Opinião

Uma introdução ao debate sobre improbidade administrativa

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14 de março de 2019, 17h58

Spacca
Iniciamos esta coluna por sua apresentação: com periodicidade semanal, seus autores, com formação acadêmica primordialmente nas searas constitucional e processual, irão abordar o rico tema da improbidade administrativa a partir da atual Lei n. 8.429/1992 e do anteprojeto que busca substituí-la — e de cuja elaboração um dos coautores pôde honrosamente participar de forma ativa, integrando a Comissão de Juristas responsável.

Esperamos que esta iniciativa lance luzes sobre o debate, convidando a comunidade em geral para que dele participe. São esses nossos votos, que se somam aos sinceros desejos de uma saudável troca de ideias. Uma excelente leitura!


De há muito a corrupção é algo quase intrínseco à organização social. A ordem imaginada, idealizada para viabilizar o convívio em comunidade, acompanha nossos traços humanos mais primitivos, como o egoísmo, a ganância, a ambição.

Com a separação entre as esferas pública e privada, passa-se a conceber como possível sua desvirtuação, como já alertava séculos atrás Aristóteles: a aristocracia "degenera em oligarquia pela ruindade dos governantes, que distribuem sem equidade o que pertence ao Estado — todas ou a maior parte das coisas boas para si mesmos, e os cargos públicos sempre para as mesmas pessoas, olhando acima de tudo a riqueza; e destarte os governantes são poucos e maus, em lugar de serem os mais dignos".[1]

Na história, foram igualmente testemunhas da propensão ao desvio as leis Cornelia de repetundis (81 a.C.) e Julia de repetundis (59 a.C.), que integraram um conjunto de normas que buscou coibir e punir, no principado romano[2], subornos e extorsões no exercício da função pública.[3] Cartas publicadas por Plínio, o Jovem, narrando alguns casos em que atuou e que envolveram governadores provinciais, fornecem um material[4] muito rico a esse respeito.

Com o poder, nasceu o risco de seu desvio, daí cunhada a máxima de que "tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser" ou "todo homem investido de poder é tentado a abusar dele".[5] Acontece que, no conceito moderno de Estado, o poder emana, antes, do povo. Seu mau uso, pois, é verdadeira traição à comunidade, a arriscar o próprio sistema de organização social na medida em que produz o efeito deletério de pôr em dúvida a eficiência de todo o modelo, gerando "desconfiança nas instituições estatais"[6] — não por acaso, a etimologia da própria palavra (corruptio) remete a apodrecimento ou a "suspensão do concurso conservativo, e introdução de qualidades alterantes, e destrutivas".[7]

Por sua alta censura enquanto traição, o desvio de poder[8] desafia a necessidade de idealização de um contraprincípio a ser tutelado, protegido: a moralidade.

É antiga a ideia de separação entre moral e direito[9]. Gradativamente, porém, parece ter havido uma espécie de "contaminação" — não sem controvérsia[10] — do segundo pela primeira. É assim com a ampliação do conceito de legalidade pela Lei Fundamental da Alemanha de 1949 e com a noção de abuso de direito no Direito Civil. No Direito Administrativo, mais especificamente, o desenvolvimento da teoria do desvio de poder culminaria na moralidade como princípio a partir da obra de Maurice Hariou.[11]

Entre nós, a moralidade, embora surja implicitamente em diferentes oportunidades — exemplo maior é a Lei n. 4.717/1965, que tipifica e pune o desvio de poder no artigo 2º, parágrafo único, e —, aparece com maior vigor na Constituição de 1988, mais especificamente nos artigos 5º, LXXIII, 14, § 9º, e, claro, 37, caput.

Perquirindo aquele superprincípio, nele foi possível divisar os deveres de boa-fé e de honestidade, o interesse público, a imparcialidade etc. Mas outra de suas nuanças avulta quando o percebemos com atenção: a probidade.

Como parte do todo, a probidade não exaure o sentido de moralidade. Prova dessa separação, a título ilustrativo, residiu no fato de a probidade, bem antes da moralidade, ter frequentado a seara constitucional já na Carta de 1967, em seu artigo 84, V — mantido como artigo 82, V, pela EC n. 1/1969 —, merecedor do comentário de José Celso de Mello Filho: "a ordem jurídica não tolera o abuso, a fraude, a corrupção e sanciona o locupletamento ilícito no exercício da função pública".[12]

Ainda antes, a mesma probidade já se fizera constar do artigo 9º da Lei n. 1.079/1950, também convergindo em prol da mencionada separação a Emenda de Revisão n. 4/1994 à Constituição de 1988, que fez alusão dicotômica a moralidade e a probidade como institutos separados.

Do que dito até aqui se extrai como conclusão que probidade, conquanto parte integrante da moralidade, se não encerrava a totalidade do significado daquele superprincípio, dele defluía, contando com especificidades e peculiaridades justificadoras de seu tratamento autônomo. Essa relação de integração e de separação entre os princípios é bem perceptível a partir da Lei n. 9.784/1999, cujo artigo 2º, caput, ao impor a observância do princípio da moralidade pela Administração, dialoga com seu parágrafo único, inciso IV, que a traz a submissão dos processos administrativos de maneira geral à necessária "atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé".

