Opinião

Ave, César, os que vão morrer te saúdam!

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18 de março de 2019, 16h40

O ordenamento jurídico-penal brasileiro passou a ser assombrado pelo espectro do Coliseu romano e remeter aos filmes americanos sobre julgamentos criminais. O Pacote Anticrime, que mais bem chamado seria de embrulho antiCristo, gestado no Ministério da Justiça, inspira-se naqueles modelos que tendem a turbinar a violência monopolizada pelo Estado e fazem mais vulnerável a cidadania. Transforma, por exemplo, todo agente policial em um 007 tropical com licença para matar, ou em gladiador romano na arena mortal. Inspirado por Hollywood, dispensa a defesa e o devido processo legal que constituem garantias fundamentais contra abusos e violências dos órgãos da persecução penal.

A proposta traz à memória a figura de um antigo ministro da justiça, Francisco Campos, o qual, a par da virtude de jurisconsulto, sofria de incontrolável compulsão para legislar. Tanto que escreveu uma Constituição, a "Polaca" de 1937, influiu na elaboração do Código Penal de 1940, Processo Penal de 1941 e ainda teve tempo de rascunhar os primeiros atos institucionais da ditadura de 1964 – obra que levou o cronista Rubem Braga a cravar: "Toda vez que acende a luz do sr. Francisco Campos há um curto-circuito na democracia".

O bruxuleio desse Pacote Anticrime faz tremeluzir um dos mais pacificados institutos, o da exclusão de antijuridicidade, positivado no artigo 23 do Código Penal, ao ampliá-lo perigosamente para policiais que já matam nas ruas a torto e sem direito. Ora, a Lei Penal atual já não considera crime determinadas ações perpetradas "em estado de necessidade", "em legítima defesa", "em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito". Na sabedoria do sistema, exclui-se a antijuridicidade das condutas praticadas nessas circunstâncias – e dentre elas a mais incontroversa é a da legítima defesa, conceituada como a situação em que o agente se vale "moderadamente dos meios necessários" para repelir "injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem". Pressuposto nuclear dessa excludente é a ausência de excesso doloso na ação reativa, mas a proposta acrescenta-lhe um sobejo ao dispor que "o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

A ser aceita a novidade pelo Congresso, quando praticado por medo, surpresa ou violenta emoção (inclusive no feminicídio?), o delito acabará mitigado ou mesmo ficará sem punição. O escopo de tal extravagância, ponto de campanha eleitoral do presidente da República, é proteger ou isentar previamente o policial que, perturbado por esses estados psíquicos, qual sniper puxa o gatilho certo da impunidade. No país da piada pronta, as novas escusas já viraram chiste forense, tragicômico, mas certeiro. Diante do corpo estendido no chão, o policial se justifica: "O primeiro tiro foi por surpresa, o segundo, por medo, o terceiro, por violenta emoção…"

As quebradas das periferias serão convoladas em palcos de confrontos. Agentes da autoridade encarnarão os gladiadores, que, autorizados pelo imperial polegar de Cesar voltado para o solo, ordenava a imolação de suas vítimas – prática já costumeira no Brasil (lembre-se o Carandiru), como atestam as 5.144 mortes de cidadãos causadas por policiais em 2017, o que faz da brasileira a polícia mais letal do mundo.

Do Coliseu, dita alteração legislativa salta séculos para abeberar na doutrina do common law, construto normativo forjado nos pretórios, e não na fonte legislativa que é o Parlamento. Em uma corte dos Estados Unidos tudo pode ser objeto de transação, regateio, permuta e escambo entre as partes. Daí porque, de seus institutos o mais tratado nas obras doutrinárias e nas encenações artísticas é a plea bargain, que em bom vernáculo atende pelo nome de barganha. Em vez de ser julgado conforme o devido processo legal, o acusado é induzido pela promotoria a se declarar culpado sem julgamento e aceitar uma pena menor em lugar de receber a enorme reprimenda com que se o ameaça. Mesmo inocente, é levado a aceitar o acordo, para não correr o risco de uma penalização mais gravosa (e abusiva), a overcharging, caso vá a julgamento. Nas películas americanas essas transações são negociadas entre advogados e acusadores nas cantinas e mesmo nos corredores dos tribunais. Ao juiz cabe apenas homologá-las.

Tal prática, se é cediça no modelo americano, repugna ao da civil law, que vigora no Brasil. Aqui ao réu se garante o processo sob o signo do contraditório, com ampla possibilidade de defesa e que culmina com sentença fundamentada, confortada em provas e balizada estritamente pela lei. O artigo 5.º da Constituição é taxativo: "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal".

No Brasil, a barganha parece se mostrar inconstitucional, principalmente por implicar renúncia a direitos inabdicáveis, de modo especial ao de liberdade (mesmo na hipótese de inocência) considerado que o fator determinante de sua aceitação é a ameaça de receber punição exagerada. Ora, a liberdade é irrenunciável, e não constitui apenas um bem que compõe o patrimônio jurídico do indivíduo, que é o seu sujeito imediato, mas pertence a todo corpo social, à coletividade, que mediatamente é titular do direito de liberdade de todos e de cada um (poderia alguém, tão vil que desejasse ser escravo, renunciar sua condição de ser humano livre, para se transformar em res, em coisa, em vez de pessoa?). A liberdade individual, em suma, vem tutelada pelo plexo normativo civilizatório, historicamente sedimentado. E, como lembra Montesquieu em O Espírito das Leis, "a liberdade é o direito de fazer tudo [e tão somente] o que as leis permitem".

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