Ambiente Jurídico

Abundância natural não transforma "bens comuns" em inesgotáveis

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16 de março de 2019, 8h03

"Desenvolvimento sustentável" é o desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das gerações futuras de atender às suas necessidades, com dois conceitos relevantes: a "necessidade", principalmente a necessidade dos pobres do mundo, a que se deve dar prioridade; e a ideia de limites (o "sustentável") imposta pelo estado da tecnologia e pela sociedade organizada, considerando a capacidade do ambiente de atender à necessidade atual e futura.

É interessante observar que, na própria formulação do conceito, o "desenvolvimento" é o substantivo e "sustentável" é o adjetivo; o desenvolvimento vem em primeiro lugar e direciona a compreensão da ideia. Esse foco principal, que não é só nosso, transparece na Constituição Federal. O artigo 3º indica os objetivos fundamentais da República (I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem estar de todos, sem preconceitos) sem mencionar a proteção ambiental, que aparece no artigo 170 como um dos princípios da atividade econômica (inciso VI, admitindo o impacto ou dano ambiental na atividade econômica) e, finalmente, no artigo 225 ao considerar o meio ambiente ecologicamente equilibrado um direito de todos, a ser preservado para as atuais e futuras gerações.

Essa ambiguidade, esse duplo foco (o desenvolvimento e a preservação ambiental) dificulta o avanço da agenda ambiental e justifica a preocupação de quem se dedica ao tema. Mas onde está a dificuldade, se desde o Relatório Bruntland (1987) e a Declaração do Rio + Agenda 21 (1992) a consciência de que o desenvolvimento deve ser (ecologicamente) sustentável foi incorporada ao pensamento político, à lei internacional e local e aos projetos dos principais agentes econômicos?

Essa ambiguidade reforça a tendência do sistema econômico de sacrificar a proteção ambiental em favor do desenvolvimento. Adam Smith acreditava que a busca do maior benefício pessoal, contraposta à mesma busca de outros, levaria ao aumento da riqueza comum através do que denominou "a mão invisível do mercado"; e o enorme desenvolvimento mundial nos últimos duzentos anos não deixa de lhe dar razão. No entanto, essa "mão invisível" não funciona bem na proteção ambiental, ainda que vista sob o prisma econômico.

Uma das causas foi denominada de Tragedy of the Commons, ou a tragédia dos bens comuns, segundo a qual a propriedade de todos (lembremos o artigo 225 da Constituição Federal) não é propriedade de ninguém e não tem preço; tem valor apenas quando apropriado por alguém, que corre o risco de vê-lo desaparecido por outro tê-lo apropriado primeiro. No entanto, se o ar e a água são essenciais à produção, porque não são naturalmente protegidos pelo sistema econômico?

Uma das causas é que, acessível a todos, mas sem preço para ninguém, nenhum "preço" indica qualidade ou raridade como acontece no mercado e a ninguém pode ser proibido o uso. Esse dilema foi anotado por Garrett Hardin (168 Science 243, 1968) com um exemplo muito repetido. Imaginem um pasto utilizado por um vilarejo para o pastoreio de ovelhas; o pastoreio do rebanho de um reduz o alimento do rebanho do outro (e do próprio primeiro rebanho). Conforme o pasto é consumido, menos ovelhas serão alimentadas no longo prazo. O dilema do pastor é deixar suas ovelhas pastar o quanto quiserem, ou retirá-las do pasto mais cedo.

Quanto mais comem, mais peso ganham e mais valor terão na hora da venda. Ocorre que, se um pastor retira as suas ovelhas mais cedo, não há garantia de que os outros pastores farão o mesmo; logo tentará maximizar seu ganho, embora em futuro próximo o excesso acabe com o pasto para todos os rebanhos. A decisão é racionalmente correta do lado do indivíduo no curto prazo, mas coletivamente incorreta no prazo mais longo.

Essa "tragédias dos bens comuns" é clara nos oceanos, em que as nações marítimas continuam a sobre-pesca nas águas internacionais arguindo a "liberdade dos mares" e os recursos inesgotáveis dos oceanos, enquanto vão extinguindo as espécies de peixes e baleias. É clara também na poluição da atmosfera ou das águas, em que o poluidor considera que o custo da poluição do ar e da água (bens comuns, ou commons) é inferior ao custo da purificação antes da descarga, logo mais vantajoso.

A "mão invisível" do mercado não atua onde o bem envolvido (o bem comum) é grátis e a ideia do máximo proveito individual implicará necessariamente na degradação daquele bem comum. Então, segundo alguns estudiosos, a degradação causada pela economia de curto prazo pode ser controlada de duas formas, uma atribuindo o "bem comum" a alguém que, podendo dele fazer uso e controlá-lo, preservará o seu valor no longo prazo; a outra regulamentando o uso do bem comum, assim preservando (lembremos o pastoreio de ovelhas, no exemplo acima) a grama para os anos seguintes.

O Brasil reflete essas circunstâncias. Como em outras partes do mundo, as desigualdades sociais e a ênfase no desenvolvimento (vide o artigo 3º da Constituição) acabam deslocando o foco para a questão econômica, mais que para a questão ambiental; e a abundância natural incutiu em nossa população, governos e empreendedores que os nossos "bens comuns" são inesgotáveis, levando à sua apropriação predatória, à baixa noção de sua importância, ao descuido com o longo prazo e à fragilidade da regulamentação do seu uso — um desrespeito inato, enraizado, pelo ambiente, pela sua conservação, pelo próprio futuro, que precisa mudar. A mudança das consciências e a defesa do ambiente é uma luta árdua, incessante, que deve continuar.

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