Governo juiz

"Se alguém manda, é o Carf que vincula a Receita Federal, não o contrário"

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10 de março de 2019, 8h00

Spacca
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) enfrenta uma espécie de crise de identidade desde que foi deflagrada a chamada operação zelotes, em 2014. A investigação, que reuniu Ministério Público Federal, Receita, Corregedoria do Ministério da Fazenda e Justiça Federal, nasceu para investigar uma suposta rede de corrupção envolvendo conselheiros do Carf. Os resultados são poucos, mas serviram para transformar o Conselho de maneira radical.

Antes da operação, a reclamação era de parcialidade do Carf. Durante seus desdobramentos, virou senso comum falar da corrupção dos conselheiros representantes dos contribuintes. Hoje, quase cinco anos depois, o órgão está sob constante suspeita e vigilância, mas só recebeu seis representações por nulidade decorrentes da zelotes, num universo de centenas de decisões envolvendo mais de R$ 60 bilhões.

Mas tem julgado mais, segundo a presidente do Carf, Adriana Gomes Rêgo. Com uma composição 40% menor que em 2014, julgou 9% mais, mas liberou processos que discutiam valores 139% maiores, conta a auditora, em entrevista exclusiva à ConJur.

Hoje, o problema são justamente os processos de baixa complexidade, que discutem até 120 salários mínimos, que se acumulam sem solução. O plano, diz ela, é investir em tecnologia e gestão para dar celeridade ao que não precisa de muitas horas de dedicação, enquanto se aposta em transparência e qualificação dos julgadores para dar contas dos processos mais vultosos.

Em entrevista à ConJur, Rêgo garante que o Carf hoje é um órgão mais preparado do que já foi e afirma que as acusações de parcialidade não fazem sentido. Prova disso, diz ela, é que 75% das decisões, tanto de manter o lançamento quanto de desconsiderar, são unânimes. "Conselheiros da Fazenda votam contra a Fazenda e contribuintes votam contra contribuintes", afirma.

Leia a entrevista:

ConJur — Quando era ministro da Fazenda, o hoje presidente do BNDES Joaquim Levy transformou o Carf numa ferramenta de arrecadação. E reclamação frequente entre advogados é que a Receita manda no Carf. Qual a sua opinião sobre esse quadro?
Adriana Rego — Se alguém tiver que mandar, vai ser o inverso, porque temos as súmulas vinculantes, que vinculam toda a administração tributária federal. Portanto, o Carf vincula a Receita. Não existe nenhum ato dizendo que a Receita possa mandar. O Carf  é um órgão autônomo, de controle da legalidade, do ato administrativo, e a Receita indica os representantes da Fazenda, como as confederações indicam os representantes do contribuinte. A participação da Receita no Carf é tão igual à participação das confederações.

ConJur — O Carf é um órgão imparcial?
Adriana Rego — Claro. Temos dois valores básicos: celeridade e imparcialidade. Em 2018 fiz um levantamento para verificar isso. O diagnóstico foi de que 75% das decisões a favor da Fazenda são por unanimidade e 76,5% das decisões a favor do contribuinte são por unanimidade. Significa que aquilo que é mantido é, quase sempre, mantido por unanimidade. E o que é para ser derrubado, também. Ou seja, quem é representante da Fazenda derruba e quem é contribuinte também derruba. 

A noção de que as decisões têm de ser 50% para cada lado é errada. Se fosse assim, eu jogava para cima e via onde ia cair. Fazemos controle de legalidade de um ato administrativo do servidor que já passou pela revisão da Delegacia de Julgamento. Se eu entender que deve ser metade para a Fazenda e metade para o contribuinte, estou dizendo que 50% do que a Receita faz é lixo. Então essa não é uma maneira de medir a imparcialidade.

