Tribuna da Defensoria

Por que a execução imediata de condenação do júri é inconstitucional (parte 2)

Autor

  • Lara Teles

    é defensora pública do Estado do Ceará mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará coordenadora do Departamento de Publicações do Instituto Baiano de Direito Processual Penal e autora da obra "Prova Testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração" (EMAIS 2020).

12 de março de 2019, 8h00

O projeto de lei "anticrime" visa autorizar a execução imediata das condenações do tribunal do júri, logo em primeira instância, com expedição de mandado de prisão, como decorrência imediata da condenação, sem exigir a devida fundamentação no caso concreto. O direito de responder ao recurso de apelação em liberdade é tratado como excepcional. Isso é o que se conclui da leitura da pretensa nova redação do artigo 492 do CPP[1].

Na coluna da semana passada, foram expostos os dois primeiros argumentos pelos quais não se recomenda a conversão do projeto em lei: 1) viola o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII da CF/88[2]) e o direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição (artigo 5º, LV[3] da CF-88 e artigo 8.2.h da CADH[4]); 2) não é esse o entendimento do Plenário do STF, tampouco de uma turma, mas somente de um ministro.

A seguir, serão evidenciados os demais.

3) Atualmente, não há vedação de proteção insuficiente à sociedade: redação vigente permite decretar a preventiva nos casos necessários. Por outro lado, conferir automaticidade à prisão irrestritamente pode ensejar o encarceramento injusto de pessoas.

O artigo 387, parágrafo [5], do Código de Processo Penal impõe ao magistrado, ao proferir sentença condenatória, o dever de decidir sobre a manutenção, decretação ou revogação da prisão preventiva do réu, observados os requisitos do artigo 312[6], sem prejuízo do direito ao recurso.

O artigo 492, I, e, do CPP, que versa sobre o procedimento do júri, repete o mesmo comando quando se tratar de crime julgado por esse rito.

Sobre o tema, Aury Lopes Jr.[7] dispõe que, “se o réu respondeu a todo o processo em liberdade, por ausência de necessidade da prisão preventiva, quando condenado, a tendência lógica é que recorra em liberdade. Mas poderá ser preso preventivamente nesse momento? Sim, desde que o juiz fundamente a necessidade da prisão preventiva e demonstre a existência de real e concreto risco de fuga (periculum libertates). Por outro lado, se o réu permaneceu preso ao longo de todo o processo (pois lhe foi decretada a prisão preventiva), quando condenado, a tendência lógica é que permaneça preso e assim exerça seu direito de recorrer, cabendo ao juiz fundamentar que perdura a necessidade da prisão e persiste o periculum libertates”.

Portanto, não merece prosperar o argumento de necessidade de satisfação do princípio da vedação da proteção insuficiente, tendo em vista que, caso o acusado ofereça risco à ordem pública ou à garantia da aplicação da lei penal, por exemplo, é possível que seja decretada sua custódia cautelar na sentença condenatória, mediante fundamentação idônea.

Entendimento contrário de impor prisão automática e irrestrita a todos os condenados do rito do júri, com a concessão de liberdade como medida excepcional, pode conduzir a injustiças e encarceramento indevido de pessoas, pois não raras vezes os tribunais de Justiça reconhecem a nulidade do veredito do júri, ou ainda impropriedade da dosimetria e a consequente determinação do cumprimento da pena em regime inicial diverso do fechado. Nessas hipóteses, pela redação do projeto, mesmo em situações absurdas, o acusado permaneceria preso até a decisão de concessão de efeito suspensivo pelo órgão revisor.

Portanto, a proposta é inefetiva e meramente simbólica no que diz respeito à proteção da sociedade, já que pela redação atual é plenamente possível a decretação da prisão preventiva, quando necessário. Em contrapartida, ao generalizar e automatizar a prisão, pode meramente promover injustiças.

