Opinião

Processo de conhecimento de "autor" e processo de execução de "executado"

Autor

6 de março de 2019, 6h52

Duas grandes perversões incrustadas no meio jurídico brasileiro têm contribuído para tornar o processo civil no Brasil um poço de descaminhos e insatisfações. Refiro-me especificamente a conjuntos de cacoetes mentais que determinam o modo de ser e de se desenvolver o processo civil no Brasil, que poderiam se resumir em duas expressões: “processo civil de conhecimento de autor” e “processo civil de execução de executado”.

No processo de conhecimento, apesar dos muitos discursos etéreos em torno da imparcialidade do julgador, do contraditório e da ampla defesa, autor e réu não são sujeitos tratados na prática com o mesmo nível de dignidade. É o autor, com seus dramas, suas narrativas e seus pedidos o sujeito mais relevante do processo. E isso se verifica a partir da extrema facilidade com que os autores obtêm liminares sem oitiva do réu. Basta, em geral, um mínimo de habilidade retórica para compor uma narrativa coerente e, quando muito, apresentar um traço de documentação cuidadosamente escolhida para o fim pretendido, para que os autores consigam liminares sem oitiva dos réus. Esses são tidos como elementos impertinentes, atravancadores dos processos, e suas palavras nunca ou quase nunca são objeto de consideração nas sentenças.

No primoroso artigo “Até Quando Abusarás, ó Catilina? Cautelares e Liminares – Catástrofe Nacional”, publicado há mais de 25 anos, J. J. Calmon de Passos já alertava para essa cruel distorção do sistema processual brasileiro, tendente que era, e continua sendo, a privilegiar a figura de quem pede, em detrimento da figura de quem resiste. Escrito numa época em que o processo cautelar ainda ostentava certa autonomia, criticava o mestre baiano com palavras muito duras a facilidade com que os magistrados concediam liminares, sem considerar as muitas salvaguardas impostas pela lei em prol da posição dos demandados:

“O juiz só pode deferir liminar sem audiência da parte contrária quando a ciência da outra parte importa ineficácia da cautela (art. 804 do CPC). Assim está na lei. Assim impõem os princípios. E é assim na prática? Sabemos que não. A liminar sem audiência da parte contrária (sem risco de ineficácia e o que é mais grave sem qualquer fundamentação é moeda corrente em nossos pretórios.

Mais grave, ainda. O legislador, prudente, quando há risco de lesão para a parte que vai sofrer a interferência no seu patrimônio ou em sua pessoa, em razão do favor deferido à outra parte, manda que determine o Juiz a prestação da caução por aquele a quem a medida beneficia. E esse dispositivo quase letra morta. Esquecido ou subtraído? Não interessa desvendar o mistério.

E assim chegamos ao fim da catástrofe. Temos um direito positivo que vale pouco e garante nada. Coloca pressupostos para a cautelar. Não valem. É expresso quanto a exigência para concessão de liminares. Nâo vale. Rigoroso no permitir o sacrifício provisório do princípio de bilateralidade. Não é respeitado. Prudente no prever a contracautela. É menosprezado. […]”[1].

Mas não somente essa facilidade de obtenção de liminares sem oitiva do réu caracteriza o nosso processo civil de conhecimento “de autor”. A figura do autor encontra-se privilegiada também no modo como são compostos os relatórios das sentenças, na medida em que causas de pedir constantes das petições iniciais costumam ser sumarizadas, e todo destaque é dado para os pedidos feitos pelo autor. Já as contestações não costumam ser sumarizadas, limitando-se os julgadores a indicar “o réu apresentou contestação às fls.”, e, quando muito, indicam que houve o levantamento de algum tema preliminar, como ilegitimidade, falta de interesse processual etc. Raramente indicam quais foram os fundamentos pelos quais o réu buscou se defender da postulação autoral.

Na fundamentação das sentenças não ocorre muito diferente. Os argumentos analisados são quase que exclusivamente os do autor, quer nas sentenças de procedência, quer nas sentenças de improcedência. Os argumentos do réu são apreciados — quando muito — nas sentenças de improcedência, sobretudo naqueles casos em que o juiz já não tem previamente uma compreensão particular diferente da do autor acerca do problema jurídico em discussão.

