Na administração pública, as coisas funcionam mais ou menos dessa forma, de acordo com o perfil ditado pelas normas — princípios e regras — que fundamentam e condicionam toda atuação do poder público. Esse perfil do controle será o objeto deste artigo diante de uma notícia e um ato normativo recentes.
A notícia se refere à iniciativa do Ministério do Meio Ambiente (MMA) de criar órgão de conciliação “com poderes para analisar, mudar o valor e até anular cada multa aplicada pelo Ibama por crimes ambientais”[1]. Segundo a notícia, o novo órgão teria o poder de decidir a respeito das multas aplicadas, sendo que os prazos processuais ficariam suspensos até a decisão. Por outro lado, o ato normativo é a Portaria 40, de 18/2/2019, da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, órgão do Ministério das Minas e Energia. Os artigos iniciais da portaria determinam:
“Art. 1º A ANM deverá encaminhar à SGM todos os atos normativos expedidos para fins de regulação de política pública do setor mineral, de forma que possam ser avaliadas sua adequação, conveniência, oportunidade e pertinência temática, inclusive para fins das devidas correções que se fizerem necessárias pelo Ministério de Minas e Energia, no campo de sua competência. Art 2º O encaminhamento dos atos normativos a esta SGM deverá observar-se independentemente da publicação do ato e antes mesmo de sua divulgação pública”.
A notícia faz crer que se estuda uma modalidade de controle do ministério com relação às atividades do Ibama, autarquia federal. A portaria, ato normativo referido, trata exatamente da mesma questão com relação às atividades de uma agência reguladora, autarquia — por definição — com maior grau de autonomia e independência técnica.
A relação jurídica de controle pressupõe a competência de uma estrutura para verificar a conformidade da atuação de outra com normas preexistentes. Nada há de incomum com relação à possibilidade de controle dos entes que exercem atividade descentralizada — mais que direito ou técnica de administração, trata-se de dever do Estado inato à descentralização administrativa.
A chamada tutela administrativa — materializada, na esfera federal, no instituto da supervisão ministerial — é a “atividade exercida pelo Estado, por intermédio dos órgãos encartados em sua Administração Direta, incidente sobre entidade da Administração Indireta, disciplinada pela lei e sujeita a regime de direito público, com o objetivo de controlar e fiscalizar sua atuação no tocante à consecução das finalidades públicas que justificaram sua criação”[2].
A descentralização é uma técnica de organização administrativa condicionada pelo princípio da legalidade. Há necessidade de lei para criar ou autorizar que se crie pessoa jurídica e se lhe atribua competência para desempenhar atividades originalmente afeitas ao ente político. Em consequência, as características, os instrumentos e os limites da tutela devem ser previstos em lei, não sendo extraídos implicitamente da relação jurídica entre os entes envolvidos. Enquanto a relação de hierarquia admite a existência de uma subordinação geral, contemplando a utilização de instrumentos mais amplos implícitos na relação jurídica, a tutela é dependente de expressa autorização e delineamento pelo legislador. Há uma relação hierárquica entre um ministério e uma secretaria de sua estrutura; não há hierarquia, por outro lado, entre ministérios e entidades descentralizadas, como autarquias. Essas razões inspiram a doutrina a pontificar, com acerto, que a relação de controle administrativo das entidades descentralizadas não se presume, mas deve ser verificada nos limites da lei.
Existindo competências e finalidades específicas que justificam a criação de diferentes entidades descentralizadas, há necessidade de regimes também específicos de controle ao lado da possível existência de um regime geral, contendo instrumentos aplicáveis à generalidade das situações. Os controles imaginados para incidirem sobre as pessoas de direito público, por exemplo, não devem ser os mesmos voltados para a atuação das pessoas de direito privado. De nada adianta criar uma entidade em razão da necessidade de autoadministração, buscando melhor realização de determinadas atividades, se na prática for submetida a controles e ingerências que aproximem seu vínculo com o poder público da hierarquia: tratar entidades como órgãos ou empresas estatais como se fossem autarquias, por exemplo.
Voltemos à notícia veiculada, tecendo considerações em tese, sem acesso ao teor do provável futuro ato normativo noticiado. A possibilidade da criação de órgão administrativo pertencente à administração direta, para interferir em ato editado por entidade autônoma da administração indireta, necessita de lei: isso decorre do pelo simples fato de que as competências da autarquia nascem da lei. Em se tratando de competência revisora para anulação de atos administrativos, excessiva amplitude é incompatível com o princípio da legalidade — anular é, por definição, retirar do mundo jurídico atos praticados com vícios, individualmente considerados. Não se está fazendo qualquer juízo contrário a ajustes consensuais ou substitutivos de sanções, mas, sim, apontando a incongruência — e possível vício de legalidade — de modelo de controle que se estruture dessa forma.
Quanto à portaria antes referida, convém anotar que a Lei 13.575/17 criou a Agência Nacional de Mineração (ANM), integrante da administração pública federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério de Minas e Energia. A lei atribui à ANM competências voltadas à finalidade de promover a gestão dos recursos minerais da União, bem como a regulação e a fiscalização das atividades para o aproveitamento dos recursos minerais no país. Os incisos do artigo 2º atribuem à ANM diversas competências normativas voltadas ao alcance da finalidade precípua indicada.
A lei impõe à ANM o dever de observar e implementar as orientações e diretrizes fixadas no Código de Mineração, na legislação correlata e nas políticas estabelecidas pelo Ministério de Minas e Energia. Ainda assim, é difícil sustentar que exista amparo legal para estabelecer, por portaria, juízo de controle da “adequação, conveniência, oportunidade e pertinência temática, inclusive para fins das devidas correções que se fizerem necessárias pelo Ministério de Minas e Energia”. A portaria trata somente do dever de encaminhar os atos normativos, é verdade, mas deixa claramente exposto o entendimento de que o ministério poderá corrigir atos editados com fundamento em lei. Em sendo a portaria ato infralegal, destinado à organização e procedimentos administrativos, é de se perguntar qual seria o fundamento legal dessa competência do ministério.
Sem maiores aprofundamentos com relação à legalidade do ato, a maior estranheza reside justamente no paradoxo dos modelos organizativos de descentralização: qual o sentido em criar uma agência reguladora, com maior grau de autonomia, independência técnica e campo normativo próprio e permitir a revisão de seus atos por um ministério? Se assim for, talvez seja melhor transformá-las logo em departamentos ou secretarias.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/02/ministerio-do-ambiente-quer-nucleo-com-poder-de-anular-multas-do-ibama.shtml
[2] MOTTA, Fabrício. Administração direta e indireta. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MOTTA, Fabrício. Tratado de Direito Administrativo. Vol.2: Administração Pública e servidores públicos. São Paulo: Thomson Reuters, 2014.