Nesse sentido, há de se ponderar sobre os efeitos da cultura do medo, a qual, para Débora Regina Pastana[8], “reflete a crença de que vivemos em um momento particularmente perigoso devido ao aumento da criminalidade violenta”, o que enseja a adoção de práticas autoritárias, estabelecidas a partir de interesses políticos-valorativos, “difundidos como capazes de solucionar o problema”.

A busca pela redução da criminalidade e da violência urbana, que é um interesse legítimo da sociedade, não pode se sobrepor à proteção do direito à liberdade e a presunção de não culpabilidade dos indivíduos, pois, afinal, são problemas que não se resolvem com o encarceramento de inocentes. Nesse ponto, vale recordar que “aqueles que renunciam à liberdade em troca de promessas de segurança acabarão sem uma nem outra”[9].

2) O tribunal do júri é uma garantia constitucional fundamental do acusado. Ofensa ao princípio da igualdade, em virtude de tratamento desigual dos réus do rito do júri com os dos demais procedimentos, inclusive com os que respondem por crimes abstratamente mais graves. Gravidade do delito, por si só, não justifica prisão.

A competência do tribunal do júri para julgar os crimes dolosos contra a vida é prevista constitucionalmente no rol de direitos e garantias individuais e coletivos (artigo 5º, XXXVIII).

Por se tratar de um direito do acusado, não pode ser utilizado em seu desfavor. Para Sérgio Rebouças, “a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, como situações jurídicas de matiz constitucional, constituem garantias do investigado e do acusado. Por essa razão, não podem ser invocadas, não com o mesmo significado e transcendência constitucionais, contra o próprio acusado[10]. Acrescenta ainda que “não se pode perder de vista que a soberania dos vereditos, como princípio fundamental, é garantia individual do acusado, não podendo ser contra ele invocada”[11].

Portanto, o rito do tribunal do júri é constitucionalmente estabelecido como um direito do acusado, cuja consequência lógica é a impossibilidade de a lei atribuir tratamento desigual e mais severo aos réus a ele submetidos.

Pela redação da proposta, a regra é que o condenado por qualquer crime que não seja de competência do tribunal do júri inicie a execução da pena somente após confirmação de acórdão condenatório em segunda instância. Aos réus do procedimento do júri, a regra deve ser o início da execução logo após a decisão em primeira instância, o que representa evidente desigualdade injustificada e inconstitucional, a uma porque ofende o princípio da igualdade, a duas porque utiliza um direito fundamental, que se presta a tutelar um indivíduo em face do poder do Estado, para prejudicar o seu titular.

O argumento de que os crimes julgados pelo tribunal do júri são mais graves e que, portanto, merecem tratamento diferenciado também não prospera, pois aos delitos com pena em abstrato iguais ou superiores, como o latrocínio e o estupro seguido de morte, se aplica a regra geral. Ademais, não se pode olvidar que a gravidade abstrata de um crime, por si só, não é requisito idôneo para decretação de prisão preventiva.

Vale ainda mencionar que não há comprovada existência de sensação de impunidade específica quanto ao crime de homicídio, muito menos nexo causal que constate essa ausência de resposta estatal ao crime com reincidência. Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a pedido do Conselho Nacional de Justiça, com análise amostral de 817 processos em cinco estados — Alagoas, Minas Gerais, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro — e divulgada em 2015, mostrou que os homicídios compõem pequeno percentual da taxa de reincidência, em contrariedade a outros tipos penais, a despeito de se ter ciência de que há uma boa parte de delitos contra a vida que permanecem sem investigação por parte do Estado.

Nesse sentido, “crimes contra o patrimônio, como roubo e furto, são maioria entre a amostra total de condenados, mas ainda mais frequentes entre os reincidentes (50,3% em comparação com 39,2% entre os primários). Outros tipos penais que tiveram maior proporção entre os reincidentes são aquisição, porte e consumo de droga (7,3% contra 3,2%), estelionato (4,1% contra 3,2%) e receptação (4,1% contra 2,0%). Já o crime de tráfico de drogas tem maior porcentagem entre os não reincidentes que entre os reincidentes (19,3% contra 11,9%), assim como homicídio (8,7% contra 5,7%) e lesão corporal (3,4% contra 2,6%). Os crimes de porte ilegal e posse irregular de arma de fogo têm praticamente o mesmo índice entre os dois perfis, de 6% entre os primários e 6,2% para reincidentes”[12].

3) Ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso. Proposta retoma a prisão automática decorrente de sentença condenatória, banida pela jurisprudência dos tribunais superiores e pelas leis 5.349- 1967, 11.719-2008 e 12.403-2011. Inconstitucionalidade da prisão ex lege (artigo 5º, LXI, CF/88)[13].

Há mais de 50 anos, a Lei 5.349-67 impôs ao julgador o dever de fundamentar a decisão de decretação ou denegação de prisão preventiva, rompendo ainda com a lógica vigente de prisão cautelar obrigatória, então prevista no artigo 312 do CPP, cuja redação era: “a prisão preventiva será decretada nos crimes a que for combinada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos”, determinando no então artigo 315 do CPP que “o despacho que decretar ou denegar a prisão preventiva será sempre fundamentado”.

Em 2008, pela Lei 11.719, em respeito ao princípio da presunção de inocência, revogou-se ainda o dispositivo que confundia a prisão com condição de procedibilidade do recurso, qual seja, o artigo 594 do CPP, que previa que “o réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto”.

Ademais, em 2011, foi revogado pela Lei 12.403 o artigo que previa a prisão como efeito automático da sentença condenatória, qual seja, o artigo 393, o qual prescrevia que “são efeitos da sentença condenatória recorrível: I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança”.

Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 3.112-DF, ano de 2007, pacificou que “o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade da fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente”[14].

Portanto, há muito o ordenamento pátrio não mais alberga a prisão ex lege, automática, independente de fundamentação. Para Renato Brasileiro de Lima, não se pode admitir “uma ordem legislativa que abstrata e antecipadamente subtraia da apreciação do Poder Judiciário a análise da necessidade da segregação cautelar diante dos elementos do caso concreto (vedação à prisão ex lege – inciso LXI). Admitir essa necessidade abstrata (firmada pelo legislador) significa conceber prisão obrigatória, eis que o juiz não poderá questionar os critérios legais, nem terá necessidade de fundamentar a decretação da prisão, o que importa em evidente retrocesso, eis que tal espécie de prisão foi abolida do ordenamento pátrio em 1967 pela Lei nº 5.349[15].


[1] CPP: Art. 492………………………………………………..
I- ……………………………………………………………….
e) determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direito e pecuniárias, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;
…………………………………………………………………….
§ 3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação.
§ 4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo.
§ 5º Excepcionalmente, poderá o Tribunal de Apelação atribuir efeito suspensivo à apelação, quando verificado cumulativamente que o recurso:
I – não tem propósito meramente protelatório;
II – levanta uma questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto.
§ 6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente no recurso ou através de petição em separado dirigida diretamente ao Relator da apelação no Tribunal, e deverá conter cópias da sentença condenatória, do recurso e de suas razões, das contrarrazões da parte contrária, de prova de sua tempestividade, e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.
[2] Artigo 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
[3] Artigo 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
[4] Artigo 8.2,h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.
[5] Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória: § 1o O juiz decidirá, fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, a imposição de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do conhecimento de apelação que vier a ser interposta.
[6] Artigo 312 do CPP: Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares
[7] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 673.
[8] PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo. Reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 95.
[9] HITCHENS, Christopher. Posfácio – repensando a revolução dos bichos. In: ORWELL, George. ORWELL, George. A Revolução dos Bichos: um conto de fadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 113-121.
[10] REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Juspodvim, 2017, p.1118.
[11] REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Juspodvim, 2017, p.1119.
[12] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79883-um-em-cada-quatro-condenados-reincide-no-crime-aponta-pesquisa. Acesso em 18.fev.2019.
[13] LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
[14] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=491806. Acesso em 18.fev.2019.
[15] LIMA, Renato Brasileiro de. Curso de Direito Processual Penal. Niterói: Editora Impetus, 2013, p. 968.

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