Observatório Constitucional

Novo regime fiscal ampliou controle judicial dos benefícios fiscais

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16 de março de 2019, 8h00

Spacca
A polêmica Emenda Constitucional 95 inseriu no texto da Constituição Federal os artigos 106 a 114 do ADCT, que dão forma ao chamado "novo regime fiscal", a vigorar por 20 exercícios financeiros no âmbito do Orçamento da União.

Na essência, a emenda proposta pelo governo Temer — numerada como PEC 241/2016, na Câmara dos Deputados, e PEC 55/2016, no Senado Federal — pretendia impor um teto de gastos públicos, um limite para o crescimento da despesa primária total do governo federal, aplicável ao Executivo, Legislativo e Judiciário.

Desde o início, a emenda despertou ódios e paixões. No curso do processo legislativo, a tramitação da PEC foi objeto do MS 34.448, impetrado por parlamentares para impedir a deliberação da proposta. Em seguida, após sua promulgação, foram ajuizadas diversas ações diretas de inconstitucionalidade contra os dispositivos alterados — ADIs 5.633, 5.643, 5.658, 5.680 e 5.734 —, com fundamentos de ordem tanto formal (descumprimento do rito para aprovação de emenda constitucional) quanto material (violação de cláusulas pétreas, notadamente direitos fundamentais à saúde e à educação e outros, democracia e separação dos Poderes).

As ações, de relatoria da ministra Rosa Weber, ainda aguardam julgamento. Mas este artigo não trata delas nem pretende discutir a validade dos dispositivos que compõem o novo regime fiscal. Quer chamar atenção para a maneira como a Emenda Constitucional 95 disciplinou a criação e a alteração de leis que concedam renúncia de receita, especialmente as de natureza tributária, e destacar as principais controvérsias suscitadas sobre o tema no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

Embora o escopo da proposta de emenda constitucional encaminhada pelo Poder Executivo fosse conter a expansão da despesa primária do governo federal, o texto final aprovado pelo Congresso Nacional incluiu duas disposições que se referem especificamente ao controle de renúncia de receita e não constavam na redação originária da PEC — os artigos 113 e 114 do ADCT:

Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.

Art. 114. A tramitação de proposição elencada no caput do art. 59 da Constituição Federal, ressalvada a referida no seu inciso V, quando acarretar aumento de despesa ou renúncia de receita, será suspensa por até vinte dias, a requerimento de um quinto dos membros da Casa, nos termos regimentais, para análise de sua compatibilidade com o Novo Regime Fiscal.

As duas disposições, incluídas no substitutivo adotado pela Comissão Especial na Câmara dos Deputados, afetam diretamente o processo legislativo e têm como destinatário principal o autor da proposição. A primeira delas é especialmente importante para o escopo deste artigo.

O artigo 113 exige que projetos que impliquem renúncia de receita estejam sempre acompanhados de estimativa de “impacto orçamentário e financeiro”, que nada mais é do que a demonstração de quanto custam os benefícios fiscais concedidos em termos de perda de arrecadação. Ou seja, trata-se de obrigar que, no debate legislativo, não se discutam apenas os objetivos e princípios que inspiram os projetos, mas também o quanto representam em termos de custos orçamentários.

Não se pode dizer que a exigência represente propriamente uma novidade. Para as renúncias de receita tributária, o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal, desde 2000, já determinava que a concessão ou ampliação de receita estivesse acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, entre outras providências.

Há quase 20 anos, o proponente de uma renúncia fiscal já tem o dever de indicar o impacto orçamentário e financeiro de medidas legislativas que implique renúncia de receita tributária. A falta de compatibilidade e adequação financeira e orçamentária é, aliás, uma causa recorrente de arquivamento dessas proposições no Legislativo federal. O entendimento é inclusive objeto de súmula — a Súmula-CFT 1/08 — no âmbito da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados[1].

Então, qual é a novidade do novo artigo 113 do ADCT? Por que se incluiu no texto constitucional uma exigência que, em boa medida, já se continha na lei complementar?

Ainda que o destinatário primeiro da norma seja o parlamentar (federal), a verdadeira inovação do parâmetro estabelecido pelo artigo 113 do ADCT, em matéria de renúncia fiscal, não diz respeito exatamente ao controle legislativo de renúncia fiscais — que já encontrava parâmetro suficiente no artigo 14 da LRF —, mas à ampliação das possibilidades de controle judicial de constitucionalidade nessa matéria.

