Direito Civil Atual

Mudar o vigente regime sucessório brasileiro é urgente

Autor

  • Carlos Alberto Garbi

    é mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Pós-doutorando pela Universidade de Coimbra em ciências jurídico-empresariais. Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Consultor e advogado. Professor e Chefe do Departamento de Direito Privado e Social da FMU-SP.

11 de março de 2019, 8h02

ConJur
O tema deste ensaio[1] nos preocupa muito e a honra de ocupar novamente esta coluna oferece a oportunidade para propor uma necessária reflexão sobre o vigente direito sucessório brasileiro.

Não há dúvida, é um dado da experiência, sobre as relações existentes entre o modelo de família, em um determinado momento histórico, e a regulamentação do direito sucessório em razão da morte, o que impõe atenta e permanente observação das relações sócio-familiares.[2] Vivemos um tempo de enfraquecimento do antigo paradigma do casamento duradouro. Os vínculos afetivos se desfazem mais frequentemente e logo são refeitos, muitas vezes, em famílias reconstituídas e poliformes[3], matrimonializadas ou não. Não cabe fazer aqui juízo de valor a respeito da efemeridade dos relacionamentos afetivos nos dias de hoje.[4] Cuida-se apenas da constatação de um fato que caracteriza a família contemporânea.

Embora o modelo familiar atual revele profundas transformações ocorridas nos últimos anos, o direito sucessório pouco mudou para acompanhar a nova família[5], mostrando-se insensível aos interesses ou expectativas colocadas nas famílias reconstituídas e sobrepostas. Há nesses novos relacionamentos um núcleo familiar desfeito e outro reconstituído, gerando expectativas sucessórias em polos diversos e sob tensão, não resolvida adequadamente pelo vigente ordenamento.

O cônjuge e o companheiro deixaram de ser o parceiro definitivo idealizado no direito sucessório vigente, que os incluiu entre os herdeiros (necessário, no caso do cônjuge).[6] As relações afetivas se desfazem e se refazem deixando o cônjuge ou companheiro em posição diversa daquela que foi a base do direito sucessório atual. Bem observa Pasquale Laghi, a propósito dessas mudanças na família, que o sistema, em tema de família e sucessão, perdeu a sua ratio unitária e a coordenação normativa comum que o legislador havia imposto.[7]

A ideia de que o casamento deveria ser uma relação duradoura, e até indissolúvel (como foi no direito brasileiro até 1977), conduzia ao entendimento de que os herdeiros do cônjuge morto eram seus filhos (filhos de sangue) e que o patrimônio transmitido permaneceria, ainda quando admitida a concorrência do cônjuge, no interior daquele núcleo familiar.[8]

Essa é ainda a ratio do regime sucessório. Sucede que o modelo da família contemporânea modificou substancialmente essa relação e já não se pode pensar que o casamento, e também a união entre as pessoas, são duradouras tanto quanto foram até a metade do século passado, assim como não se pode pensar que o autor da herança transmite o seu patrimônio sempre a filhos de sangue, e de igual ascendência, porque as famílias recompostas são integradas muitas vezes por filhos de outras relações. Nascem nesses novos núcleos familiares relações afetivas diferentes envolvendo o cônjuge e seus enteados que muitas vezes justificam pretensões sucessórias.

A ideia, portanto, de que o autor da herança fez a longa jornada da vida ao lado do único cônjuge ou companheiro, e que as suas relações familiares são estabelecidas exclusivamente por laços de sangue, a legitimar o direito sucessório, não é mais verdadeira.

Olhar para o direito sucessório brasileiro vigente invoca ainda, e necessariamente, a memória do longo caminho que se percorreu na busca de assegurar direitos ao cônjuge, desfavorecido que era na sucessão, porquanto sempre se privilegiou a descendência e a ascendência, seguindo bem de perto a máxima amor primum descendit, deinde ascendit[9].

A evolução do direito sucessório brasileiro ocorreu em favor especialmente da mulher, que se via muitas vezes desamparada com a morte do marido, seja pelo fato de não estar integrada ao mercado de trabalho, como era natural no modelo patriarcal de família, seja porque desfavorecida no regime patrimonial de bens no casamento e no regime sucessório. Foi efetivamente com o Código Civil de 2002, na vigência da Constituição solidarista de 1988, que o cônjuge passou a uma posição protagonista no direito sucessório, ao se colocar em concorrência com os demais herdeiros na divisão da herança.

No entanto, esta importante mudança no status sucessório do cônjuge, promovida pela Constituição de 1988 (igualdade entre filhos e cônjuges e entre o homem e a mulher), ocorreu fora do tempo adequado, porque o protagonismo que lhe foi conferido já não refletia a posição que passou a ter no modelo familiar contemporâneo.[10] No momento em que o cônjuge deixou de ser o companheiro de uma vida inteira para fazer parte de relacionamento não duradouro, se enfraqueceu o vínculo afetivo que justificava o seu privilégio ou a igualdade na sucessão.

