Opinião

Tokenização do mercado de ações: a democratização do acesso a investimentos

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9 de março de 2019, 7h17

O mercado de ações como conhecemos foi desenhado para ser operado por uma estrutura centralizada nas bolsas de valores e instituições financeiras. Tais estruturas são mandatadas pelas companhias para listarem suas ações, além de realizarem toda custódia, escrituração, compensação e liquidação das ordens de transferências de ações. Essa lógica de mercado existe desde 1602, quando a Dutch East India Company fez a primeira oferta pública de ações da história.

Ao longo dos últimos 400 anos, não foram poucas as inovações e mudanças no mercado de açõespassando da melhoria dos procedimentos de segurança e digitalização de processos ao fim do pregão presencial e operações de alta frequência. Apesar de todos esses avanços, ainda vivemos sob a mesma forma organizacional, que prescinde da figura das bolsas de valores e instituições financeiras para a abertura de capital de uma empresa.

Em razão dessa mecânica do mercado, em alguns países, o acesso à abertura de capital se torna bastante limitado frente aos elevados custos, ficando restrito a um seleto grupo de companhias (no Brasil, menos de 350 empresas possuem ações listadas em bolsa).

Não bastassem os elevados custos, que afastam pequenas e médias empresas do mercado de ações, a atual estrutura acaba por dificultar o acesso dos investidores de outros mercados, tendo em vista os desafios para que outra bolsa de valores passe a listar as ações.

Na última década, acompanhamos a consolidação de diversas empresas globaistais como Amazon, Facebook, Google, Apple e Netflix —, que atraem uma verdadeira legião de admiradores, dada sua forte identificação com o consumidor, e potenciais investidores. Apesar da notoriedade mundial dessas empresas, o atual modelo do mercado de ações não lhes permite explorar economicamente essa notoriedade, em razão da dificuldade em se distribuir as ações em outros mercados, além daquele no qual abriram seu capital.

Buscando resolver essas dificuldades, diversos empreendedores vêm experimentando a blockchain para aumentar a liquidez de ativos, permitir o acesso a diversos mercados de forma simultânea, além de possibilitar o fracionamento de ações, mediante o processo de “tokenização”.

A arquitetura blockchain permite a criação de tokens das mais variadas naturezas, os quais podem ser transacionados de forma peer-to-peer, ou seja, diretamente entre pessoas, sem a necessidade de uma entidade controladora das operações.

Com essa sistemática, a blockchain do bitcoin encontra-se em funcionamento há mais de 10 anos, operando em regime 24/7, possibilitando a qualquer interessado a transação de frações deste ativo (até a 8 casa decimal), com a custódia, escrituração, compensação e liquidação das ordens de transferências executadas de forma automática e eficiente pela própria rede blockchain.

Nessa linha, algumas iniciativas — tal como a startup norte-americana Abra — estão buscando alternativas para tokenizarem ações, a fim de permitirem o acesso global a tais ativos, bem como a compra de frações, resultando na democratização do acesso aos investimentos.

Logo, a arquitetura blockchain surge como uma potencial ferramenta à expansão do mercado de ações.

Mas, se por um lado, há avanços do ponto de vista tecnológico, de outro, os empreendedores ainda se deparam com desafios no espectro regulatório.

Como é sabido, o mercado de ações é repleto de regras e restrições — com foco na proteção de investidores — que acabam gerando dificuldades quando do surgimento de novas tecnologias como a blockchain.

Nesse sentido, ainda não se tem notícia de uma jurisdição que possua regras claras e objetivas que permitam a utilização da blockchain de forma direta em substituição aos atuais sistemas utilizados pelas bolsas de valores.

Ora, conquanto isso possibilite efetivo ganho potencial com a tokenização de ações, tal mudança traria severos impactos na atual mecânica de custódia, escrituração, compensação e liquidação das ordens de transferências de ações as quais passariam a ocorrer de forma automatizada, na própria rede blockchain.

Diante disso, enquanto uma modificação dessa magnitude não se concretiza, empreendedores têm buscado os mais diversos mecanismos para evitar que a morosidade das autoridades e o atual modelo do mercado de ações obstrua a amplitude econômica que determinadas empresas poderiam alcançar.

Neste contexto, visando aproveitar-se dos benefícios e possibilidades trazidas pela blockchain, alguns empreendedores têm efetuado a oferta de tokens representativos de ações, utilizando-se de dois caminhos distintos: (a) contrato de investimento; ou (b) mútuo conversível.