ConJur — Existe paridade de armas no Carf? A PGFN tem acesso ao sistema de votos, pode pedir retirada de pauta a qualquer momento, enquanto os advogados têm prazo, pode falar com o presidente a hora que quiser, e os contribuintes precisam agendar visita… Isso não desequilibra a balança?
Adriana Rêgo — Não, isso não existe. No colegiado temos um sistema seguro e compartilhado em que o relator deposita o voto. Na hora que abre a sessão eles têm que depositar os votos e então eu digo "vamos votar primeiro tal, segundo tal e tem a pauta a ordem da pauta, a gente dá preferência aos patronos presentes e aí os conselheiros depositam os votos". Procurador tem assento no colegiado, mas esse sistema eles não conseguem ver. É rigorosíssimo! Eu jamais permitiria qualquer vazamento. Chega um suplente, eu tenho que autorizar de última hora. Só os membros daquele colegiado têm acesso. Imagina um negócio desse! Se ele tira o processo, se o processo sai com vista, o voto dele é consignado em ata pública. Para ninguém dizer "vou convencer aquele conselheiro a votar a favor de você, vou extorquir". Ninguém além do colegiado tem acesso.

ConJur — Os conselheiros fazendários recebem o "bônus de eficiência" pago a auditores fiscais conforme as multas que aplicam. Isso não interfere nos julgamentos?
Adriana Rego — Não, porque o bônus é concedido independente de qualquer coisa. É sobre o valor que entra na arrecadação da Receita. Na época que o bônus foi criado houve quem alegasse que ele seria causa de suspeição, mas todos os casos foram levados ao Judiciário e nenhum logrou êxito. Houve essa discussão aqui, mas isso já foi esclarecido e superado.

ConJur — Impedir advogados de serem conselheiros melhorou a qualidade dos julgamentos?
Adriana Rêgo — Comparar isso com a qualidade dos julgamentos é temerário e equivocado. Para ser conselheiro dos contribuintes, a pessoa tem que provar conhecimento de processo administrativo fiscal, de tributos, experiência profissional na área. A maioria aqui tem mestrado, muitos têm doutorado, são professores. Agora, são pessoas mais novas do que os mais experientes do mercado. Quem tem escritório grande, com funcionários, estagiários, grandes causas, como pode conciliar? Agora a pessoa não pode advogar, mas se dedica mais ao Carf. Ela pode dar aula, tem alguns que são funcionários de federação, de banco, os que são funcionários e não podem ter registro na OAB.

ConJur — Muitos advogados acusam o Carf de ter se transformado numa instância homologatória das decisões das DRJs. É mesmo? Em 2016, o índice de reforma era de 52%. Continua assim? 
Adriana Rego — 
A decisão que reforma a decisão da DRJ é uma decisão que dá provimento a um recurso voluntário, certo? O contribuinte já vem derrotado da DRJ, e aí apresenta o recurso ao Carf. Agora, não faço esse levantamento. E se fosse 70% de reforma? Significaria que a produção da DRJ é lixo? A sociedade precisa ver: a nossa imparcialidade é tanta que as reformas são unânimes.

ConJur — O Carf só segue as decisões do Supremo e do STJ que entende que devem ser seguidas. Por quê?
Adriana Rego — Perde o mandato o conselheiro que não cumprir uma decisão vinculante – se for vinculante – do STJ ou STF. De tão grave que é deixar de seguir um precedente vinculante. O que acontece é que no caso concreto às vezes se verifica que ele não se submete àquela decisão lá do STJ, e isso está sendo alegado por uma das partes. Mas o relator tem que dizer por que ele deixa de aplicar uma decisão do STJ.

ConJur — Que balanço a senhora faz do seu primeiro ano de gestão?
Adriana Gomes Rêgo — 
Sou presidente há um ano, mas acompanhei toda a evolução do Carf pós-zelotes. O que foi feito em 2018 foi uma continuação do que vinha sendo feito desde 2015. Houve mudanças na área de governança e gestão e também mudanças operacionais. E as vejo positivamente, de modo geral. Nossos dados sinalizam que o caminho tem que ser esse.

ConJur — O que os dados mostram?
Adriana Rêgo —
 Em 2018 foram 25 mil decisões, contra 23 mil em 2014, 9% a mais. Só que tínhamos, em 2018, uma composição 40% menor que em 2014. Então houve mecanismos de eficiência, como o julgamento de processos repetitivos.

