Opinião

Não cabe à Justiça do Trabalho julgar ações sobre categorias de base do futebol

Autor

  • Mauricio de Figueiredo Corrêa da Veiga

    é presidente da Comissão de Direito Desportivo do IAB; professor do Master Diritto e Sport da Universidade Sapienza de Roma; doutorando em Ciências Jurídicas pela UAL; diretor jurídico do Vasco da Gama; vice-presidente da Comissão Especial de Direito Desportivo da OAB Nacional e membro fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo.

7 de março de 2019, 16h54

1. Introdução
No dia 15 de fevereiro, o TST noticiou decisão que reconheceu a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação envolvendo as categorias de base do futebol do Cruzeiro de Belo Horizonte.

A questão se reveste de contornos peculiares. A uma porque envolve a prática do desporto educacional e de formação, previstos na Lei Geral do Desporto. A duas, tendo em vista que a decisão foi proferida pela Subseção Especializada em Dissídios Individuais-I do Tribunal Superior do Trabalho, órgão responsável pela uniformização da jurisprudência trabalhista.

2. O processo
O Ministério Público do Trabalho e a Promotoria da Infância e da Juventude de Belo Horizonte ajuizaram ação civil pública em face do Cruzeiro Esporte Clube, sob o fundamento de que foi constatada a presença de atletas nas categorias de base com idade inferior a 14 anos. Após aprovação no processo seletivo, os jovens passavam a residir no Centro de Treinamento. Apenas os atletas da categoria sub-20 ou júnior mantinham contrato de trabalho com o clube.

O pedido da ação contemplava, entre outras obrigações, que o clube afastasse imediatamente das categorias de base os atletas com idade inferior a 14 anos, providenciando acompanhamento psicológico para todos e transporte para visita aos pais e responsáveis. No tocante aos jovens com idade entre 14 e 16 anos, o pedido era para que o clube celebrasse contrato formal de aprendizagem, com bolsa não inferior ao salário mínimo.

O TRT da 3ª Região deu provimento ao recurso ordinário do MPT e do MP-MG e deferiu o pedido de celebração de contrato de aprendizagem e de garantia do direito de visita à família pelo menos cinco vezes ao ano. No entendimento do tribunal, a Constituição Federal somente admite o trabalho de jovens com idade entre 14 e 16 anos na condição de aprendiz, com garantias trabalhistas e previdenciárias mínimas. O acórdão asseverou que o atleta não profissional em formação detém condição similar ao aprendiz e, por consequência, faz jus ao contrato formal escrito e ao recebimento de bolsa. Por se tratar de contrato de aprendizagem para formação de atleta, nos dizeres da decisão do TRT, haveria incidência das regras próprias do desporto e, de forma supletiva, as disposições alusivas ao contrato de aprendizagem.

Diante dessa decisão, o Cruzeiro recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho, sendo que a 5ª Turma daquela corte deu provimento ao recurso do clube para afastar a competência da Justiça do Trabalho e determinar a remessa dos autos para uma das varas de Infância e Juventude de Belo Horizonte.

O acórdão que acolheu a pretensão do clube levou em conta que as atividades dos atletas mirins têm caráter formativo e se enquadram no conceito de desporto educacional, nos termos do artigo 3º, I, da Lei Pelé.

O MPT interpôs recurso de embargos, que foi acolhido pela maioria dos ministros em razão da contrariedade à Súmula 126 daquela corte, pois, de acordo com a SBDI-I, verificou-se que não haveria, no acordão do TRT, qualquer menção à prática de desporto educacional, tendo o próprio clube reconhecido nos autos a prática de desporto de rendimento, razão pela qual a decisão embargada teria extrapolado os fundamentos lançados no acórdão prolatado pelo TRT, em contrariedade ao entendimento consubstanciado no verbete jurisprudencial que veda o revolvimento de fatos e provas.

3. Questão processual
Independentemente do mérito da questão, ou seja, da discussão que analisa o desporto educacional ou de rendimento, um fato merece análise e atenção especial: trata-se do conhecimento do recurso de embargos.

A SBDI-I é o órgão do TST responsável pela uniformização das decisões proferidas pelas oito turmas do tribunal. Desde o ano de 2007, o recurso de embargos para a SBDI-I passou a ser cabível unicamente para a impugnação das decisões de turmas do TST que divergissem entre si, ou de julgados proferidos pela Seção de Dissídios Individuais, ou que divergissem de orientações jurisprudenciais ou súmulas do TST.

Tal fato demonstra que o recurso de embargos do artigo 894 da CLT são os embargos de divergência, a evidenciar a finalidade inerente ao recurso, além de conferir à SBDI-I do TST sua verdadeira e principal função, qual seja, a de pacificar, em âmbito nacional, a interpretação da legislação material e processual trabalhista.

