Opinião

O outro lado do combate à violência doméstica contra a mulher

Autor

  • Andre Luis Alves de Melo

    é promotor em Minas Gerais doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP mestre em Direito pela Unifran e associado do Movimento do Ministério Público Democrático.

8 de março de 2019, 19h24

Apesar de a cúpula do Judiciário promover comemorações no combate à violência doméstica contra a mulher, na prática a situação é bem diferente daquela apresentada em eventos festivos, marcados pela entrega de flores e elogios.

Os delitos mais comuns na violência doméstica são: lesão corporal leve (art. 129,9º, do CP), vias de fato (art. 21 da LCP) e ameaça (art. 147 do CP). Registre-se que outros crimes como feminicídios e estupros, embora gravíssimos, ainda ocorrem bem menos que os acima citados, mas muitos feminicídios foram antecedidos destes delitos menos graves que podem evoluir ou não para os de maior gravidade.

Considerando os casos de violência doméstica, é necessário o acompanhamento de outros atores além da polícia, como a equipe psicossocial. Ressalte-se que,

Embora a mídia foque nas penas máximas, no cotidiano jurídico a pena concreta tende a ficar próximo do mínimo legal previsto no tipo penal. Logo, não adianta o Legislativo aumentar a pena máxima, sem aumentar a pena mínima, como fizeram no caso do art. 129,§ 9º, do Código Penal.

As infrações penais como vias de fato e ameaça, por exemplo, prescrevem em três anos, em razão da pena máxima que não ultrapassa os seis meses. Já a lesão corporal que tem pena máxima de três anos, e prescreve em oito anos. Quando aplicada, a condenação tende a ficar próxima do mínimo legal de três meses, e a prescrição será retroativa, com o prazo prescricional reduzido para três anos, ao invés dos oito anos iniciais.

Infelizmente, na prática, o volume de prescrições tende a superar o número de condenações e absolvições, embora este dado seja pouco divulgado. A pauta para audiências de instrução de uma vara criminal estadual para processos com réu solto geralmente demora mais do que três anos, e este dado também é pouco lembrado nas festividades de eventos jurídicos.

A súmula 536 do STJ acabou por aumentar o número de prescrições, ao vedar a proposta de suspensão condicional do processo, ainda que não seja vinculante. Esta súmula foi aprovada sem um debate com quem atua na frente da violência doméstica, ou seja, com quem ouve vítimas, ouve acusados, e convive diariamente com os problemas. Além disso, não foi feito nenhum estudo sobre os impactos da medida do ponto de vista estatístico.

Outro fator que contribui para o aumento de prescrição é que alguns tribunais entendem que até violência entre irmãs ou entre mãe e filha se enquadra na Lei 11340/06. Mas esta lei é clara ao exigir que a violência seja em razão da condição de mulher. Portanto, não basta a vítima ser mulher, a agressão tem que se ter dado em razão dessa circunstância, o que é muito raro quando o delito ocorre entre irmãs, por exemplo. No caso de agressão entre irmãs, o foro competente é o Juizado Especial Criminal. Enviar o caso para a vara de violência doméstica acaba congestionando a pauta, pois não há transação penal, e aumenta a possibilidade de prescrição.

Além do desafio da prescrição, temos ainda o indulto (perdão presidencial por decreto), que, ao não excluir os condenados por violência doméstica, acaba por liberar quem só foi condenado após um longo e burocrático processo penal.

Problema jurídico
Os poucos agressores que não foram beneficiados com a prescrição ou com o indulto cumprirão penas inferiores a quatro anos (geralmente, não passam de um ano). Além disso, o correto seria cumprir as penas em albergues, mas, por falta de estabelecimentos, os condenados acabam cumprindo regime domiciliar.

No entanto, a casa do agressor, em muitos casos, é a mesma da vítima, e há dificuldades na fiscalização do cumprimento da pena. Os agentes penitenciários alegam que quem está em regime domiciliar não está preso, logo, não é sua atribuição fiscalizar. A Policia Militar alega que também não é sua função fiscalizar condenados. Com esta lacuna, acaba-se tentando alguns ajustes locais, mas sem uma política pública nacional.

Para agravar ainda mais, os tribunais, que convocam mutirões para proteção de mulheres vítimas de violência doméstica, são os mesmos que rapidamente concedem Habeas Corpus aos agressores, sem fiança e com medidas cautelares padronizadas, como "comparecer mensalmente ao fórum", mas sem exigir que se afastem das casas e das vítimas.

Ou seja, na prática, os magistrados têm uma visão garantista de que o processo penal deve proteger o acusado, em vez de uma visão funcionalista de que o processo penal é instrumento de política pública de segurança para proteção da vítima e da sociedade, notadamente em casos mais graves.