Em termos de crédito tributário, julgamos R$ 430 bilhões em 2018, contra R$ 157 bilhões em 2014. É 139% a mais. E a quantidade de processos não caiu, porque em 2016 mudamos a metodologia e fizemos o seguinte: sorteamos os processos por horas de processo, então eles chegam já classificados por complexidade. Os processos , sorteamos mensalmente de acordo com 126 horas de processo para cada relator.

ConJur — O que isso significa?
Adriana Rêgo —
 As horas dos processos baixaram, porque os processos de maior valor são mais complexos, então a quantidade não mudou tanto, mas o crédito tributário caiu e julgamos mais. Só que precisa explicar isso pra sociedade, porque se mostrar só um gráfico de quantidade de processos, não dá para ver uma mudança muito significativa. Foi por isso que divulgamos também esta informação: número de horas relatadas. Comparando 2018 com 2016, julgamos 63% a mais em termos de horas de processos. É um dado que bateu com a nossa informação do crédito tributário. E comparando 2018 com 2017, 25% a mais, porque já tínhamos um colegiado mais completo.

Em 2015, metade do nosso corpo de conselheiros foi renovado, porque os conselheiros dos contribuintes tinham que se licenciar da OAB para poder julgar, então todos saíram. Com a limitação de mandatos, agora a situação é o inverso: os conselheiros dos contribuintes são mais antigos porque depois os conselheiros da Fazenda tiveram que ser renovados também. E essa renovação é boa do ponto de vista da integridade, mas também traz esse contraponto que a pessoa menos experiente demora mais para produzir.

ConJur — Assim que a zelotes foi deflagrada, o Ministério da Fazenda reformulou o Carf inteiro. Quatro anos depois, no entanto, vemos poucos resultados nas investigações. O que elas conseguiram foi colocar julgamentos vultosas sob suspeita, especialmente os que tratam do que a Procuradoria da Fazenda chama de ágio interno. A zelotes foi montada para agilizar a constituição do crédito tributário?
Adriana Rêgo  Recebemos aqui seis representações de nulidade da Corregedoria do Ministério da Fazenda e do Ministério Público, dizendo que alguém que participou desses julgamentos estava comprometido. A maior parte veio da Corregedoria, que pegou os casos da zelotes em que havia prova. Eles trazem dados, emails, contratos de conselheiro recebendo suborno, essas coisas. O Carf, então, analisa aquilo que vem como acusação de que aquele acórdão estava viciado. E aí julgamos se mesmo esse vínculo, se a pessoa estava mesmo impedida de julgar. Se se entender que sim, o processo vai para novo julgamento. Eu sequer sei se esses casos são necessariamente de ágio interno, porque estamos olhando ainda o vínculo. 

ConJur — O Carf ficou mais rígido depois da zelotes?
Adriana Rego — 
Eu sou dura, cobro. Para chegar a isso aqui fizemos controle de prazo. No Supremo, um relator, tem em média 150 dias para formalizar um acórdão. Aqui são 30, e se o conselheiro atrasar será notificado. Por tudo o que a gente viveu, tinha que moralizar. Mudamos o regimento e mudamos a parte administrativa do Carf para trabalhar por processo de trabalho.

O que aconteceu: tinha secretarias de câmara preparando ata, preparando pauta, acompanhando julgamento, acompanhando a formalização e a expedição do processo. Vamos criar uma coordenação de suporte a julgamento que vai cuidar de uma divisão do pré-julgamento, que é a pauta; uma divisão de suporte ao julgamento e uma divisão de pós-julgamento, que é a formalização. Vai fazer o mesmo processo de trabalho. Então tenho uniformização, qualidade e aproveitamento de atividades, de servidores. E tenho a impessoalidade também no tratamento. 

Temos gestão de risco e comitê interno de governança. E ele não existe para fora, só para quem vê o julgamento. É para ter essa impessoalidade no tratamento. Entre o juízo de admissibilidade e a decisão, a média de julgamento da Câmara Superior em 2018 foi de 76 dias e das turmas ordinárias, 82 dias. 

