Opinião

Feminismo como antídoto à perversão

Autor

  • Roberto Parahyba de Arruda Pinto

    é ex-presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de SP conselheiro da Aasp (Associação dos Advogados de São Paulo) especialista em advocacia preventiva e judicial e especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Salamanca (ESP).

9 de março de 2019, 16h10

A luta feminista pela concretização do direito universal à igualdade substancial entre homens e mulheres está relacionada ao surgimento do Direito do Trabalho. As primeiras normas trabalhistas, bem como as iniciativas tendentes à sua universalização, visaram exatamente limitar a jornada de trabalho das mulheres e proibir o trabalho noturno aos menores. O artigo 23 do Pacto da Sociedade das Nações, que se firmou após a primeira grande guerra com o compromisso de uma paz universal tendo como base a justiça social, determinava que os membros das Sociedades das Nações se esforçariam para assegurar condições de trabalho equitativas e humanitárias para o homem, a mulher e a criança em seus próprios territórios e nos países aos quais estendessem suas relações de comércio e indústria.

Á época da chamada Revolução Industrial, a exploração sistematizada e organizada do trabalho das mulheres, como também das crianças, que constituíam a mão de obra mais barata, apresentava condições aviltantes, degradantes, em todos os aspectos (jornada, ambiente de trabalho, salário, etc.). Nos dizeres de Orlando Gomes: “Nenhum preceito moral ou jurídico impedia o patrão de empregar em larga escala a mão-de-obra feminina e infantil. Os princípios invioláveis do liberalismo econômico e do individualismo jurídico davam-lhe a base ética e jurídica para contratar livremente, no mercado, esta espécie de mercadoria. Os abusos desse liberalismo cedo se fizeram patentes aos olhos de todos, suscitando súplicas, protestos e relatórios em prol de uma intervenção estatal em matéria de trabalho de mulheres e menores[1].

A partir da Declaração Universal de 1948, começa a se desenvolver com maior intensidade o sistema normativo de proteção geral dos direitos humanos, assim como o de proteção de direitos humanos específicos, (tortura, discriminação racial, violação de crença), entre os quais, o da discriminação contra a mulher.

A Constituição Brasileira de 1988 é o marco jurídico de uma nova concepção da igualdade entre homens e mulheres. É o desaguadouro das profundas transformações sociais que se robusteceram a partir da segunda metade do século XX, e que ainda não se consolidaram na prática. O respeito aos direitos das mulheres está a exigir uma mudança de mentalidade e valores da sociedade. Afinal, pelo menos nos últimos pelo menos três mil anos, a civilização ocidental baseou-se em sistemas filosóficos, sociais e políticos em que os homens, seja pela força, pressão direta, ou através da tradição, do ritual, lei e linguagem, costumes, etiqueta, educação e divisão do trabalho, determinam que papel as mulheres devem ou não desempenhar.

Hoje, mais do que nunca, a perspectiva feminista, intrinsecamente plural e interseccional, é condição para a efetivação dos compromissos ético-jurídicos irreversíveis, e constitucionalmente positivados, como o próprio Estado Democrático de Direito, com a “erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais” (artigo 3º, II, da Constituição). O que implica o combate ao machismo estrutural da sociedade patriarcal, que tanta violência física e simbólica impinge aos mais vulneráveis.

O feminismo não é uma ideologia, mas um projeto de transformação social e política na contramão das opressões de sexualidade, gênero, raça, crença e classe social, com vistas a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e solidária. As múltiplas violências contra as mulheres (de acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil ostenta a quinta maior taxa de feminicídios, a despeito de possuir diversas políticas de proteção à mulher, como a Lei Maria da Penha, que entrou em vigor em 2006, o país ainda convive com rotina de uma mulher morta a cada duas horas), como também contra as pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros), violências essas que têm aumentado nos últimos anos com a proliferação dos discursos de ódio, são a prova eloquente da covardia institucionalizada.

