Opinião

Não existe advocacia sem a garantia das prerrogativas do advogado

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8 de março de 2019, 14h14

A edição da Lei 11.767, de 7/8/2008, batizada de Lei da Inviolabilidade do Direito de Defesa, despertou no meio advocatício a sensação de segurança jurídica típica das sociedades civilizadas e reguladas pelo Estado Constitucional de Direito. Mas a recente violação do sigilo fiscal sofrida pelo respeitável advogado Mariz de Oliveira demonstra que o otimismo talvez seja excessivo. E o mais grave é que a quebra do sigilo fiscal ou bancário de advogados e escritórios no mais das vezes é artifício maroto para burlar a proteção ao sigilo profissional. De posse dos dados bancários e fiscais, autoridades públicas violam informações protegidas pelo Estatuto da Advocacia. Um "jeitinho brasileiro" sob proteção judiciária.

A garantia da inviolabilidade da atividade e dos instrumentos de trabalho advocatícios, do local de trabalho, da correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, relativas ao exercício da advocacia, da relação cliente-advogado, efetivamente proíbe violações abusivas, decorrentes de ações das polícias judiciárias ou do Ministério Público, ou mesmo de decisões judiciais desprovidas de motivação minimamente razoável. Mas a realidade tem afrontado o legislador.

O sigilo profissional tem a proteção ampla cravada no artigo 5º, incisos XIII e XIV da Constituição: “XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; e XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Especificamente em relação aos profissionais da advocacia, o constituinte garantiu-lhes (artigo 133), a inviolabilidade “por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. No caso, a Lei 8.906/1992 (Estatuto da Advocacia).

O legislador infraconstitucional, no dever de garantir o sigilo profissional do advogado, sem, contudo, criar privilégios impróprios ou proteções indevidas, cuidou de definir precisamente os "limites" da inviolabilidade advocatícia, como lhe foi imposto pelo constituinte. Nesse mister, estabeleceu em qual situação, qual a autoridade competente e quais os requisitos essenciais ao ato judiciário que determinar o afastamento da proteção assegurada ao exercício da advocacia, especialmente o escritório ou local de trabalho advocatício, os instrumentos, a correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática relativa ao exercício da advocacia. E mais, definiu aquilo que está absolutamente imune, até mesmo à devassa judicial (Lei 8.906/1992, artigo 7º, II e parágrafo 6º).

Assim, restou definido que somente na presença de "indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte advogado" será possível decretar-se a violação do sigilo advocatício. Norma clara, que dispensa esforços interpretativos. Nenhuma outra infração, cível, administrativa ou de qualquer outra natureza que se possa imaginar, autoriza a ruptura da inviolabilidade do sigilo profissional do advogado. Ausentes os requisitos legais precisamente definidos, restará afastada qualquer possibilidade de violação, mesmo por ordem judicial.

Quanto à competência e o requisito essencial à validade do ato judicial que decretar a quebra da inviolabilidade da atividade advocatícia (local de trabalho, instrumentos e documentos, físicos e virtuais etc.), o legislador foi taxativo: somente a autoridade judiciária, por meio de decisão devidamente motivada. Como, aliás, impõem o artigo 93, IX, da Constituição e o artigo 489 do CPC. A nenhuma outra autoridade — exceto a do juízo criminal competente —, por qualquer meio ou artifício, é dado o poder de afastar a proteção ao sigilo profissional do advogado. Obviamente, em se tratando de matéria criminal, a competência exclusiva para requerer a medida de força será sempre da polícia judiciária e do Ministério Público das respectivas unidades federativas.

A parte final do parágrafo 6º do artigo 7º do Estatuto da OAB demanda especial atenção porque veda "em qualquer hipótese" a utilização de documentos pertencentes a clientes, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes, eventualmente encontrados durante a busca e apreensão, e deixa patente que a inviolabilidade alcança não só ambiente físico de trabalho do advogado, mas também o espaço virtual no qual constem informações referentes ao exercício da profissão e aos seus clientes.

Esse aspecto é de extrema relevância nos tempos atuais dado que uma infinidade de informações é armazenada em meios digitais e transita regularmente entre aparelhos eletrônicos (computadores, notebook, hard disc externos, pen drives, na rede mundial de computadores etc.) utilizados pelo profissional da advocacia no exercício do seu ofício. O advogado moderno mantém informações profissionais de forma que possa acessá-las dos mais variados lugares e a partir dos meios eletrônicos disponíveis. Assim, a proteção legal alcança tais "instrumentos" de trabalho, independentemente do local, físico ou digital, em que esteja alojado. Do contrário, seria atribuir estultice ao legislador que regulou a proteção constitucional no já "virtualizado" mundo do ano de 2008.