Era essa a toada no tempo de Calmo de Passos, e hoje pouca coisa ou quase nada mudou. Assim seguimos fingindo que acreditamos que coisas como imparcialidade do julgador, contraditório e ampla defesa norteiam a atividade cognitiva processual. Nosso processo civil de conhecimento continua sendo “de autor”.

Já no processo de execução, o manejo descuidado ou insincero por magistrados e advogados de coisas como imparcialidade, contraditório e ampla defesa dá causa a perversões mil que, desprezando inúmeros dispositivos legais, frustram o fim a que se destina a atividade judicial satisfativa. Se no processo de conhecimento temos o autor alçado a uma posição de dignidade que não deveria ter, no processo de execução é o executado que é erigido a uma posição indevida, sobretudo nas execuções por quantia certa. É o processo civil de execução “do executado” que explica a generalizada má vontade do aparelho judiciário de diligenciar a localização da pessoa e dos bens do executado. Em geral, entende-se que é dever do exequente localizar os bens do executado, como se os exequentes tivessem à disposição aqueles meios, sistemas e poderes de investigação próprios das autoridades estatais, em especial das judiciárias. E mais: negam os magistrados rotineiramente o uso de um recurso simples como o de bloqueios de ativos via sistema BacenJud nas hipóteses em que o exequente não prova que esgotou todas as formas de busca de bens do executado.

O perverso processo civil de execução do “executado” foi criado por meio da elevação de uma regra residual tendente à proteção do executado em princípio vetor maior interpretativo de toda a execução. Refiro-me especificamente à regra constante do artigo 620 do Código de Processo Civil de 1973, segundo a qual “quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso ao devedor”; regra que veio a ser reproduzida no atual CPC, no caput de seu artigo 805. Desgraçadamente, a “menor onerosidade possível” passou a ser lida de modo a deturpar a diretriz maior segundo a qual a execução se desenvolve a favor do exequente, e que justificaria a construção de um processo civil de execução “do exequente”.

Perde-se a perspectiva de que o processo judicial, inclusive nas demandas condenatórias, existe em função da satisfação dos direitos, sendo que, na fase de cumprimento de sentença ou de execução de títulos executivos, todo o funcionamento judiciário deve se voltar ao atendimento do direito do exequente. É só para isso que existe a execução civil. É o que se extrai do texto do artig 797 do CPC em vigor: “ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados”.

A execução — de acordo com a lei — se processa em benefício do exequente, o que — é evidente — não significa evidentemente que se possam impingir ao executado os meios mais gravosos para a satisfação do crédito. É lógico que o executado não pode ser torturado, por exemplo, para cumprir sua obrigação, mas isso não justifica que o aparelho judiciário não se preordene materialmente para satisfazer concretamente os direitos proclamados em suas sentenças e demais títulos executivos; nem justifica despachos descompromissados do tipo “ao exequente para pedir o que entender de direito, sob pena de extinção”, como se não fosse dever do aparelho judicial diligenciar, de ofício, medidas executivas. É o que explica com acuidade Dinamarco em comentário ao disposto no artigo 620 do CPC/1973:

“Mas as generosidades em face do executado não devem mascarar um descaso em relação ao dever de oferecer tutela jurisdicional a quem tiver um direito insatisfeito, sob pena de afrouxamento do sistema executivo. É preciso distinguir entre o devedor infeliz e de boa-fé, que vai ao desastre patrimonial em razão de involuntárias circunstancias da vida ou dos negócios (Rubens Requião), e o caloteiro chicanista, que se vale das formas do processo executivo e da benevolência dos juízes como instrumento a serviço de suas falcatruas. Infelizmente, essas práticas são cada vez mais frequentes no dias de hoje, quando raramente se vê uma execução civil chegar ao fim, com a satisfação do credor. Quando não houver meios mais amenos para o executado, capazes de conduzir à satisfação do credor, que se apliquem os mais severos. A regra do art. 620 não pode ser manipulada como um escudo a serviço dos maus pagadores nem como um modo de renunciar o Estado-juiz a cumprir o seu dever de oferecer tutelas jurisdicionais adequadas e integrais sempre que possível. A triste realidade da execução burocrática e condescendente, que ao longo dos tempos se apresenta como um verdadeiro paraíso dos maus pagadores, impõe que o disposto no art. 620 do Código de Processo Civil seja interpretado à luz da garantia do acesso à justiça, sob pena de fadar o sistema à ineficiência e pôr em risco a efetividade dessa solene promessa constitucional (Const., art. 5º, inc. XXXV)”[2].