É que, diante do novo parâmetro constitucional, o que antes era tomado apenas como uma causa de arquivamento da proposição legislativa, passível de superação pelo voto de maioria legislativa eventual, tornou-se um vício de inconstitucionalidade insuscetível de convalidação. Inaugurou-se, dessa forma, um novo espaço para o controle judicial de constitucionalidade dos benefícios fiscais no Brasil.

Até então, a legalidade qualificada do artigo 150, parágrafo 6º, e o requisito da aprovação no Confaz, em matéria de ICMS, eram praticamente os únicos parâmetros constitucionais utilizados pelo STF para controle desse tido de proposição[2]. Não havia espaço para o exame judicial do impacto orçamentário dessas medidas. O desrespeito ao artigo 14 da LRF não autorizava o conhecimento de ações diretas ajuizadas, porque limitado ao plano das ofensas reflexas. Foi o que decidiu o STF nas oportunidades em que provocado a se manifestar sobre o tema: ADI 3.796, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, j. 8/3/2017; ADI-AgR 3.789, de relatoria do ministro Teori Zavascki, DJe 25/2/2015; ADI-AgR 3.790, de relatoria do ministro Menezes Direito, DJe 1º/2/2008.

Em concreto, essa orientação, embora condizente com a jurisprudência da corte, reduzia a eficácia do artigo 14 da LRF e esvaziava a possibilidade de seu controle judicial efetivo. Leis de benefício fiscal aprovadas com prejuízo do disposto na Lei Complementar 101 e sem qualquer atenção ao impacto orçamentário da medida no curso do processo legislativo, permaneciam vigentes e imunes à possibilidade questionamento judicial a posteriori.

Elevada a exigência de estimativa do impacto orçamentário e financeiro ao nível da Constituição Federal, no artigo 113 do ADCT, abre-se um novo caminho para o controle de benefícios fiscais com consequências e possibilidades ainda indefinidas.

A mudança já pode ser percebida no âmbito do Supremo Tribunal Federal, nas ações em que se questiona a validade de leis de benefício fiscal, tomando como parâmetro o artigo 113 do ADCT. O quadro abaixo lista alguns desses casos:

Ação Relator Objeto Origem Situação
ADI 5.902 ministro Marco Aurélio Lei Complementar 160/2017 União não julgado
ADI 5.882 ministro Gilmar Mendes Lei estadual 17.302, de 30/10/2017 Santa Catarina liminar deferida
ADI 5.816 ministro Alexandre de Moraes Lei estadual 4.012/2017 Rondônia liminar deferida
RE 1.158.273 ministro Celso de Mello Lei Complementar municipal 2.842/2017 Ribeirão Preto negado seguimento ao RE; agravo pendente
ADI 6.027 ministra Cármen Lúcia Lei 13.496, de 24/10/2017, e Lei 13.606, de 9/1/2018 União não julgado

A lista é apenas ilustrativa. Além do número crescente, que comprova a relevância da alteração constitucional realizada, os casos submetidos à apreciação do STF apontam algumas perplexidades quanto ao escopo, alcance e destinatário da regra do artigo 113 do ADCT.

Basta que a proposição tenha sido formalmente acompanhada de alguma estimativa de impacto para que se considere atendido o comando do artigo 113 ou a inadequação da estimativa prejudica a validade da própria lei aprovada?

Até quando o requisito pode ser implementado, apenas no momento da apresentação da proposição, a qualquer tempo enquanto tramitar a proposição ou antes da primeira votação na Casa iniciadora? Quem pode/deve apresentar a estimativa, apenas o proponente ou qualquer partícipe do processo legislativo?

Qual o alcance do artigo 113 do ADCT? A exigência de que a proposição legislativa esteja acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro aplica-se apenas à União ou também se estende aos estados, ao Distrito Federal e os municípios?

A última das questões desperta peculiar perplexidade. É crescente o número de casos em que se que pretende aproveitar a regra do artigo 113 para questionar renúncias fiscais estaduais e municipais.

O fundamento dessa interpretação ampla está na literalidade do artigo 113 do ADCT. O texto do dispositivo não especifica os entes políticos destinatários do comando, embora a redação do artigo 106 do ADCT determine textualmente que novo regime fiscal aplica-se “no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, […] nos termos dos arts. 107 a 114”.

