Diário de Classe

Politização do sofrimento alheio: o sadismo na crise da democracia

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9 de março de 2019, 8h05

Recentemente, reações insensíveis a eventos trágicos têm revelado o que existe de pior em alguns brasileiros. Comentários desumanos tomam conta das redes sociais. Ofensas inimagináveis em desrespeito ao outro chegam a ser proferidas por “influenciadores digitais”. Até mesmo autoridades vêm testando os limites do decoro em suas manifestações. Afinal, o acirramento dos conflitos políticos vem degenerando em sadismo.

É um momento perigoso este, quando a vida pública assume uma dimensão patológica, politizando-se o sofrimento alheio. Um mínimo de humanidade é condição indispensável à convivência. Isso se torna ainda mais importante quando nos referimos ao comportamento de autoridades, que encarnam nossas instituições e seus princípios constitutivos. Por isso, deveriam representar aquilo de melhor a que aspiramos.

Para explicar essa contradição, Hélio Schwartsman[1] levanta uma hipótese (incômoda, mas sensata): no Brasil e no mundo, novas lideranças “não foram eleitas apesar de suas declarações escandalosas, mas, em alguma medida, graças a elas”. Segundo Schwartsman:

“Ao que tudo indica, o eleitor, farto da retórica dos políticos tradicionais, tomou o teor ofensivo da fala desses personagens como um signo de autenticidade, em nome da qual aceita o rebaixamento de padrões de urbanidade. Se estou convencido de que meu candidato diz ‘verdades’, não preciso me preocupar em aferir seu conteúdo. É um movimento inverso ao da autodomesticação, pela qual o ser humano aprendeu a conter seus impulsos selvagens. Nela, a adesão às normas sociais dava-se inicialmente de forma hipócrita, só para evitar retaliações do grupo. Mas, com o tempo, seguir as regras tornou-se uma segunda natureza, e acabamos incorporando seus conteúdos — o que nos deixou mais civilizados. Quando se trata de eleger líderes populistas falastrões, um pouco mais de hipocrisia, compreendida como a aceitação, ainda que fingida, das normas de convívio respeitoso, nos faria bem”.

É importante lembrar de alguns marcos históricos nessa temática. Vimos nascer o luto, a trégua e o decoro entre os antigos, retratados já nas tragédias gregas. Vimos a elaboração do conceito de tolerância, depois das guerras de religião que arrasaram a Europa. E vimos tudo isso se institucionalizar nas democracias contemporâneas, entre ocupantes e postulantes a cargos públicos, que estariam obrigados a oficiar atos como: oferecimento de condolências, paralisação de campanhas, decretação de lutos, dentre outras manifestações de civilidade.

Mesmo assim, apesar de todo esse lento e custoso processo civilizatório[2], vemos agora renascer um prazer obsceno no desrespeito aos pressupostos mais básicos de alteridade. Qualquer frustração com o tal “politicamente correto” tem sido logo dramatizada como opressão à autenticidade. Não por acaso, o surgimento de expressões depreciativas do discurso, como “mimimi” ou “textão”, é indicativo do tipo mais perigoso de ressentimento: aquele contra a própria racionalidade. Por preguiça de pensar, passa-se a silenciar vozes dissonantes através do escárnio e da truculência.

Trata-se de uma rebelião contra tudo que contém a barbárie interior, como disse Lenio Streck, ecoando Jean-François Mattéi. Nessa linha denunciada por Streck, um emotivismo tosco desponta como grande critério para a resolução de desacordos na sociedade: fazer reivindicações normativas movidas apenas por sentimentos brutos, sem elaboração ou disciplina argumentativa, sem troca de razões ou constrangimentos externos; impor-se ao outro numa fala completamente irresponsável, mas capaz de produzir “verdades” no meio social, de gerar efeitos, atingir e obrigar.

Sinal dos tempos. Depois do auge da democracia como era da intersubjetividade, vem o seu declínio na era da dessubjetivação. Negar o outro. Negar o interlocutor. Proferir enunciados fetichistas para satisfação da própria vontade de infligir dor. Assim, o discurso articulado na esfera pública dá lugar a memes, que se propagam na medida de sua capacidade para veicular ofensas.

Nesse contexto, os novos formadores de opinião não atuam mais como agentes a serviço da “publicidade crítica” que controla o Poder[3], mas de uma publicidade perversa que destrói o outro perante um auditório, fazendo de sua tragédia um espetáculo. A política e o Direito passam a se pautar por um clima de escândalos infinito, para manter a agitação das turbas. Desmentidos, ameaças, demissões e humilhações públicas geram hashtags. O populismo aparece como pornografia político-jurídica. Quanto mais o Poder for exercido com escândalos e mandonismo, mais curtidas.

Diante disso, qual a fonte de integração social desse mundo pós-moral? E qual a nossa capacidade de “fazer laço” hoje em dia? Uma sociedade também é constituída, fundamentalmente, de trocas de afetos. Talvez caminhemos para uma sociabilidade fundada no sadismo, uma forma de governo estruturada no prazer às custas dos outros, com a sua desumanização[4]. Sade aparece junto a Kant na virada da modernidade, oferecendo o reverso sombrio de seu sistema: fazer do outro um mero instrumento[5]. Uma extrapolação política desse princípio leva à perversão da democracia, na qual o uso coercitivo da maquinaria estatal se legitima, não mais por justificativas racionais, mas pelo apelo eleitoral do sofrimento imposto aos inimigos do governo.

Esse arranjo parece ser diferente das antigas formas de violência estatal. Aqui a violência é interiorizada à democracia, continuamente exposta ao eleitorado que a sustenta, propagandeada como violência, e administrada pelas lideranças populistas a partir das reações da turba em tempo real — numa interatividade desconhecida pelos ditadores. Desta maneira, o sadismo político surge como um elemento determinante da atual crise da democracia, atravessando os governos populistas[6] ao redor do mundo.

Contra este quadro desolador, gostaríamos de poder contar com a humanidade, a decência e a empatia para orientar nossas relações, como as teorias jurídicas e políticas mais ideais ambicionam. Poderíamos nos contentar com a simples tolerância e a reciprocidade[7], psicologia moral a que aderem as teorias “menos ambiciosas”, mas que ainda tentam manter um traço de idealização para pensar a sociedade.

Por fim, quando faltam sinais de qualquer sentimento moral genuíno, imploramos por um mínimo de hipocrisia, um constrangimento externo que seja, para que ao menos não se ofendam as vítimas e não se estimule a bestialidade da manada contra quem já sofre. La Rochefoucauld dizia que “a hipocrisia é o tributo que o vício paga à virtude”. É pouco, mas ao menos nos deixaria a esperança de haver virtude em algum lugar.


[1] Veja-se a contundente artigo de Lenio Streck, em que Schwartsman é citado.
[2] Sem jamais esquecer suas contradições, as muitas violências cometidas em nome da civilização.
[3] Na linha de: HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
[4] DUFOUR, Dany-Robert. A cidade perversa. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2013.
[5] Sobre as relações entre esses dois, veja-se: LACAN, Jacques. Kant com Sade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
[6] Independentemente do viés político ou ideológico.
[7] Pensemos aqui num John Rawls.

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