Opinião

A equivocada cobrança de débitos não tributários pendentes de solução pelo TCU

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6 de março de 2019, 7h03

A Portaria PGFN nº 33 de 09 de fevereiro de 2018 disciplina, para aquilo que aqui nos interessa, "os procedimentos para o encaminhamento de débitos para fins de inscrição em dívida ativa da União", sendo que o controle de legalidade desses débitos devem atender, antes de sua cobrança, aos seguintes pressupostos: (i) certeza — é aquele débito "cujos elementos da relação jurídica obrigacional estão evidenciados com exatidão"; (ii) liquidez do débito é quando o "valor do objeto da relação jurídica obrigacional é evidenciado com exatidão"; e, (iii) exigibilidade do débito, quando este o é "vencido e não pago, que não está mais sujeito a termo ou condição para cobrança judicial ou
extrajudicial".

Ocorre, entretanto, e eis aqui o objeto de nosso exame, que inscrições em dívida ativa e, consequentemente, a positivação de empresas tem sido realizada pela Procuradoria da Fazenda Nacional sem a devida cautela quanto à checagem da certeza, liquidez e exigibilidade de supostos débitos NÃO tributários inscritos.

E assim afirmamos para as hipóteses em que tais débitos não tributários são originários de sanções administrativas assinaladas em resultados de Tomadas de Contas Especiais (TCE), levadas a efeito pelos órgãos da Administração, mas ainda aguardando o crivo e decisão final do Tribunal de Contas da União, a quem, segundo disposição constitucional, legal e regimental, cabe a aferição de certeza e liquidez de referidos débitos.

Exemplificando para melhor compreensão: a empresa "A", vencedora de licitação para prestação de serviços em órgão da Administração sofre denúncia no curso da vigência daquilo quanto contratado. Aberta sindicância pelo órgão, este em Tomada de Contas Especial (TCE) concluiu ter havido irregularidades na execução contratual, concluindo pela imposição de exigência e multa pecuniária contra aquela empresa "A". O resultado dessa TCE é comunicado à PGFN que, antes da obrigatória decisão final do TCU, a convalidar e/ou consolidar tal débito, ou não, promove a inscrição em dívida ativa da empresa "A", prejudicando sobremaneira a continuidade dos negócios da empresa "A".

Ao Tribunal de Contas da União (TCU), conforme a Constituição Federal (art. 71 e seguintes) compete

julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público;

E ainda nesse curso e a demonstrar que somente uma decisão final do TCU é capaz de dar liquidez, certeza e exigibilidade a débitos oriundos de TCE realizados na esfera da Administração, e, consequentemente, possibilitar sua posterior inscrição em dívida ativa e cobrança pela PGFN, temos a destacar aquilo que disciplinado pela Lei nº 8.443 de 1992 em seus artigos 23; 24; 25; 27; e, 28 c/c os artigos 214; 215; 216; e 219 do Regimento Interno do Tribunal.

Os aludidos dispositivos da "Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União", em apertada síntese, disciplinam o momento em que líquidos, certos e exigíveis os débitos e multas convalidados e consolidados após decisões finais do TCU, originários do exame e julgamento das TCE realizados por outros órgãos da Administração. Temos ainda de considerar os efeitos suspensivos que detêm os recursos previstos no RITCU.

O papel do TCU, constitucional, previsto nos artigos 33, §2º, 70, 71, 72, §1º, 74, §2º e 161, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988, e legal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2001), na Lei de Licitações e Contratos (Lei 8.666/93) e, anualmente, na Lei de Diretrizes Orçamentárias, é, repisamos, o de realizar o controle externo do governo federal e auxiliar o Congresso Nacional na missão de acompanhar a execução orçamentária e financeira do país, e contribuir com o aperfeiçoamento da Administração Pública em benefício da sociedade.

Contudo, ao permitir, por meio da Instrução Normativa nº 71/2012, que um dos órgãos controlados realize a inscrição de débitos que sequer foram por ele analisados, o TCU desrespeita o princípio constitucional da legalidade, além de contribuir com o desrespeito constitucional à promoção do contraditório e ampla defesa, impedindo que empresas idôneas deem continuidade na prestação de seus serviços aos órgãos públicos, pois estas estarão impedidas de manter a regularidade da sua habilitação, tendo em vista a impossibilidade de obtenção de certidão negativa de tributos federais.

Como consequência lógica, além de impedir a empresa de exercer a sua
função social, prejudica a busca pela economicidade nos  procedimentos licitatórios, interferindo, inclusive, no resultado da própria TCE, caso haja condenação ao pagamento de valores à Administração Pública, pois, certamente, não terá recursos para tanto.

Vê-se que a própria Corte de Contas não observa as Instruções Normativas por ela mesma editadas, uma vez que a permissão concedida por meio do art. 15, inciso I, da IN 71/2012, contraria o disposto no §2º do art. 7º, da IN 13/1996, com redação dada pela IN 41/2002.

