Opinião

O fenômeno da inteligência fiscal e os riscos da voracidade tributária

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16 de março de 2019, 6h13

A atividade fiscal dos entes públicos deve ser utilizada para equilibrar não só o anseio constante por aumento da receita, aliado aos trabalhos para melhorar a arrecadação, como também ter efeito preventivo (ações proativas), de repercussão futura. Sob esse panorama, o fenômeno da “inteligência fiscal” surge como uma forma de aprimorar a atividade fiscalizatória e arrecadatória dos entes públicos através de técnicas de cruzamentos e conciliações dos dados obtidos, aliado com a aquisição de softwares avançados de análise e cruzamento de dados. Tais sistemas possuem finalidade não só de otimizar gestão e planejamento dos recursos públicos da administração pública municipal, como também ser um forte instrumento arrecadador no combate aos mecanismos de evasão de recursos públicos com o escopo de aumentar as receitas públicas, principalmente em tempos de recessão econômica.

Recentemente, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) disponibilizou aos municípios o sistema desenvolvido pelas instituições financeiras em parceria com o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) com a finalidade de fiscalização e arrecadação do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN)[1]. O objetivo da ferramenta é facilitar os procedimentos de fiscalização do tributo relativo as operações realizadas no domicílio do tomador, por meio dos serviços com as transações com o cartão de crédito ou débito e congêneres, além dos serviços de administração de planos de saúde, corretagem ou intermediação de contratos de arrendamento mercantil (leasing), dentre outros.

Embora o sistema auxilie na seleção dos dados e cruzamento de informações, é inequívoco que os critérios de avaliação em relação à viabilidade de sua execução e da consistência dos resultados a serem alcançados deve estar aliado a legislação tributária atualizada combinada com instrumentos eficientes de incorporação da jurisprudência consolidada pelos tribunais pátrios de modo vinculante aos auditores responsáveis pelo lançamento tributário é imprescindível para o alcance da verdade material, o que poderia evitar a formação de diversos processos decorrentes de meros erros e de falta de esclarecimento adequados.

Ocorre que, infelizmente, a realidade fiscal da capital maranhense parece ir na contramão dos avanços trazidos pela inteligência fiscal na seara tributária.

No final do ano de 2018, o município de São Luís passou a autuar as sociedades profissionais, sob o pálio de que as receitas obtidas por meio do cruzamento de dados de pagamento com cartão de crédito/débito, sem a emissão das respectivas notas fiscais de serviços configuraria descumprimento da obrigação tributária prevista no artigo 156, II, da Constituição Federal combinado com o artigo 1º, da Lei Complementar 116/2003 e artigos 68, 175, I e 127, da Consolidação das Leis Tributárias do Município de São Luís (CLTM).

Tal avalanche de autuações atinge diretamente as sociedades formadas por médicos, engenheiros, advogados, economistas, contadores etc.

Sucede que o fundamento utilizado pelo Fisco de São Luís tenta encaixar a tese de que a Lei Complementar 116/2003, que deu novas regras para o ISSQN, não disciplinou o antigo regime especial destinado às chamadas sociedades uniprofissionais e, portanto, teria extinguido o citado regime tributário. Por conseguinte, insiste que a cobrança deverá se dar da mesma forma que as demais prestadoras, ou seja, com base no faturamento e não calculado sobre o número de sócios. Além disso, defende que não teriam direito ao regime diferenciado aquelas sociedades compostas de sócios pertencentes a especialidades diferentes, ainda que integrantes do mesmo ramo do conhecimento científico (ex: sociedade composta de médico cardiologista e médico cirurgião vascular, engenheiro civil e engenheiro elétrico etc.). Em outras palavras, desconsidera, portanto, a situação fática real inerente ao desempenho da atividade dos uniprofissionais para assim promover a elevação da arrecadação de impostos a todo custo.

Daí surge a problemática: se a forma como se dá a incidência do ISS nos serviços prestados por sociedades profissionais deve ser fixa, como pretendem essas sociedades, ou proporcional ao seu movimento econômico, como pretendem os municípios.

É evidente que o interesse do ente municipal em aumentar/ampliar sua arrecadação seja evidente e até compreensível, jamais poderá acontecer fora dos contornos da legalidade. Fundamentando-se nesse inconformismo, já se buscou desde a obtenção da declaração de inconstitucionalidade da norma que a prevê, porque não teria sido recepcionada pela CF/88, que expressamente veda as denominadas isenções heterônomas, ao reconhecimento de que essa norma teria sido revogada pela LC 116/03.