Portanto, o conhecimento de recurso de embargos por divergência a uma súmula de natureza processual somente poderia ser cogitada — e mesmo assim com reservas — em situações excepcionalíssimas.

No caso concreto do recurso do MPT interposto em face da decisão da 5ª Turma do TST, a SBDI-I afirmou ser possível conhecer de recurso de embargos por contrariedade à Súmula 126 do TST, quando a decisão embargada adota premissa fática diversa da registrada no acórdão regional.

Todavia, para se chegar a essa conclusão, a SBDI-I do TST contrariou a sua própria jurisprudência, pois revolveu matéria que estaria estampada no acórdão regional para justificar a decisão.

Data vênia, mas em se tratando de uma corte uniformizadora da jurisprudência, não poderia a SBDI-I agir como uma instância recursal ou revisional, o que de fato ocorreu no presente caso, tendo em vista que o recurso foi provido sob o fundamento de que a turma, ao concluir pela incompetência da Justiça do Trabalho, adotou a premissa de que a hipótese debatida nos autos era de desporto educacional e que tal assertiva não constava do acórdão regional.

Logo, a contrariedade à Súmula 126 foi perpetrada pela SBDI-I, que, ao dar provimento ao recurso de embargos, revolveu fatos e provas produzidos nos autos e atuou como corte revisional, e não uniformizadora de jurisprudência.

4. Conclusão
O desporto educacional está previsto no artigo 3º da Lei 9.615/1998, sendo definido como aquele praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo, a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer.

O parágrafo 1º daquele artigo estabelece que o desporto educacional pode se constituir em esporte educacional e esporte escolar.

Já o desporto de formação é aquele caracterizado pelo fomento e aquisição inicial dos conhecimentos desportivos que garantam competência técnica na intervenção desportiva, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva em termos recreativos, competitivos ou de alta competição.

O parágrafo segundo 2º do Decreto 7.984/2013, regulamentador da Lei Pelé, dispõe que o esporte escolar pode ser praticado em competições, eventos, programas de formação, treinamento, complementação educacional, integração cívica e cidadã e desta forma serão realizados por Confederação Brasileira de Desporto Escolar (CBDE), Confederação Brasileira de Desporto Universitário (CBDU), ou entidades vinculadas, e instituições públicas ou privadas que desenvolvem programas educacionais e instituições de educação de qualquer nível.

Até mesmo o desporto de rendimento pode ser praticado e organizado de modo não profissional, identificado pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio.

É de se concluir, portanto, que nessas modalidades não há que se falar em contrato de trabalho.

Com efeito, contrato especial de aprendizagem desportivo (no qual é assegurado assistência educacional, psicológica, médica, odontológica, alimentação, transporte e convivência familiar, além de seguro de vida e acidentes pessoais) não se confunde com contrato de aprendizagem profissional de que trata o artigo 428 da CLT.

A aprendizagem profissional está relacionada a um ofício que poderá ser aprimorado com a prática reiterada e supervisionada. Na aprendizagem desportiva, práticas reiteradas podem qualificar o profissional tecnicamente, porém o talento e a habilidade são características inatas. Como diz o ditado popular: “é pelo dedo que se conhece o gigante”.

É indene de dúvidas que aquele jogador com idade inferior a 14 anos pode e deve ser estimulado a praticar qualquer modalidade desportiva. Obviamente não será um menor aprendiz e muito menos um atleta profissional.

Para uma família menos favorecida, ter um menino que jogue bem futebol e demonstre interesse pelo ofício pode ser, muitas das vezes, a única oportunidade de sucesso na vida. Na vida daquele atleta e de toda a sua família.

Nota-se que nestas hipóteses não estamos falando de um trabalho, mas, sim, da prática desportiva lúdica, com intuito de contribuir para a educação daquele cidadão.

Na obra O Desporto Visto pelos Grandes (Antônio Azevedo PIRES, 1956), o jogador austríaco Karl Koller considera “muito importante a paixão pelo desporto desde a idade mais juvenil e a possibilidade de praticamente se exercer uma certa atividade desportiva ainda antes do ingresso no clube”, como uma das condições para se alcançar o objetivo de ser um desportista de primeira linha.

Em razão de todos esses elementos é que manifesto entendimento no qual o objeto de ação que diz respeito à observância das regras de instalação física de alojamentos, de saúde, de educação, de formação psicológica e de socialização dos menores é matéria que está dissociada de uma relação de trabalho típica, razão pela qual a sua análise seria de competência da Vara da Infância e da Juventude, nos termos os artigos 405 e 406 da CLT, que dispõem acerca do exercício de atividade artística infantil, bem como a previsão contida no artigo 148, IV do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990).

Autores

  • é advogado, diretor jurídico do Club de Regatas Vasco da Gama, membro fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo, presidente da Comissão de Direito Desportivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, professor da CBF Academy e doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa.

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