Poder familiar

Punição sem abuso ou excesso não configura maus-tratos a menor, diz TJ-RS

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11 de março de 2019, 9h45

Para a configuração do crime de maus-tratos, tipificado no artigo 136 do Código Penal, é preciso que o agente mostre vontade livre e consciente de colocar em risco a vida ou a saúde de pessoa que esteja sob sua autoridade, guarda ou vigilância.

Por não vislumbrar a materialidade desse crime, a Turma Recursal Criminal dos Juizados Especiais Criminais do Rio Grande do Sul reverteu sentença que condenou um pai por maltratar a filha. Ele teria de cumprir 2 meses e 10 dias de detenção, pena substituída pelo pagamento de dois salários mínimos.

Para o colegiado, o tipo penal não afasta o direito de correção atribuído aos pais, punindo apenas a prática abusiva ou excessiva — o que não se verificou nos autos. ‘‘Assim é que, estando o fato nos limites do exercício do poder familiar, voto pelo provimento do recurso para absolver o acusado, com fulcro no artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal’’, registra o acórdão que acolheu a apelação do pai.

Proibições e castigos
Segundo a denúncia do Ministério Público, o réu deu tapas no rosto e puxou os cabelos da filha menor porque ela usou o computador sem a sua permissão. Embora a agressão não tenha causado lesões, o MP entendeu que o pai abusou dos meios de correção e disciplina, pondo em perigo a vida e a saúde da filha, que tinha, à época, 16 anos de idade. Como a menina fugiu de casa após a briga, o próprio pai levou o caso ao conselho tutelar, o que lhe custou a perda da guarda da filha.

Ouvida em juízo, a menina alegou que só acessou o computador do pai para pegar um trabalho da escola. Além disso, afirmou que o pai não a deixava usar maquiagem, se depilar nem fazer as sobrancelhas, porque a igreja que ele frequentava ‘‘proibia’’ as práticas. Ela e os irmãos eram proibidos de fazer outras coisas. Quem desobedecesse, era colocado de castigo — ficava de joelhos atrás da porta.

Ouvido pelo Juizado Especial Criminal Adjunto à 2ª Vara Criminal da Comarca de Caxias do Sul, o réu disse que não costuma bater nos filhos, mas o caso tomou rumo diferente porque a filha não obedeceu à ordem de não acessar o computador sem a sua permissão. Confirmou ter dado um tapa no rosto da filha, bem como tê-la segurado pelos cabelos, ameaçando surrá-la caso tivesse estragado o computador. Lembrou que é o provedor do lar e, por isso, tem autoridade sobre os filhos.

Atos abusivos
O juízo entendeu que o delito e a autoria dos maus-tratos ficaram comprovados nos vários documentos anexados à denúncia do MP: no boletim de ocorrência, nos termos do Conselho Tutelar de Caxias do Sul, nas declarações prestadas pela vítima à Polícia Civil, na denúncia registrada no "Disque Direitos Humanos" e, finalmente, na oitiva da filha em sede judicial.

O juiz Celso Antônio Lupi Kruse escreveu na sentença que o réu admitiu ter se excedido na correção aplicada à filha. ‘‘Nesse sentido, comprovada está a ocorrência dos fatos conforme vieram relatados na inicial, resultando, portanto, caracterizado o delito de maus-tratos, o que se deu diante do excesso empregado pelo réu como meio de correção ou disciplina em relação à vítima’’, convenceu-se, dando procedência à denúncia criminal do MP.

‘‘Demonstrado, mesmo modo, o dolo no agir do acusado, ao declarar em juízo que, por ser o provedor da família, seus filhos deveriam lhe respeitar, utilizando-se de castigos e da agressão noticiada para garantir o que entendia como disciplina, mas que, na verdade, consistiam-se em atos abusivos para que os menores seguissem as normas que ele próprio julgava serem as corretas em razão da religião que professava’’, concluiu.

Ilação politicamente correta
Os juízes integrantes da Turma Recursal Criminal reformaram o julgado por entender que não foi produzida prova de que o acusado teria agido abusivamente ou se excedido nos meios de ‘‘correção e disciplina’’. Ou seja, por não ficarem claros os riscos à vida e à saúde da menor, não restou perfectibilizado o tipo penal. Por isso, acolheram a apelação para absolvê-lo das imputações.

O relator do recurso no colegiado, juiz Luís Gustavo Zanella Piccinin, disse que o réu pode ter castigado a filha, ‘‘ainda que de modo inusual’’, porque esta se mostrava desobediente. Tanto que mãe dela, em depoimento prestado à polícia, atestou que o réu não é dado a surrar os filhos, colocando-os de castigo somente quando o desrespeitam. E, neste ambiente, segundo relato da mãe, a filha era a que mais confrontava o pai, pois não se conformava com as proibições.

O relator destacou que, embora reprováveis a conduta e os meios empregados pelo acusado, só seria possível vislumbrar maus-tratos por ‘‘ilação e conclusão politicamente correta’’, num cenário onde o estado pretende dizer como os pais devem se relacionar e educar os filhos. ‘‘A educação que se dá pode ou não ser a ideal, e seguramente aqui não o é; mas, por igual, descabe considerar que o pai rudimentar, que bem ou mal dá atenção aos filhos e procura moldá-los aos proibitivos familiares e especialmente à negativa de uso de equipamento eletrônico, possa ser punido por ter castigado a filha que lhe faltou com obediência’’, complementou no acórdão.

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Processo 010/2.15.0006261-5 (Comarca de Caxias do Sul)

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