A execução civil é “burocrática e condescendente” porque se entende que se trata de uma atribuição de menor relevância do Poder Judiciário. Dizer-o-direito ou proclamar-o-direito, supostamente, seria a tarefa mais relevante dos magistrados, dado seu caráter intelectual. Executar, ou seja, entregar concretamente a quem tem razão um bem jurídico, seria uma atividade menos digna, dado seu caráter material. Porém, com o CPC de 2015, o legislador deixou explicitado o óbvio: que o processo judicial não existe em função da afirmação sentencial abstrata sobre qual das partes está com a razão. Além da atividade cognitiva, a satisfação de direitos deve ser diligenciada concretamente com presteza pelo sistema de Justiça, conforme dispõe o artigo 4º do CPC: “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”.

Como bem argumenta Dinamarco, diversamente do que ocorre com as atividades cognitivas, nas quais tanto o autor como o réu podem obter tutela jurídica, a atividade satisfativa ou executória existe mesmo para satisfazer o credor ou exequente, senão vejamos:

A tutela executiva, quando efetivamente produzida, atua exclusivamente em favor do demandante, que é o exequente. Essa é uma grande diferença funcional entre o processo executivo e o de conhecimento, sabendo-se que neste prepondera a nota da bipolaridade, segundo a qual a tutela jurisdicional cognitiva terá concedida ao autor ou ao réu, conforme tenha razão um ou outro[…]; a execução forçada tem desfecho único, porque ou produz tutela jurisdicional ao exequente (entrega do bem, satisfação do direito) ou se frustra e não produz tutela plena a qualquer das partes(casos de extinção por motivos de ordem processual […]). Não se concebe uma execução que termine com a entrega de um bem ao executado, retirado ao patrimônio do exequente; o melhor que aquele pode esperar do processo ou fase executiva é a sua extinção (anômala), nos casos em que, por ausência de algum pressuposto, não seja possível chegar à satisfação do exequente”[3].

Por isso, o absurdo completo da ideia de um processo civil de execução “do executado”, quando deveríamos admitir com muita tranquilidade que o nosso processo civil de execução é “do exequente”. Ora, até mesmo o executado, de acordo com o nosso ordenamento jurídico processual, deve se desdobrar para satisfazer com brevidade seu débito, conforme se depreende a partir da norma do artigo 6º do CPC em vigor: “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. O executado não deve ficar inerte; não deve se evadir de suas obrigações; não deve ter uma atitude pouco colaborativa. Aliás, é digno de nota que não basta ao executado ir a juízo reclamar de excessiva gravidade na execução para que automaticamente sejam cancelados atos executivos. É ônus seu, nos termos do parágrafo único do artigo 805 do CPC “indicar outros meios eficazes e menos onerosos, sob pena de manutenção dos atos executivos já determinados”. Mas dispositivos legais como esse são, na prática, esquecidos ou tidos como não escritos, porque culposa ou dolosamente transformamos a regrinha da “menor onerosidade possível” num escudo retórico impenetrável em prol de quem não paga o que deveria pagar.

Caso a comunidade jurídica não houvesse se deslumbrado tanto com a ideia de declarações de direito, esquecendo-se das ideias de dever e de responsabilidade, seria até desnecessário dizer, mas infelizmente é preciso lembrar que o primeiro dever processual do executado é o de pagar seu débito, conforme dispõe o artigo 523 do CPC em vigor: “no caso de condenação em quantia certa, ou já fixada em liquidação, e no caso de decisão sobre parcela incontroversa, o cumprimento definitivo da sentença far-se-á a requerimento do exequente, sendo o executado intimado para pagar o débito, no prazo de 15 (quinze) dias, acrescido de custas, se houver”. Note-se: é o executado intimado para pagar o débito, e não para criar embaraços à satisfação do direito de crédito constante do título judicial. Seu dever processual é pagar. E, se não paga, como deveria pagar, o ordenamento jurídico processual começa por atribuir-lhe uma sanção, qual seja, o acréscimo de multa de 10% e, também, honorários de advogado de 10% (parágrafo 1º[4] do artigo 523 do CPC), a revelar que a conduta legal e moralmente esperada do devedor é o pronto pagamento, e que, caso não pague, no mínimo terá que enfrentar os ônus de sua conduta.