Na ADI 5.902, ajuizada pelo governador do Amazonas, contra a Lei Complementar 160/2017, o argumento, que não constava na inicial, é suscitado pela Procuradora-Geral da República. A falta de estimativa de impacto financeiro e orçamentário é utilizada para justificar a inconstitucionalidade do artigo 4º da lei complementar impugnada, que afasta as restrições decorrentes da aplicação do artigo 14 da Lei Complementar 101/2000, no tocante aos benefícios fiscais em matéria de ICMS de que trata a lei.

Consta na Manifestação do Ministério Público:

“O art. 4º da LC 160/2017 afasta a incidência das restrições decorrentes da aplicação do art. 14 da Lei Complementar 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), o qual exige que a concessão ou ampliação de benefícios fiscais de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita seja acompanhada da estimativa do impacto orçamentário-financeiro.

Ocorre que a exigência da estimativa do impacto financeiro e orçamentário foi elevada ao status de norma constitucional com o advento da Emenda Constitucional 95/2016, que instituiu o novo regime fiscal. O art. 113 do ADCT, incluído por essa emenda, estipula que 'a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro'.

Tal exigência tem por finalidade dotar o processo legislativo de instrumentos voltados ao controle do equilíbrio das contas públicas, com especial ênfase na análise do impacto financeiro das inovações. Ao prever a obrigatoriedade de quantificação dos impactos fiscais de proposições legislativas, a EC 95/2016 prestigia a transparência e a responsabilidade fiscal no campo do processo político decisório.

A convalidação de diversos benefícios fiscais de ICMS sem elaboração de estudo sobre as suas repercussões financeiras e orçamentárias resulta afronta direta à norma constitucional e em desrespeito ao princípio da responsabilidade fiscal, igualmente considerado cláusula pétrea”.

É importante observar que, no caso em análise, apesar de se tratar de lei complementar aprovada pelo Congresso Nacional, o impacto financeiro e orçamentário das medidas não se verifica no nível da União. Afeta os estados e o Distrito Federal e, por reflexo, os municípios, no que se refere à quota-parte a que fazem jus com fundamento no artigo 158 da Constituição.

Parece apontar na mesma direção a fundamentação adotada, ainda que em juízo perfunctório, pelo ministro Alexandre de Moras para conceder a cautelar requerida na ADI 5.816 e suspender a eficácia da Lei do Estado de Rondônia 4.012/2017. Lê-se na decisão:

“No caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade de que ora se cuida, sustenta-se desatendimento ao comando constitucional do artigo 113 do ADCT, que exige, presente norma geradora de renúncia de receita, estimativa dos reflexos orçamentário e financeiro. O fundamento constitucional é claro, devendo ser prestigiado com máxima força. Isso porque a ideia de responsabilidade fiscal ocupa patamar de especial posição no quadro dos valores constitucionais”.

Em sentido diametralmente oposto está a orientação acolhida pelo ministro Celso de Mello, para negar seguimento ao RE 1.158.273, interposto pelo prefeito de Ribeirão Preto, em que se discute a constitucionalidade, em controle abstrato, de lei municipal que concede renúncia de receita tributária. No caso, consignou o relator que a regra é inaplicável aos municípios. Sua aplicação restringe-se ao nível federal. O agravo regimental, até o momento, aguarda julgamento, e não há pronunciamento definitivo do Plenário quanto ao tema.

Ainda é cedo para avaliar todos os impactos da mudança empreendida pelo novo regime fiscal no controle judicial das renúncias de receita tributária. O que já se pode afirmar é que o artigo 113 do ADCT parece ter aberto um novo espaço de apreciação judicial dos benefícios fiscais e, muito provavelmente, ampliará também o número de demandas que assomam a corte com esse objeto. Resta ao tribunal decidir quão profunda será intervenção judicial nesse tema, até hoje relegado ao campo da discricionariedade política.


[1] “É incompatível e inadequada a proposição, inclusive em caráter autorizativo, que, conflitando com as normas da Lei Complementar n.101, de 4 de maio de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal – deixe de apresentar a estimativa de seu impacto orçamentário e financeiro bem como a respectiva compensação.”
[2] Já tratamos desse tema em outra oportunidade nesta coluna.

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Foi assessor e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor dos livros O Avesso do Tributo e Os Impostos e o Estado de Direito.

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