O combate à covardia do patriarcado exige sobretudo coragem, o que evoca Guimarães Rosa: “O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”. A coragem afasta a acomodação, a docilidade, a frieza e a naturalização com os disparates e as barbáries antidemocráticas, insuflando o revés, o engajamento corporal, o incremento do associativismo, permeado pelo “pensamento selvagem”, assim definido por Eduardo Viveiros de Castro: “o “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos primitivos (em oposição ao “pensamento ocidental), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não domesticado em vista da obtenção de um rendimento” [2]

A função social da propriedade, os direitos sociais trabalhistas, o patrimônio público, o equilíbrio ambiental, tudo isso tem sido classificado como entraves ao desenvolvimento econômico, como despesas que devem ser cortadas “em vista da obtenção de um rendimento”, alcançado à custa da devastação da natureza e da gestação perversa de desigualdades sociais; o que têm sido a tônica da sociedade patriarcal, como revela o paradigmático comportamento adotado pela Vale do Rio Doce na recente tragédia de Brumadinho.

Nessa lógica trágica de desregulamentação e financeirização, flexibilizam-se os direitos sociais trabalhistas, afrouxam-se as condições de segurança do trabalho, desmantelam-se as instituições, órgãos e agências responsáveis pela fiscalização e aplicação das normas ambientalistas e dos parcos direitos sociais, em completa submissão do Estado aos interesses privados empresariais. Alguns economistas chamam isso de “competividade espúria”, – aquela baseada na predação do patrimônio natural e social, em lugar da competividade com base em investimentos em educação e na criatividade de nossos cientistas. A floresta e a escola, dizia o Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade – que em sua utopia antropofágica, enxerga o matriarcado como condição humana original e libertadora. Nem uma, nem outra. Hoje há cada vez menos floresta (onde quer que ainda se veja mata, se diz: desmata), e quanto à escola (“sem partido”), agora ela se escreve “esfola”.

Os grupos vulneráveis, as mulheres, sobretudo negras, são as principais vítimas da sociedade patriarcal, notadamente a brasileira, marcada pelo signo da desigualdade. Melhorar o índice de desenvolvimento humano de grupos vulneráveis, significa se aproximar da democracia social, substancial, da qual estamos ainda muito distantes, e o pior de tudo, muitas vezes caminhando em sentido diametralmente oposto.

Ignorar ou deixar de nomear uma realidade em que pessoas são mantidas numa situação de inferioridade, elas são, de fato, inferiores. Mas como alerta Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, precisamos entender o alcance da palavra ser. Segundo a filósofa, o problema é dar um valor substancial a palavra ser quando ela tem um sentido dinâmico hegeliano. Ou seja, “ser é ter-se tornado, é ter sido tal qual se manifesta. Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores”. Resume-se sua filosofia com a famosa frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Além da emancipação das mulheres, Beauvoir reivindica sua liberdade, duas coisas que não se confundem. Pode-se dizer que a liberdade só começa onde a emancipação é adquirida. Porém, a segunda não implica necessariamente na primeira. Segundo a grandiosa Nina Simone (exímia instrumentista, cantora e compositora): “Liberdade para mim é isto: não ter medo”.

Nas palavras da filósofa e feminista Djamila Ribeiro: “A história tem nos mostrado que invisibilidade mata, o que Foucault chama de “deixar viver ou deixar morrer”. A reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida”.[3]

Pensar em feminismo é deixar de sermos (homens brancos heterossexuais) contra os ativismos do lugar de fala de vozes historicamente interrompidas, desconstruindo a ficção da igualdade, a de que partimos todos de uma posição comum de acesso à fala e à escuta. É pensar em resistências e reexistências, em propor novos marcos civilizatórios, um novo modelo de sociedade. Para tanto, precisamos quebrar o discurso opressivo, machista e autoritário prevalecente, que reforça, quando não potencializa, a já abissal desigualdade social que corrói a sociedade brasileira, simplesmente porque tais efeitos corrosivos são perversos.

[1] Curso de direito do trabalho. 6ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 4.665).

[2] (Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem, Cosac Naify).

[3] Djamila Ribeiro, O que é Lugar de Fala. Letramento: Justificando 2017 p. 43

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