A vontade do legislador, na lição sempre atual de Carlos Maximiliano, deve ser transportada ao lugar e à época em que o legislador viveu, deliberou e agiu. Portanto, é evidente que a inviolabilidade de que trata a Lei 11.767/2008 tem abrangência compatível com a realidade do mundo em que ingressou e permanece no ordenamento jurídico. E essa realidade impõe que as expressões "escritório ou local de trabalho" abranjam todos os ambientes, físicos ou não, utilizados pelo advogado no exercício regular da atividade advocatícia. Trata-se de conceito jurídico em permanente expansão a acompanhar os infindáveis avanços tecnológicos.

Não obstante toda a clareza da lei, decisões judiciais recentes têm ordenado o rompimento da inviolabilidade advocatícia sem que haja indícios do cometimento de crimes por parte dos advogados atingidos por medidas de força. Escritórios foram invadidos, a comunicação pessoal entre o advogado e o cliente vulgarizada, contratos publicados na mídia etc. Uma atitude típica desta quadra da história marcada pelo desejo notório de se criminalizar os profissionais da advocacia e atribuir-se aos escritórios jurídicos a natureza de verdadeiras organizações ilícitas. Algo próximo da barbárie em seu estado bruto.

Não menos grave o que vem ocorrendo com advogados públicos federais que solicitam licença sem remuneração para exercer a advocacia privada. Esses profissionais comumente tornam-se alvos da ira invejosa de colegas dos órgãos disciplinares que os têm como infratores da lei. Provavelmente, a Lei de Invídia, que na mitologia romana traduz inveja e ciúme patológicos. A partir de premissas jurídicas imprestáveis, o direito ao exercício da advocacia e as proteções constitucionais são vilipendiados por decisões administrativas imotivadas, e materialmente nulas. Verdadeiros decretos, dotados de força superior à decisão judicial, que geram a constrangedora categoria dos "advogados sem prerrogativas e sem direitos".

Autoridades administrativas recorrem a artifícios os mais desonestos, como o acesso a dados fiscais e bancários, para romperem o sigilo profissional dos advogados públicos licenciados sem remuneração, e dos escritórios em que atuam. Tão acintosa é a conduta que não se constrangem em formalizá-la por meio de ofícios enviados aos clientes do advogado licenciado "solicitando" que lhes forneçam, no prazo fixado, cópias de contratos, identificação dos processos em que houve atuação do profissional, comprovantes dos serviços prestados, cópias dos documentos produzidos, informações sobre a efetiva prestação de serviço, demonstrativos com os valores dos honorários pagos etc. Se o "solicitado" não atende à "solicitação" dotada de força compulsória, imediatamente recorrem à força institucional dos órgãos de representação judicial da União, para proporem ações judiciais visando à quebra do sigilo profissional do advogado.

A prática, lamentavelmente adotada na Advocacia-Geral da União, nas gestões de José Eduardo Cardozo e de Grace Mendonça, criou precedentes perigosos, inclusive para advogados públicos estaduais e municipais que têm autorização legal para exercer advocacia privada, sem se afastar de suas funções institucionais. Tanto eles quanto os escritórios e empresas onde atuam, e os seus respectivos clientes, podem, a qualquer momento, sofrer devassas arbitrárias e ilegais promovidas por agentes da administração pública a que estiverem vinculados. Ainda que não sejam investigados por "prática de crime".

O mais grave de tudo é que sempre encontram autoridades judiciárias prontas e dispostas a negarem vigência ao parágrafo 6º do artigo 7º, Lei 8.906/1992, e a atenderem pedidos ilegais, normalmente em sede de cognição sumária, por meio de decisões satisfativas, proferidas sem prévia oitiva do demandado. E não precisa haver indícios de autoria e de materialidade de crime. Basta a simples suspeita de infração administrativa para que juízes autorizem a violação, por meio de decisões dotadas de motivações pífias e juridicamente insustentáveis. E só explicáveis sob a égide do punitivismo perverso e pervertido que se instalou nesta triste quadra da história brasileira.

A verdade é que, no período em que permanecem licenciados sem remuneração, para exercer advocacia privada, os advogados públicos gozam de todas as prerrogativas e direitos assegurados indistintamente a todos os advogados. Com efeito, ainda que recaia sobre ele eventual imputação de infração funcional isso não torna ilícita a sua atividade advocatícia, não lhe retira a condição legal de advogado e, obviamente, não exclui a inviolabilidade profissional que lhe é assegurada pela Constituição da República e pela Lei 8.906/1994.