Certo, mas se probidade não se confunde totalmente com moralidade, reunindo particularidades motivadoras de sua autonomia, o que, então, mais exatamente, definiria o conceito jurídico-normativo de probidade? Parte da resposta pode ser dada por celebrada passagem de Marcello Caetano, que a identifica com o dever do agente de "servir à Administração com honestidade, procedendo no exercício de suas funções sempre no intuito de realizar os interesses públicos, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer'.[13]

Se nem toda imoralidade revela ilegalidade, a improbidade pode ser considerada, ao revés, imoralidade não apenas ilegal, mas ilegalidade qualificada[14] — ou especificada[15] — praticada por sujeitos específicos (há elemento subjetivo do tipo) e que vulnera bem jurídico que, mercê de seu relevo, merece tutela diferenciada (princípios administrativos, erário, enfim, o interesse público).

Noutras palavras, não basta que os atos sancionáveis afrontem a lei. Devem eles, para além, se revelar fruto "de desonestidade ou inequívoca e intolerável incompetência do agente público".[16] Essa ilegalidade qualificada, somada à alta carga de censura à traição que dimana do desvio de poder — em variados graus, por óbvio[17] —, justifica ações capazes de conjugar, a um só tempo, a possibilidade de responsabilização política, civil, penal e, naturalmente, administrativa.

Os Códigos de Conduta[18], os conflitos de interesses versados na Lei n. 12.813/2013, os impedimentos e incompatibilidades tratados pela Constituição (artigos 54, I e II, e 55, I), pela Lei n. 9.784/1999 (artigo 20) e pela Lei n. 8.666/1993 (artigo 9º), a vedação ao nepotismo (artigo 117, VII, da Lei n. 8.112/1990, e Súmula Vinculante n. 13), os programas de conformidade (Lei n. 12.846/2013), a autotutela administrativa, o controle político-legislativo com auxílio das Cortes de Contas (artigos 50, 52, 58, § 3º, 70 e 71 da Constituição) e a ação popular (artigo 5º, LXXIII, da Constituição, e Lei n. 4.717/1965) são representativos do controle preventivo e repressivo que busca salvaguardar a probidade. A par desses instrumentos, contudo, a Lei n. 8.429/1992, sem dúvida, aparece como um dos mecanismos de maior proeminência.

Surgida com o declarado escopo de reprimir "uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País, [que] é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção no trato com os dinheiros públicos"[19], a Lei de Improbidade Administrativa representou importantíssimo marco no combate à corrupção e na proteção à probidade e à moralidade. Ao longo desses últimos vinte e sete anos, porém, não foram poucas as controvérsias surgidas a seu respeito.

Sua própria constitucionalidade foi posta em dúvida (ADI 2.182) e temas espinhosos exigiram definição pelo Judiciário: termo inicial do prazo prescricional quando há concurso de agentes[20] e quando um deles exerce mandado eletivo e é reeleito[21]; (des)necessidade de comprovação de dano ao erário[22]; possibilidade ou não da prática de atos na modalidade culposa[23]; sujeição ou não dos agentes políticos ao seu regime[24] e foro por prerrogativa de função[25]; (im)prescritibilidade do ressarcimento[26], dentre outros.

Já superados muitos desses desafios, outros ainda se põem atualmente: a pendência da ADI 4.295, em que se impugnam treze dispositivos da lei; a definição sobre se a sanção de perda de cargo se dirige àquele ocupado quando da improbidade ou se alcança a função desempenhada quando do trânsito em julgado da condenação[27]; a (im)possibilidade de transação uma vez já ajuizada a ação (revogação tácita do artigo 17, § 1º, da Lei n. 8.429/1992, pelo artigo 36, § 4º, da Lei n. 13.140/2015); (im)possibilidade de julgamento antecipado do mérito com base tão somente em provas produzidas em inquérito civil público[28]; submissão dos Prefeitos à regência da lei[29]; se configura improbidade a contratação de advogados com dispensa de licitação[30] etc. A isso deve ser somado, ainda, a natural dinâmica social, orientada pelas mudanças de conjunturas e de práticas que, ao tempo em que faz surgir novos dilemas, deve oxigenar novas soluções.

Foi à vista de tudo isso que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, editou Ato datado de 22/02/2018 designando Comissão de Juristas responsável por confeccionar anteprojeto para uma nova lei de improbidade, creditando a empreitada em boa parte ao “processo de releitura, reinterpretação e reconstrução semântico-jurídica permanente [que] despertou a necessidade de sistematizar e aperfeiçoar a legislação vigente.[31]

Após produtivas reuniões e relevantes discussões, o anteprojeto foi entregue ao Presidente Rodrigo Maia em 14.06.2018, lançando ao debate público um novo capítulo de uma história que buscaremos contar neste prestigiado espaço virtual. Esperamos, verdadeiramente, que a acolhida seja positiva. Até semana que vem!


