenda 120, que solicita a alteração do inciso XVIII do artigo 5º da MP 869/2018 para modificar a definição de órgãos de pesquisa, incluindo pessoas jurídicas de direito privado legalmente constituídas sob as leis brasileiras, não só as sem fins lucrativos, desde que tenham em seu objetivo social ou estatutário, além da pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico e estatístico, também de inovação.

Feita a adequação, órgãos de pesquisa, públicos ou privados, sem e com fins lucrativos, poderão tratar dados pessoais sensíveis relativos à saúde para a realização de estudos, garantida, sempre que possível, a anonimização desses dados. Poderão, ainda, ter acesso a bases de dados pessoais que serão tratados exclusivamente dentro do órgão e estritamente para a finalidade de realização de estudos e pesquisas, mantidos em ambiente controlado e seguro, conforme práticas de segurança previstas em regulamento específico. Devem incluir, sempre que possível, a anonimização ou pseudonimização dos dados, bem como levar em consideração os devidos padrões éticos relacionados a estudos e pesquisas. Relativamente à eliminação de dados pessoais após o término do tratamento, a LGPD autorizada a conservação para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória pelo controlador e para a finalidade de realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização.

Tal como mencionado, a criação da ANPD na forma como foi concebida pela MP 869/2018 não é definitiva, porque se encontra em apreciação pelo Congresso Nacional. Foram apresentadas 176 emendas à MP 869/2018. As que não forem indeferidas liminarmente pelo presidente da comissão mista serão apreciadas por intermédio do texto do relator, em votação pelo colegiado, passando a integrar parecer da comissão mista se forem aprovadas. Analisada pela comissão mista, o parecer pode concluir: (i) pela aprovação total da MP como foi editada pelo Poder Executivo; (ii) pela apresentação de projeto de lei de conversão (PLV), quando o texto original da MP é alterado; ou (iii) pela rejeição da matéria, com o parecer sendo obrigatoriamente encaminhado à apreciação do Plenário da Câmara dos Deputados, Casa iniciadora, para deliberação. Rejeitada, a matéria tem a sua vigência e tramitação encerradas e é arquivada. Se aprovada (na íntegra ou na forma de PLV), é remetida ao Senado Federal. No caso de aprovação da MP, a matéria é promulgada e convertida em lei ordinária pelo presidente da Mesa do Congresso Nacional, não sendo sujeita à sanção ou veto, como ocorre com os projetos de lei de conversão[5].

Enquanto a MP 869/2018 tramita no Congresso Nacional e a ANPD não for definitiva, outros órgãos ficam encarregados pela proteção de dados pessoais e dados pessoais sensíveis, por exemplo, a Comissão de Proteção dos Dados Pessoais do Ministério Público do Distrito Federal, iniciativa nacional dedicada exclusivamente à proteção dos dados pessoais e da privacidade dos brasileiros; o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor; agências reguladoras, como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); e demais órgãos e entidades estatais cujas competências sejam afetas ao tema. Vamos acompanhar.


Autores

  • é advogada especializada em direito da pesquisa clínica. Mestre em Direito Internacional e Comparado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutoranda na mesma instituição.

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