E não para por aí. De acordo com o disposto no artigo 77 do CPC, é dever das partes e daqueles que, de qualquer forma, participem do processo “cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação”, de modo que, caso o executado quede-se inerte no seu dever de cumprir com exatidão os provimentos jurisdicionais, há que se relativizar — e muito! — os transtornos eventualmente por ele sofridos quando, por algum milagre, um bem seu é constrito judicialmente para a satisfação do direito do exequente. A conferir a seguinte lição de Dinamarco relacionada ao CPC/1973, mas ainda muito atual:

“Da fórmula ‘não criar embaraços à efetivação de provimento judiciais, de natureza antecipatória ou final’, quando entendida no contexto das angústias e revoltantes demoras inerentes a essa espécie executiva, extrai-se com facilidade um comando a propiciar e acelerar a produção dos resultados de toda e qualquer execução porque (a) o vocábulo ‘efetivação’ tem dimensão bastante ampla e inclui todos os modos de dar cumprimento aos provimentos judiciais, inclusive mediante o processo executivo e (b) entre os provimentos judiciais de natureza final incluem-se também, evidentemente, as sentenças condenatórias a pagar dinheiro. O devedor que não cumprir esses provimentos ou criar embaraços a sua efetivação estará sujeito à sanção cominada no novo parágrafo do art. 14 do Código de Processo Civil.

Essa é uma interpretação teleológica da mais indiscutível legitimidade porque não há razão para distinguir, amparando severamente a efetivação de outras obrigações e deixando ao desamparo as de conteúdo pecuniário. Ubi eadem ratio ibi eadem juris dispositivo. Além disso, como é notório, dentre todas as espécies de execução, a mais frequente na experiência dos operadores do direito é a execução por quantia certa, não sendo razoável deixar a descoberto logo aquilo que mais interessa agilizar. De nada vale uma excelente sentença condenatória, oferecida em tempo razoável, se depois o devedor é livre para resistir quanto quer e pelos meios que quer, retardando resultados e zombando da Justiça. As notórias chicanas, tão frequentes na execução por dinheiro, são uma vergonha para o sistema e para os juízes […]”[5].

É passada a hora de o sistema jurídico brasileiro se atentar para a notória fraqueza da execução por dinheiro e descobrir que, em realidade, de nada adianta um sistema jurídico capaz de dar uma sentença condenatória com presteza se esse mesmo sistema jurídico não se preordena a satisfazer o direito proclamado, ou, o que é pior, é moldada uma execução destinada a frustrar de todas as formas o direito do exequente, como se esse fosse um sujeito impertinente e indigno de proteção.

Toda a dureza da falta de sinceridade do sistema processual civil é sentida particularmente nas demandas condenatórias ao pagamento de dinheiro, a partir da trágica combinação do processo civil de conhecimento de “autor” com o processo civil de conhecimento “de executado”. Nessas demandas, durante a fase de conhecimento, o autor — alçado a uma posição de dignidade muito superior à do réu — é levado a crer que toda alegação sua será tida como verdadeira e que mais cedo ou mais tarde terá uma linda sentença de procedência para chamar de sua. Porém, ao tentar levá-la a cumprimento, o autor, ora exequente, depreciado em sua posição, será visto pelo aparelho judiciário como uma figura impertinente, que perturba a paz, e todo pedido seu tenderá a ser indeferido burocraticamente em nome de uma coisa chamada “menor onerosidade possível”. Num quadro como esse, como não explodiu o nosso sistema processual civil é um milagre a ser investigado.


[1] In Ensaios e Artigos. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 175-176.
[2] In Instituições de Direito Processual Civil. V. 4. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 63-64.
[3] In Instituições de Direito Processual Civil. V. 4. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 59.
[4] “§ 1º Não ocorrendo pagamento voluntário no prazo do caput, o débito será acrescido de multa de dez por cento e, também, de honorários de advogado de dez por cento.”
[5] In Nova Era do Processo Civil. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 298.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!