[1] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991, p. 186.

[2] Período compreendido entre 30 a.C. e 238 d.C.

[3] SOUZA, Dominique Monge Rodrigues de. Principado romano e corrupção política: os processos de repetundae nas epístolas de Plínio, o Jovem. In: Romanitas – Revista de Estudos Grecolatinos, n. 7, 2016, p. 88-103.

[4] Panegírico a Trajano. Madrid: Consejo superior de investigaciones científicas, 2010; Cartas. Madrid: Editorial Gredos, 2005; e Letters and panegyricus. Cambridge: Harvard University Press, 1969.

[5] MONTESQUIEU, Charles de Secondat (Baron de). Choix de textes et introduction‎. Paris: Louis-Michaud, 1910, p. 32.

[6] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O enriquecimento injusto como princípio geral do direito administrativo. São Paulo: RT, n. 755, set. 1998, p. 39.

[7] BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico. 8 vol. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728, p. 572.

[8] A origem da teoria do desvio de poder é creditada ao caso Lesbats, descrito por Hely Lopes Meirelles: “No caso Lesbats, o Prefeito de Fontainebleau, a pretexto de executar a lei que lhe autorizava regular o estacionamento de ônibus defronte à estação ferroviária, proibiu a recorrente de entrar e estacionar seus carros no pátio daquela estação. Conhecendo do recurso, o Conselho de Estado anulou a decisão do Prefeito, afirmando que houve détournement de pouvoir, porque seu ato visava a dar privilégio a outra empresa, quando a lei não lhe concedia esse poder, nem permitia discriminações entre as transportadoras de passageiros naquele local (cf. Sirey, Refonte, t. 9, III, p. 46, decisão de 25.2.1864).” MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 112.

[9] Referência antiga remonta ao século XV, em THOMASIUS, Christian. Fundamentos de Derecho Natural y de Gentes. Madrid: Tecnos, 1994.

[10] STRECK, Lenio Luiz. Precisamos falar sobre direito e moral: os problemas da interpretação e da decisão judicial. Rio de Janeiro: Tirant le Blanch, 2018.

[11] HARIOU, Maurice. Précis de droit administratif: et droit public: a l'usage des etudiants en licence (2. et 3. annees) et en doctorat es-sciences politiques. 10 ed. Paris: Sirey, 1921.

[12] MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal anotada. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 444.

[13] CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo. Tomo 2. Coimbra: Almedina, 1997, p. 749, n. 288.

[14] SILVA, JOSÉ AFONSO DA. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, p. 347-348.

[15] FREITAS, Juarez. Do princípio da probidade administrativa e sua máxima efetivação. In: Revista de Direito Administrativo, n. 204, abr./jun., 1996, p. 71.

[16] AI 354.430, DJ 28/2/2001.

[17] FIGUEIREDO, Marcelo. Comentários à Lei 8.429/1992. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 49-50.

[18] Decreto n. 1.171/1994, que institui o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal.

[19] EM. GM/SAA/0388, de 14/08/1991: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1992/lei-8429-2-junho-1992-357452-exposicaodemotivos-149644-pl.html

[20] REsp 1.088.247, DJ 20/4/2009.

[21] AgRg no REsp 1.510.589, DJ 10/06/2015, e AgRg no AREsp 161420, DJ 14/04/2014.

[22] REsp 1.275.469, DJ 09/03/2015.

[23] REsp 1237583, DJ 02/09/2014.

[24] AgRg no REsp 1.127.541, DJ 11/11/2010.

[25] AgRg na PET 3240, DJ 22/08/2018.

[26] RE 852475/SP, pendente de publicação.

[27] Há maioria formada na Primeira Turma do STJ, é verdade (REsp 1.766.149, DJ 04/02/2019), mas, dado o baixo número de arestos e a ausência de manifestação contundente pela Segunda Turma ou pela Primeira Seção, reputamos o tema em aberto.

[28] REsp 1.554.897, DJ 10/10/2016, e REsp 1.504.059, DJ 02/02/2016.

[29] Inobstante o julgamento do AgRg na PET 3.240, ainda pende de apreciação o Tema 576 de Repercussão geral, afetado como paradigma o RE 976566.

[30] Há importante julgado da Primeira Turma do STJ (RESP 1.192.332, DJ 19/12/2013), mas o tema ainda pende de definição, que se dará com a conclusão do julgamento do Tema 309 de Repercussão Geral, afetado como paradigma o RE 656.558, possivelmente em conjunto com a ADC 45.

[31] http://www2.camara.leg.br/legin/int/atoprt_sn/2018/atodopresidente-57776-22-fevereiro-2018-786200-publicacaooriginal-154915-cd-presi.html

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    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).

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    é advogado do escritório Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP, diretor-adjunto da Escola Superior de Advocacia da OAB-DF e secretário-geral da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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