Na modalidade do contrato de investimento, a emissão de novas ações pela companhia, que usualmente não conferem direito a voto (explicaremos abaixo os motivos), todas subscritas pela própria companhia para manutenção em tesouraria. Aumentado o capital, a própria companhia emitirá tokens lastreados nas ações mantidas em tesouraria, assumindo ela, companhia, o compromisso de não negociá-las e cumprir as regras relativas ao prospecto ofertado aos investidores dos tokens.

Nesta configuração, a companhia será a responsável pela custódia, escrituração, compensação e liquidação das ordens de transferências dessas novas ações emitidas, além dos registros e identificação dos detentores dos tokens.

Por sua vez, a modalidade do mútuo conversível consiste na emissão de tokens representativos de contratos de referida natureza, pelo qual investidores emprestam recursos à companhia com a possibilidade de conversão do crédito em participação acionária, sendo necessária, neste caso, a definição das regras relativas ao momento e hipótese de conversão, além dos direitos que serão atribuídos às ações.

Conforme antecipamos, nas duas estruturas mais comuns do mercado, os tokens não correspondem às ações propriamente ditas, não havendo um vínculo direto de seu detentor com a companhia.

Por essa razão, a princípio, não seria possível justificar aos detentores dos tokens os mesmos direitos conferidos aos acionistas, tal como distribuição de dividendos, participação em assembleias e direito a voto as ações preferenciais sem direito a voto resolveria este último ponto.

Em ambas as estruturas propostas, teremos o desafio de vincular os tokens aos valores mobiliários em questão. Esse é o maior obstáculo a ser enfrentado, cuja ausência de solução concreta tem gerado a redundância de registro e controle das transferências, tanto pelo método atual quanto pela blockchain.

A autoridade monetária de Cingapura, por exemplo, propôs que os padrões regulatórios fossem revisados para acomodar as bolsas descentralizadas baseadas em blockchain. Adicionalmente, o Banco Central está explorando solicitações de blockchain para compensação e liquidação de pagamentos e títulos. E no final de abril, a agência governamental de propriedade intelectual disse que aceleraria o processo de patente para empresas de tecnologia, incluindo as que criam aplicações em blockchain.

Na mesma linha, Luxemburgo está discutindo uma nova regulação para emissão de criptoativos, que poderá reconhecer as transferências efetuadas em blockchain. Por sua vez, o Reino Unido, por meio da autoridade financeira (FCA), está desenvolvendo um Sandbox regulatório para fintechs, no qual serão testadas iniciativas de emissão de criptoativos, permitindo um maior contato da autoridade com essas novas tecnologias.

Além dos desafios operacionais e regulatórios acima referidos, vale destacar que cada jurisdição possui regras próprias em relação ao perfil de investidor qualificado e criação de mercado secundário. Esse último ponto é, sem dúvida, de grande interesse dos emissores de tokens, visto que é na existência e desenvolvimento do mercado secundário que reside a maior liquidez das ações.

Ao leitor pode parecer, frente aos desafios e limitações acima, que a tokenização é uma realidade distante, servindo apenas como instrumento de marketing para as companhias.

Nosso entendimento, contudo, é absolutamente diverso, eis que justamente em razão desses desafios, projetos de tokenização de ações devem ser cada vez mais encorajados.

Somente quando tais projetos criarem corpo e histórico, autoridades e reguladores passarão a conhecer mais a fundo riscos e benefícios resultantes dprocesso, adquirindo o know how necessário para viabilizar a tokenização do mercado de ações.

Afinal, toda disrupção exige sacrifícios, como se pode observar no caso dos aplicativos de transporte e mobilidade urbana, e, certamente, não será diferente no mercado de ações.

Conquanto sejam muitos os desafios, só teremos uma economia verdadeiramente global, com todos os avanços a ela inerentes, quando todos tiverem as mesmas oportunidades e acesso, seja para captação ou investimento de recursos.

Autores

  • Brave

    é especialista em blockchain pela University of Oxford e pelo MIT - Massachusetts Institute of Tecnology, membro-fundadora da Oxford Blockchain Foundation e cofundadora na The Global Strategy. Atualmente, cursa Cybersecurity em Harvard University.

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    é sócio-fundador do CB – Carvalho Borges Associados e membro-fundador da Oxford Blockchain Foundation. Especialista em blockchain pela Universidade de Oxford e pelo Massachussets Institute of Technology (MIT) e em Direito Societário pelo Insper.

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