ConJur — Qual o principal problema do Carf hoje?
Adriana Rêgo — Temos muitos processos de pequeno valor entrando no Carf. Em 2018, 64% dos nossos processos tinham até 120 salários mínimos em discussão. É um voluma muito grande de processos que precisam de celeridade.

ConJur — Por que esses casos chegam até o Carf?
Adriana Rêgo —
 O que acontece é que a Receita Federal tem um botão lá que faz não sei quantos mil lançamentos de uma vez. É malha, é eletrônico. E não tenho o tratamento da malha aqui. Então a maior dificuldade é dar vazão a processos de baixa complexidade, que é o que buscamos. Vamos ter que aumentar as turmas extraordinárias. Tem processos que são julgados a distância com quatro conselheiros, sessão não presencial, portanto, é possível reduzir esse acervo.

ConJur — Tem se tornado uma tradição de início de ano, ou de governo, sugerir o fim do Carf. Em 2019, o Sindifisco sugeriu acabar com as câmaras baixas e deixar só a CSRF. O que acha da ideia?
Adriana Rego — A imprensa noticia até que o governo estuda acabar com o Carf. Não conheço nenhuma proposta nesse sentido. Mas é claro que o Carf não tem que ser extinto. Claro que acredito e luto pela continuidade dele. Precisa de mudanças, pode ter reformulações, mas o Conselho presta um serviço importante para a sociedade. Temos 122 mil processos aguardando julgamento. Por isso acredito que não vai acontecer uma mudança no contencioso dessa forma. Se houver alguma mudança desse tamanho, vai ter que ser pelo Legislativo, com participação da sociedade — mas, repito: desconheço qualquer proposta do governo de acabar com o Carf.

ConJur — E o que acha da ideia de acabar com as câmaras baixas? 
Adriana Rego —
 Primeiro, temos que resolver os muitos processos aqui que tem que ser julgados. Não pode ser da noite para o dia. O que vai fazer com os recursos aqui? 93% dos 122 mil processos são recursos voluntários, do contribuinte. Tem que ter lei para fazer isso! Tem que pensar o modelo. Porque hoje a DRJ e o Carf julgam e a Câmara Superior julga as divergências entre as turmas ordinárias. Então não só acabar. Só na 2ª Seção da CSRF tem um atraso de seis meses, então as coisas têm que ser bem pensadas. 

ConJur — Existe uma reclamação dos conselheiros dos contribuintes sobre a disparidade salarial. Eles recebem gratificação por presença, enquanto os representantes da Fazenda continuam com seus salários de servidor, que ficam em torno de R$ 20 mil.
Adriana Rêgo — É o seguinte: o servidor público federal se rege pela Lei 8.112, que dá direito a férias, licença maternidade, paternidade, enfim. O conselheiro do contribuinte é considerado um agente público porque exerce uma função pública, toma decisões administrativas, mas não é concursado. Eles recebem a gratificação, que os vincula ao Carf. Não se pode estender benefícios da lei ao bel prazer do administrador — e há pareceres da PGFN falando isso. Quando os conselheiros entram eles sabem disso. Certo?

ConJur — E não tem nenhuma perspectiva de mudança? 
Adriana Rego — 
Pode ser que mude, porque as confederações têm propostas de alteração nessa parte da remuneração. Mas a equiparação que eles querem é do regime, não só da remuneração. E isso tem de ser lei. Uma vez me perguntaram se eu cobro da mesma forma os representantes da Fazenda e dos contribuintes, diante da disparidade nas remunerações. E claro que cobro. No dia anterior à pergunta tinha saído uma resolução do Comitê de Seleção declarado a perda do mandato de um conselheiro fazendário e de um dos contribuintes por perda de prazo. Agora, quem está de licença com base na Lei 8.112 está amparado pela lei. Os representantes dos contribuintes não têm essa licença e isso incomoda, mas é da lei. Se o Carf fizer diferente, descumpre a lei.

ConJur — Hoje advogados só podem falar com conselheiros numa sala e a conversa é gravada. Isso não fere as prerrogativas da defesa?
Adriana Rêgo — Não. O ambiente monitorado traz segurança para todos. É um ambiente visto com um critério de integridade.

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