Nem mesmo a prática de advocacia contra a Fazenda Pública que o remunere — infração disciplinar submetida exclusivamente à competência fiscalizatória, ao poder de polícia e à jurisdição da Ordem dos Advogados do Brasil (artigos 30, I, 44, II, in fine, e 57, da Lei 8.906/94), teria o condão de suprimir a inviolabilidade da atividade profissional.

Luiz Flávio Gomes alerta que, enquanto não ultrapassados os limites do exercício da profissão, força é convir que a inviolabilidade citada na CF não alcança somente os atos e manifestações do advogado, senão também seus meios de atuação, seu local de trabalho, seu escritório, arquivos, pastas, computador, correspondências etc., ou seja, tudo isso está protegido pelo sigilo profissional (e pela inviolabilidade constitucional e legal), nos termos do artigo 7º, II, da Lei 8.906/94, com a redação dada pela Lei 11.767/2008.

O outro fato essencial é que há proteção legal à relação cliente-advogado e somente é possível de afastamento para instruir investigação penal, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes, exceto, obviamente, se o cliente for investigado por indício de crime, por autoridade competente. É o ensinamento que salta da decisão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região nos autos do Processo 200551100058251, relatado pelo desembargador federal Marcelo Pereira:

“O presente mandado de segurança foi impetrado (…) contra ato de Procurador da República que requisitou à impetrante alguns pedidos de esclarecimento, quais sejam, quantos advogados possui (…) em seu corpo jurídico próprio; quais escritórios de advocacia terceirizados prestam serviços (…); quais são os termos dos contratos de terceirização no que se referem às diretrizes de atuação judicial, remuneração dos terceirizados, participação de estagiários e prepostos; qual o total gasto mensal (…) com a manutenção de seu corpo de trabalhadores do setor jurídicos, englobando os contratados e os terceirizados” (…) No caso dos autos, por tratarem as informações requisitadas pelo Parquet de questões afetas a dados e à correspondência de advogados, verifica-se que são estas albergadas por sigilo imposto por lei, nos termos do artigo 7º, da Lei 8.906/94, alterado pela Lei 11.767/08 (…) E nem se alegue que não seria aplicável ao caso em debate o artigo alhures transcrito por ter sido a requisição dirigida à (cliente), uma vez que os documentos requisitados, como contratos de honorários, são comuns à impetrante e aos escritórios de advocacia”.

De qualquer forma, o quadro é extremamente grave e preocupante. Devem precaver-se todos os escritórios e empresas privadas que albergam advogados públicos; mesmo os autorizados exercer advocacia privada concomitantemente à advocacia institucional e os licenciados sem remuneração. Os seus sigilos profissionais correm sérios riscos de violação, com ou sem autorização judicial. Em seguida seus clientes serão "convidados" por autoridades administrativas a prestar informações acerca das atividades profissionais desses advogados, que não gozariam — segundo juristas "cabeça de apostilas", como diria certo jornalista — da inviolabilidade consagrada no artigo 133 da Constituição e no artigo 7º da Lei 8.906/1994.

Por essas e outras, suscita a preocupação o entendimento externado por um ex-procurador-geral da República no sentido de que os advogados públicos, apesar de exercerem atividades privativas da advocacia, estão sujeitos a regime próprio e estatuto específico, razão pela qual não necessitariam de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil para trabalhar nem se submetem à entidade.

Ainda que não se enfrente aqui o argumento do membro do Ministério Público, infelizmente apoiado por parcela dos advogados públicos, alguns pela simples antipatia ao pagamento da anuidade, deve-se atentar para as graves consequências desse em entendimento. Uma vez desligados da OAB, esses advogados ficarão desprotegidos da força institucional da entidade, nas eventuais — e não tão eventuais assim — violações de direito e prerrogativas, e ficarão ao relento, submetidos às arbitrariedades e abusos de autoridade de órgãos burocráticos da administração pública, no mais das vezes tomados por servidores medíocres e desprovidos freios éticos e morais.

Enfim, a Ordem dos Advogados do Brasil e as entidades representativas das carreiras jurídicas públicas precisam adotar posições firmes para enfrentar a gravidade da situação dos advogados, públicos e privados, cujas prerrogativas e direitos vêm sendo sistematicamente violados sob a condescendência explícita de autoridades judiciárias e administrativas. Não existe advocacia sem a garantia das prerrogativas do advogado.

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