Opinião

Desafios contemporâneos da execução penal no Brasil

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8 de março de 2019, 6h28

O debate sobre segurança pública no Brasil sempre acaba levando à discussão sobre o sistema penitenciário e a sua necessidade de reforma. Esse foi um tema muito presente ao longo das campanhas eleitorais de 2018 e foi retomado recentemente, seja por declarações do governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, seja no pacote "anticrime" apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro.

A própria maneira como se encara o sistema penitenciário varia bastante, mas o tom crítico é uma constante.

De um lado, sustenta-se que o Brasil possui a 3ª maior população carcerária do mundo, mantida em estabelecimentos penitenciários superlotados, em péssimas condições e que apresentam constantes e graves violações aos direitos humanos. Tudo isso justificaria uma crítica severa ao superencarceramento brasileiro e a necessidade de reforma do sistema penitenciário brasileiro.

De outro, afirma-se que o Brasil apresenta uma criminalidade muito elevada, inclusive violenta, com taxa de elucidação muito baixa, o que justificaria o aumento do encarceramento. E rechaça-se a tese do superencarceramento, sob o argumento de que o Brasil possui a 5ª população do mundo, o que faz com o que o número seja necessariamente elevado, e que, em número relativos, a taxa de encarceramento brasileira não seria tão alta, com o Brasil se encontrando apenas na 26ª posição no mundo.

E mesmo para os que defendem um maior encarceramento, a reforma do sistema penitenciário brasileiro parece indispensável, pois as prisões brasileiras seriam verdadeiras “escolas de crime”, por serem incapazes de ressocializar os presos, além de inseguras, a ponto de facções, como o Comando Vermelho e o PCC, continuarem a comandar a prática de atividades criminosas do seu interior.

Significa dizer, uma vez mais, que seja lá qual seja a opinião, todos entendem que a situação carcerária brasileira é insustentável.

Para analisar essa situação, é preciso, inicialmente, deixar claro que existe uma percepção, no Brasil, de que, para que haja punição, é preciso haver privação da liberdade em regime fechado e, em que pese haver hoje mais pessoas submetidas a penas e medidas alternativas do que encarceradas, isto não mudou a perspectiva social em relação à punição.

Ao lado disso, relaciona-se o aumento expressivo do contingente carcerário no Brasil, nos últimos 20 anos, com a adoção de políticas neoliberais, que teriam gerado exclusão social e, por consequência, criminalização da pobreza.

Diante deste quadro, convém questionar se o que acontece no Brasil é inevitável e, ainda que seja, se há alternativas às dramáticas condições do sistema penal brasileiro, para adequá-lo ao século XXI.

Uma ressalva preliminar que deve ser feita diz respeito ao fato de que o Brasil, com seus elevados índices de criminalidade e importante aumento dessas taxas nas últimas décadas, tem assistido ao incremento bastante mais expressivo da taxa de encarceramentos, além de reformas legais no sentido de tornar mais severa a legislação penal e de execução de penas.

Assim, e correndo os riscos das simplificações, pode-se dizer que o sistema penitenciário brasileiro tem cinco características fundamentais: superlotação carcerária, cultura do autoritarismo, violência sistêmica, falta de condições de higiene e oferta insuficiente de trabalho e de estudo.

A superlotação carcerária decorre do fato de que há quase o dobro de presos no Brasil do que vagas no sistema penitenciário, como será demonstrado adiante. Diante do excesso de presos, existe também uma cultura autoritária que tenta se justificar na necessidade de manutenção de disciplina.

Com isso, desenvolveu-se uma violência sistêmica, isto é, relações violentas entre funcionários da administração penitenciária e presos, originando-se nos agentes estatais bem como nos internos. Da mesma forma, a própria relação entre os indivíduos privados de sua liberdade não raro é marcada pela prática de atos violentos.

Neste ambiente de violações de direitos, as condições de higiene são muito ruins, tanto como há insuficiente oferta de trabalho e de estudo.

Se as condições são muito ruins, há um aumento acelerado da população carcerária que as torna cada vez piores. Para ilustrar isso, pode-se mencionar que, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil possuía os seguintes números de presos: 114.377 (1992), 308.304 (2003), 548.003 presos (2012) e 726.712(2018).

O estado do Rio de Janeiro passou de 25.514 presos (2010) para 50.219 presos (2016), ou seja, dobrou a população em carcerária em menos de uma década.

Evidentemente que, diante de um crescimento tão acelerado, a administração pública não consegue fazer frente à exigência de novas vagas que surgem todo ano, e o problema da superlotação vai ficando cada vez pior.

Pode-se fazer referência a três medidas que seriam necessárias e que talvez sejam as respostas mais óbvias ao desafio que o sistema penitenciário impõe: a construção de novos estabelecimentos penitenciários, a adoção de medidas legais para redução do contingente carcerário e a conscientização da gravidade da situação.

Tem havido, no país, o aumento de vagas. Na presente década, havia 496.251 presos, 281.520 vagas e 214.731 vagas de deficit em 2010. Já em 2018, havia 726.712 presos, 368.049 vagas e um déficit de 358.663 vagas. Significa dizer que o aumento de vagas, embora acelerado, não se aproxima da velocidade do aumento do número de pessoas presas.