Comprovam os argumentos acima expostos a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, nos autos do Reexame Necessário n. 2002.34.00.021465-6/DF, da Relatoria da Des. Fed. Selene Maria de Almeida, que assim entendeu:

(…) A sentença em reexame, merece ser confirmada por seus próprios fundamentos:(…)
Ao efetuar a inscrição do impetrante no Cadin, precipitou-se a administração, uma vez que a tomada de contas especial relativa a convênios firmados com o Fundo Nacional de Saúde, ainda está sendo objeto de exame pelo Tribunal de Contas da União, (…).
Pelo exposto, CONCEDO A SEGURANÇA para determinar que as autoridades impetradas excluam o nome do impetrante […] do Cadastro Informativo dos Débitos não quitados dos Órgãos e Entidades Federais – Cadin até decisão final do Tribunal de Contas da União acerca dos processos […], relativos à prestação de contas dos Convênios […].
Observa-se que o próprio Ministério Público, no parecer de fls. 72/73, nota que “à Administração faltou observar o iter necessário na via administrativa para efetuar a inscrição do impetrante no Cadin, pois a inclusão do seu nome, em 11.06.2002 (fls. 32), ocorreu antes (fls. 33) do trânsito em julgado dos processos em trâmite no Tribunal de Contas, ferindo o disposto na Instrução Normativa nº 041, de 15.05.2002: “parágrafo 2º: O ordenador da despesa providenciará a inclusão do nome do responsável no Cadastro Informativo dos débitos não quitados de órgãos e entidades federais (Cadin), na forma da legislação em vigor, quando comunicado por este Tribunal após o julgamento da TCE”. Assim, somente a partir da deliberação definitiva poderia ter sido aplicada tal penalidade. Ante o exposto, nego provimento à remessa oficial. É como voto.

Ao analisarmos os diversos princípios expressos ou implícitos no ordenamento jurídico, os quais a Administração Pública deve observância e obediência, tais como os princípios da legalidade, da presunção de inocência, da razoável duração do processo, o da menor onerosidade ao administrado e o da proporcionalidade, maior ênfase merece, no intuito de melhor iluminar interpretativamente o caso aqui em discussão, o princípio da razoabilidade.

Na definição de Antonio José Calhau de Resende, "a razoabilidade é um
conceito jurídico indeterminado, elástico e variável no tempo e no espaço. Consiste em agir com bom senso, prudência, moderação, tomar atitudes adequadas e coerentes, levando-se em conta a relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada, bem como as circunstâncias que envolvem a prática do ato" [1].

Nesse sentido, a Administração Pública deve agir de forma a legitimar suas condutas pautadas pelos princípios acima descritos e, para o assunto aqui tratado, em especial, o da razoabilidade, pois, ao aplicar uma sanção à empresa que tem como um dos seus principais objetos a prestação de serviços a outros entes da Administração, esta poderá estar intervindo sobremaneira no funcionamento da empresa, prejudicando-a financeiramente e, ao fim e ao cabo, prejudicando o ressarcimento ao erário, caso — evidentemente, ao final do julgamento da TCE, reste comprovada a sua responsabilidade.

Isso porque uma das principais exigências editalícias e contratuais na relação com o Poder Público é a manutenção das condições de habilitação até o final da execução do contrato, com comprovações periódicas de tal situação.

Porém, com a sanção de inscrição de débito no Cadin sem liquidez e certeza — portanto, não exigível —, não haverá como a fornecedora ou prestadora de serviços se sustentar financeiramente, pois estará "condenada", automaticamente, à perda de todos os seus contratos com a administração pública, diante da impossibilidade de obtenção de Certidão Negativa de Débitos.

Não nos parece razoável a permissão de inscrição de empresas idôneas no Cadastro Informativo dos Débitos Não Quitados de Órgãos e Entidades Federais (Cadin), antes da consolidação desses débitos, bem como, antes do julgamento pelo Tribunal de Contas da União do processo de Tomada de Contas Especial, devendo prevalecer a previsão contida no §2º do art. 7º, da Instrução Normativa n. 13/1996 do TCU.

Com a mesma intensidade, esse errôneo entendimento anotado pelo Tribunal de Contas vai de encontro, diretamente, ao princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 5°, LVII, da Constituição Federal. Ora, o processo administrativo sancionador deve buscar, tanto quanto possível, a aplicação de sanção somente após o julgamento final do processo.

Neste caso, a rigor, questiona-se a legalidade da edição da regra contida no art. 15, inciso I, IN 71/2012 do TCU, no anseio de fazer sobreposição da vontade política sobre a da maioria constituinte. Nesse sentido nos ensina Lenio Streck:

A soberania do parlamento cedeu o passo à supremacia da Constituição. O respeito pela separação dos Poderes e pela submissão dos juízes à lei foi suplantada pela prevalência dos direitos dos cidadãos face ao estado. A ideia base é a de que a vontade política da maioria governante de cada momento não pode prevalecer contra a vontade da maioria constituinte incorporada na Lei Fundamental. O poder constituído, por natureza derivado, deve respeitar o poder constituinte, por definição originária. [2]

Assim, temos como demonstrado que é inconstitucional, ilegítima e equivocada a inscrição e cobrança, pela PGFN, antes decisão final proferida pelo TCU a propósito de débitos não tributários e multas apuradas na esfera dos órgãos da Administração e em processos de Tomadas de Contas Especiais.

A rigor, tudo isso ocorre em flagrante prejuízo e abuso à continuidade dos negócios realizados pelos administrados, vez que impossibilitados de obter as competentes Certidões de regularidade fiscal, prejudicando o desenvolvimento regular de uma empregadora, principalmente, no momento em que nosso país contabiliza milhões de desempregados.


[1] RESENDE, Antonio José Calhau. O princípio da Razoabilidade dos Atos do Poder Público. Revista do Legislativo. Abril, 2009.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 101.

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