Além disso, é necessário lembrar que a Lei 11340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, vale apenas para violência doméstica. Ou seja, se a violência não for no âmbito das relações de afeto e em razão da questão de gênero, a legislação será outra. Por exemplo: a legislação aplicada será diferente para casos de estupro por parentes ou por desconhecidos na rua, embora ambos os atos sejam crime.

Outro aspecto pouco discutido é a socialização do custo da violência doméstica contra mulheres, já que os agressores não indenizam o Estado pelas despesas com assistência jurídica e com a prisão. Dessa forma, todos acabamos pagando a conta da violência doméstica, embora não tenhamos agredido.

E também não se cobra do agressor as despesas do SUS com atendimento às vítimas de violência doméstica, e mais uma vez, socializamos o custo da agressão, o que acaba estimulando mais violência. Se o agressor não tiver condições financeiras de pagar, então a despesa poderia ir para a dívida ativa, mas ao menos haveria uma responsabilização individual pelo custo.

Problema social
Não raro, também, muitos operadores do Direito focam na mera tipicidade formal do crime e acham desperdício de tempo a realização de estudos sociais que poderiam dar uma ideia da dimensão do problema da criminalidade.

Os que têm visão finalista do processo o consideram um fim em si mesmo, sem necessidade de solução dos problemas da criminalidade. Para essa corrente dominante, o processo deve focar numa matriz binária condenar/absolver, independentemente da eficiência do resultado do processo para diminuir a violência.

Nesse sentido, instrumentos como a rede de combate à violência doméstica e até mesmo setores municipais como o SUAS (CRAS e CREAS) são excluídos do debate e das medidas preventivas. Porém, a porta de entrada para combater a violência doméstica deveria ser o SUAS. O acompanhamento deveria começar bem no início da agressão, que normalmente se dá com com palavras. Mas o meio jurídico tende a esperar a agressão física para que a vítima procure a delegacia, geralmente já muito machucada, tanto física, como psicologicamente.

Imagina-se que a violência doméstica contra a mulher seja um problema que diz respeito apenas ao casal. No entanto, é preciso levar em consideração que muitas vezes existem filhos envolvidos, e que não existe "ex-mãe". O casal precisa manter algum tipo de convivência, mesmo que não mais enquanto casal. O mundo jurídico, no entanto, ignora o caráter permanente dessas relações. Em uma visão meramente burocrática, acredita-se que o processo penal é a solução, e que, ao fim deste, o problema estará resolvido, o que nem sempre é correto.

Em muitos casos, as agressões tendem a continuar, já que as penas são minúsculas no Direito Penal brasileiro. As vítimas, por sua vez, não querem necessariamente passar pelo processo penal, mas sim que a violência pare. E para isso, é preciso uma abordagem psicossocial do problema. No entanto, a prioridade no mundo jurídico são os mutirões, efetivos apenas para diminuir o volume de processos e não para resolver os problemas das vítimas.

Algumas soluções foram tentadas, como a Justiça Restaurativa, mas faltam explicações sobre sua aplicação. 

Soluções
Diante destes problemas acima citados é preciso uma maior sintonia entre os discursos e a prática. Antes de tudo, é necessário ouvir a primeira instância para o estabelecimento das políticas públicas criminais, começando pelo SUAS (Sistema Único de Assistência Social). Também é urgente estimular políticas que alcancem resultados na redução de violência doméstica contra a mulher, não apenas mutirões de processos penais, mas acompanhamento psicossocial para a vítima e a família.

Além disso, não podem os tribunais, instâncias revisoras, esquecer que a função do processo penal é proteger a vítima e a sociedade (corrente do funcionalismo penal), e não apenas proteger o acusado (corrente do garantismo penal).

Não adianta mandar a primeira instância fazer mutirões, nem fazer eventos festivos com entrega de flores para as mulheres, mas soltar os agressores em rápidas deliberações em sede de Habeas Corpus, que até mesmo dispensam fiança, e apenas aplicando medidas leves como comparecer mensalmente ao fórum e outras similares.

Já o Legislativo precisa, no mínimo, quadruplicar as penas mínimas previstas na lei para crimes como ameaça, vias de fato e lesão corporal em sede de violência doméstica.

O caminho para o combate à violência doméstica é longo e sinuoso, mas é preciso caminhar. Logo, é preciso adotar medidas mais articuladas, pois alterações legislativas com má redação podem aumentar o problema, em vez de ajudar na solução.

Sem esquecer do fato de que os municípios, ao deixar de cumprir seu papel nas medidas preventivas e de identificação da violência doméstica contra a mulher, como assistência jurídica e psicossocial, acabam sendo omissos. Afinal, até para uma eventual separação judicial a vítima precisará de apoio amplo no atendimento, o que não vem ocorrendo de forma estruturada através do SUAS.

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    é promotor de Justiça de Minas Gerais, doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP, mestre em Direito Público pela Unifran e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.

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