Nenhuma dessas tentativas prosperou.

Apesar dos vários limitadores criados de forma reiterada e sucessiva pelas autoridades fiscais municipais para impedir ou, pelo menos, restringir a aplicabilidade dessa tributação fixa, as sociedades profissionais, isto é, aquelas constituídas por profissionais que desempenham a mesma atividade intelectual de forma pessoal e respondendo por seus atos, permanecem gozar do regime de tributação diferenciado.

Diferente do que é defendido pelos entes municipais, a LC 116/2003 não revogou expressamente o regramento da tributação fixa dos autônomos e sociedades profissionais. Isso porque a Lei de Introdução ao Código Civil obriga que revogações de dispositivos sejam feitas de forma expressa, o que, evidentemente, não ocorreu, uma vez que tal regramento se encontra resguardado pelo artigo 9º, do Decreto-Lei 406/68, norma de âmbito nacional, recepcionado pela Carta Magna, de sorte que as leis municipais não podem submeter nem os trabalhadores autônomos nem as sociedades profissionais ao ISS calculado sobre o faturamento dos respectivos serviços e/ou lucro, receitas auferidas em virtude do princípio da hierarquia das normas jurídicas. Frisa-se também que não é uma regra que tenha por objeto a criação de benefício fiscal, mas, sim, de regime diferenciado de tributação, que busca adequar as regras de incidência às especificidades do contribuinte, conforme jurisprudência pacífica e consolidada do Supremo Tribunal Federal.

Outrossim, a constituição da sociedade uniprofissional, sob a modalidade jurídica de sociedade limitada (artigo 1.052, do Código Civil), com registro de seu ato constitutivo na Junta Comercial, também não é motivo para, por si só, afastar o regime de tributação por alíquota fixa. Explico: o traço distintivo das sociedades simples e empresárias está no modo pelo qual elas exercem a sua atividade.

O conceito de empresário está expresso no artigo 966 do Código Civil, o qual “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. Por expressa previsão do parágrafo único, estão excluídos do conceito de empresário os exercentes de profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística. Destarte, a sociedade será empresária quando se verificar a exploração da atividade econômica mediante a combinação de uma série de fatores (capital, mão de obra, insumos e tecnologia) para a produção ou circulação de bens ou serviços, não sendo o trabalho direto dos sócios necessário para a organização da atividade econômica. Por outro lado, as sociedades simples serão aquelas que, diante o caráter intelectual, científico, literário ou artístico da atividade econômica, impõem a sua exploração de forma pessoal, sendo imprescindível para a sua realização o labor direto dos sócios.

Mutatis mutandis, a associação de profissionais liberais não resulta em maior capacidade econômica ou contributiva, já que a produção total nada mais é do que o somatório das produções individuais, não decorrendo dessa associação efeito multiplicador. Logo, o fato de profissionais liberais se associarem não lhes aumenta a capacidade contributiva nem retira a natureza pessoal dos serviços por eles prestados, mas tão somente a vantagem de racionalizar esforços, poupar custos e proporcionar maior disponibilidade de tempo para o trabalho e o descanso.

Desta maneira, a formato com que a sociedade é constituída (LTDA., por exemplo) ou a denominação que se atribui ao estabelecimento (clínica, para os casos dos médicos ou odontólogos) não possui qualquer relevância para se atribuir a essas sociedades natureza empresarial e, consequentemente, inseri-la nas regras de tributação proporcional. O importante é que a sociedade profissional, simples ou limitada, seja formada por sócios da mesma habilitação profissional (inscritos no mesmo órgão fiscalizador da profissão) que prestam serviços, de forma pessoal, responsabilizando-se pelos seus atos, sem assumir caráter empresarial.

Sendo assim, o tratamento tributário dado pelo artigo 9º, do Decreto-Lei 406/1968 às sociedades profissionais relativamente ao ISS é plenamente justificável. A razão está justamente no fato de que não se contrata uma sociedade de advogados ou um médico cirurgião como uma empresa. Não se trata de um privilégio, apenas simples tratamento isonômico com os profissionais que trabalha de forma individual e pessoal, já que não há qualquer diferença entre a atuação destes e a dos profissionais associados.

É evidente que a manutenção das autuações irregulares e em total desconformidade com o ordenamento jurídico e entendimento jurisprudencial certamente servirá de motor da incerteza a respeito da definição do conteúdo concreto da legislação tributária e, por conseguinte, resultará em demandas em massa por parte das sociedades profissionais dos mais variados setores de atuação.

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