O que resulta efetivamente do vigente e anacrônico regime sucessório é um favorecimento injustificado do cônjuge e do companheiro supérstites, em detrimento da descendência, na medida em que se deixa de pesar na solução do direito sucessório entre filhos e cônjuge, de segunda e outras relações, o momento no qual se adquiriu essa legitimação sucessória.[11]

Na próxima semana será publicada a segunda parte deste artigo na qual se procura evidenciar os efeitos negativos do atual regime sucessório em vigor e as proposições para a sua mudança.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM)

[1] Este artigo foi apresentado originariamente no V Congresso Iberoamericano de Direito de Família e das Pessoas, promovido pela Academia Iberoamericana de Derecho de Famlia y de las Personas e pela ADFAS – Associação de Direito de Família e das Sucessões, e realizado em São Paulo em Agosto de 2018, com o título Proposições para um novo direito sucessório no Brasil, publicado in Família e Pessoa: uma questão de princípios, sob a coordenação de Regina Beatriz Tavares da Silva e Ursula Cristina Basset, pela YK Editora, 2018. A versão agora apresentada sofreu pequenas alterações.

[2] Maria Carmela Venuti. I diritti successori della persona unita civilmente e del convivente di fatto: un confronto con il sistema tedesco. Europa e diritto privado 4/2017, p 1.241. Rivista trimestrale. Giuffrè Editore. Diretta da Carlo Castronovo e Salvattore Mazzamuto.

[3] Famílias formadas por pais com filhos de relacionamentos diferentes. Podem ser chamadas também de família multiparental, recomposta, mosaico, binuclear ou pluriparental, em forma de constelações ou arquipélagos.

[4] A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos no “líquido mundo moderno” em que vivemos é objeto de numerosos estudos de Zygmunt Bauman, destacando-se a propósito do tema deste ensaio o livro Amor Líquido (Ed. Zahar, 2004), cuja leitura poderá nos levar a conhecer uma parte deste mistério.

[5] Andrea Fusaro assinala a forte influência que as codificações em geral receberam do direito francês há dois séculos, especialmente a garantia da legítima em favor de descendentes e ascendentes e a consequente limitação da autonomia privada do testador. Sucede que o tempo passado denuncia a não adequação desse direito sucessório em face da modificação do cenário social e econômico, se mostrando indiferente a diversas situações de necessidade e mérito na sucessão e ineficiente a respeito das exigências da família recomposta ou reconstruída (L’espansione dell’autonomia privata in âmbito successorio nei recenti interventi legislativi francesi ed italiani. Tendenze del Diritto Privato in Prospettiva Comparatistica, G.Giappichelli Editore – Torino, 2015, p. 277-278).

[6] Neste breve ensaio sobre o tema da sucessão preferimos tomar o companheiro em condição de igualdade com o cônjuge. É certo que essa igualdade plena, inclusive para o efeito de reconhecer o companheiro como herdeiro necessário, não é admitida totalmente, embora exista uma forte tendência nesse sentido, refletida no recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu pela igualdade de direitos na sucessão (Repercussão Geral – Temas 498 e 809. Tese fixada: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do CC/2002, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do artigo 1.829 do CC/2002”). Não nos parece que ao companheiro se deva reconhecer a qualidade de herdeiro necessário, e não o foi no julgamento dos embargos de declaração concluído em 25/10/2018 (RE 646721 ED-SEGUNDOS/RS), mas esta questão não é objeto direto deste estudo.

[7] Famiglie “ricomposte” e successione necessaria: problematiche atuale, soluzioni negoziali e prospettive de iure condendo. Rivista Contratto e impresa, n. 4/2017, p. 1.344-1.345.

[8] Nessa linha de entendimento também Pasquale Laghi (op. cit., p. 1.347-1349). É a orientação que o direito civil brasileiro seguiu com o Código de 2002.

[9] É a expressão latina usada para significar que os descentes, em primeiro lugar, e depois os ascendentes, são chamados a herdar. Há muitas explicações para esta preferência pelo descendente, desde a ideia, dos mais antigos, de que o primogênito deveria cultuar o morto e por isso se lhe assegurava a herança, até os Romanos, que identificava no herdeiro descendente a continuidade e o destino eterno do seu patrimônio e de sua imagem. Para os Romanos, a sucessão envolvia uma questão de dignidade. Ver a respeito, de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, o livro Morrer e Suceder (ed. RT, 2012); de Fustel de Coulanges, o livro A Cidade Antiga (Ed. Martins Fontes, 2004); de Carlos Maximiliano, o livro“Direito das Sucessões”, v. I, 4ª ed., Livraria Freitas Bastos, 1958); e de Felipe Quintella Machado de Carvalho, o artigo “Origem da posição do cônjuge na terceira ordem de vocação hereditária” (Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 17, p. 187-217, ed. Rt, out.-dez. 2018).

[10] Na pesquisa das fontes promovida por Felipe Quintella Machado de Carvalho, já citada (nota anterior), se encontra o registro de que no projeto do Código Civil de Clovis Bevilaqua o cônjuge concorria com descendentes e ascendentes. A ideia foi abandonada, mantendo-se a orientação da Lei Feliciano Penna (Decreto 1.939/1907), que colocou o cônjuge na terceira ordem de vocação hereditária, o que revela que a orientação do atual regime sucessório era defendida há mais de um século.

[11] Nesse sentido a observação de Pasquale Laghi (op. cit., p. 1.345). No direito norte-americano o Uniform Probate Code, editado em 1969 e adotado por vários estados, estabeleceu um percentual de participação do cônjuge na herança proporcional ao tempo de convivência, chegando a 100% apenas depois de 15 anos (acessível em : http://www.uniformlaws.org/Act.aspx?title=Probate%20Code). É uma solução mais justa para a realidade das relações de família

Autores

  • Brave

    é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP, chefe do Departamento de Direito Civil das Faculdades Metropolitanas Unidas e coordenador de pós-graduação de Direito Civil da Escola Paulista da Magistratura.

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