Quanto à adoção de uma legislação desencarceradora, em que pese haver uma série de normas de mais severas, ao longo dos últimos 20 anos, houve algumas leis que pretendiam reduzir o número de presos e nenhuma delas impactou o número de presos. Basta verificar que o advento da Lei 9714/98 (penas alternativas), da Lei 12.258/10 (monitoramento eletrônico) ou da Lei 12.403/11 (medidas cautelares no processo penal) não provocou qualquer redução.

Em realidade, pode-se dizer que as leis pretensamente desencarceradoras serviram mais para aumentar a rede penal (mais pessoas submetidas a algum controle estatal que não presas) do que para reduzir contingentes carcerários.

Desta maneira, reformas legais que pretendam reduzir contingentes carcerários e promover o respeito aos direitos dos condenados, por si só, não deverão ser capazes de atingir as metas pretendidas, que é o que a experiência brasileira tem indicado.

Sendo assim e para permitir que as demais medidas funcionem, é absolutamente necessário que ocorra uma conscientização geral da gravidade da situação brasileira, que não encontra paralelo no mundo.

No entanto, tomada de consciência e modificação, em sociedade, da maneira com que a resposta penal é entendida e adotada não parece factível a curto prazo e, por isso mesmo, ainda que necessária e urgente, não deverá gerar resultados de imediato.

Assim, é preciso refletir sobre outras medidas que possam ser úteis para melhorar a nossa situação carcerária, seja para fazer com que respeite os direitos dos presos, seja para torná-la mais segura para toda a sociedade.

As medidas necessárias e possíveis são: controle, profissionalização e utilização de modernas tecnologias.

No que se refere ao controle, a realidade do sistema penitenciário brasileiro sugere o descontrole ou, ao menos, um controle bastante deficiente, com presos que permanecem no cárcere mesmo fazendo jus a sair do cárcere, desrespeito à lei, violência etc.

Parece absolutamente necessário estabelecer mecanismos mais efetivos de controle, que podem decorrer de iniciativas internacionais, como a Convenção das Nações Unidas contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, Convenção Interamericana para prevenir e punir a tortura, além da Convenção Europeia para a prevenção da tortura e de tratamentos ou penas desumanas ou degradantes.

Cada vez mais, recorre-se à Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas ainda não se atingiu o controle como ocorre com a Corte Europeia de Direitos Humanos, que, a partir do caso Kudla v. Polônia, entendeu que todo prisioneiro tem direito a condições de detenção conforme a dignidade humana, inclusive de não estar em um estabelecimento superlotado.

A situação calamitosa das prisões brasileiras parece indicar a necessidade de estabelecimento de alguma forma controle externo das prisões, como talvez seja o controle internacional.

Outro aspecto relevante a ser examinado é o da profissionalização, que significa a necessidade de especialização do Poder Judiciário e do Ministério Público, que seus integrantes que atuam na execução penal tenham conhecimento específico na matéria e, principalmente, conheçam a realidade carcerária.

Há também a necessidade de implantação ou de ampliação da Defensoria Pública na execução penal, além da presença física do defensor público nos estabelecimentos prisionais.

Outro aspecto do que aqui se chama de profissionalização diz respeito ao pessoal penitenciário, aí incluindo todos os funcionários que trabalham na administração penitenciária.

A conscientização da importância da sua qualidade é indispensável, pois tais funcionários são determinantes para clima carcerário e para as relações internas.

Especificamente, alguns agentes penitenciários desempenham funções altamente tensas. Por isso que parece necessário dispor de número suficientes de agentes bem formados, especialmente na gestão do stress.

Experiências estrangeiras demonstram que, quanto menor a relação entre número de agentes e presos, melhor a execução penal. Os países escandinavos apresentam uma relação 1:1 e são tidos como os que apresentam resultados mais satisfatórios. Já países da Europa ocidental, como a Alemanha, apresentam uma relação 1:2 ou até 1:2,5 e resultados piores. No caso brasileiro, há uma relação de aproximadamente 1:7,5.

Além da necessidade de adequar o número de funcionários, é preciso assegurar formação inicial e continuada, para que haja profissionais mais habilitados a desempenhar suas funções.

Por fim, a utilização de inovações tecnológicas no sistema penal é indispensável. O exemplo mais óbvio é o monitoramento eletrônico, mas pode haver sanções que se relacionem com uma criminalidade virtual, característica do nosso tempo, e a utilização de scanners de corpo em penitenciários, para evitar revistas íntimas e evitar o ingresso de substâncias, celulares ou armas nos presídios.

Em síntese, o modelo penal brasileiro, com ampliação dos contingentes carcerários e, mais ainda, do número de pessoas submetidas a penas e medidas alternativas, parece ser insustentável, por não garantir segurança nem respeitar direitos.

A situação brasileira não decorre de nenhuma inevitabilidade estrutural, mas, sim, de escolhas nacionais, que provavelmente só serão realmente modificadas com uma mudança cultural quanto à punição e ao encarceramento.

Assim, o futuro da prisão no Brasil depende, para que a realidade carcerária brasileira seja melhor que a atual, de uma atualização, afastando a ideia de que nada funciona e de que a prisão será sempre péssima, assim como a naturalidade com se convive com a miséria prisional.

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