Tribuna da Defensoria

Por que execução imediata das condenações do júri é inconstitucional

Autor

  • Lara Teles

    é defensora pública do Estado do Ceará mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará coordenadora do Departamento de Publicações do Instituto Baiano de Direito Processual Penal e autora da obra "Prova Testemunhal no processo penal: uma proposta interdisciplinar de valoração" (EMAIS 2020).

5 de março de 2019, 8h00

O projeto de lei anticrime visa a autorizar a execução imediata das condenações do Tribunal do Júri, logo em primeira instância, com expedição de mandado de prisão, como decorrência imediata da condenação, sem exigir a devida fundamentação no caso concreto. O direito de responder o recurso de apelação em liberdade é tratado como excepcional. Isso é o que se conclui da leitura da pretensa nova redação do artigo 492 do CPP. [1]

Eis a descrição do dispositivo. Passa-se a demonstrar a sua inconstitucionalidade, bem como os fundamentos que sustentam essa posição, razão pela qual não se recomenda sua conversão em lei.

Na coluna de hoje, serão expostos os dois primeiros argumentos. Os demais serão na próxima coluna.

1) Viola o princípio da presunção de inocência (artigo 5º, LVII da CF-88 [2]) e o direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição (artigo 5º, LV [3] da CF-88 e artigo 8.2.h da CADH [4]).

A execução provisória de sentenças do Tribunal do Júri, cujos vereditos são tomados em PRIMEIRA INSTÂNCIA, viola sobremaneira o direito a ser presumido inocente e o direito ao recurso.

Não há nenhuma justificativa constitucional ou legal que autorize a relativização do direito à presunção de inocência nesses casos, pois é previsto recurso de apelação em face dessa decisão, cujo resultado do julgamento em segunda instância pode ser a cassação do veredito, em virtude de haver possibilidade de plena reanálise fática do caso, diferentemente dos recursos aos Tribunais Superiores.

Não há saída hermenêutica que albergue interpretação de “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” como decisão tomada em sede de primeira instância por juízes leigos, que não fundamentam seus vereditos, e que ainda estão sujeitos à anulação pelo Tribunal ordinário.

Portanto, não há de se confundir soberania dos vereditos dos jurados com impossibilidade de reforma de suas decisões, que podem ser cassadas, quando manifestamente contrárias à prova dos autos, conforme a previsão do recurso de apelação no referido procedimento.

Com a análise do art. 593 do CPP, observa-se que os vereditos, apesar de soberanos, podem ser anulados, com a consequente repetição do julgamento por novo Tribunal de leigos. A consequência prática da soberania nesses casos consiste somente na impossibilidade de o Tribunal de Justiça cassar e substituir a decisão dos jurados, devendo, em contrapartida, remeter ao juiz-presidente para a realização de um novo julgamento.

Ademais, não se pode olvidar que, além da decisão condenatória dos jurados, o recurso de apelação também pode objetivar a reforma da dosimetria da penalidade aplicada pelo juiz-presidente. Principalmente nos casos de desclassificação para crime diverso dos dolosos contra a vida, homicídios tentados ou simples, é possível que a reforma da dosimetria pelo Tribunal de Justiça possa ensejar a mudança do regime fechado para o semiaberto ou aberto.

Além disso, a prisão após julgamento em primeira instância deve ser a exceção e não a regra, diferentemente do que é trazido pela proposta legislativa, pois uma das decorrências do direito à presunção de inocência é a excepcionalidade da prisão, conforme preceitua Maurício Zanoide [5]:

"É necessário destacar que, por força da opção juspolítica de sua inserção no sistema, essa situação de restrição de liberdade, e dos atos necessários ao seu cumprimento, foi estabelecida pelo constituinte de modo excepcional e cercada por garantias. Tudo de forma coerente e a denotar uma clara e indefectível tendência favor libertatis, concepção derivada do favor rei que, por sua vez, no processo penal, integra o âmbito de proteção da presunção de inocência."

"Por esse desenho cogente da Constituição, resta absolutamente incorreto, porquanto sem justificação constitucional, a compreensão de que o legislador ordinário, a pretexto de conformar os preceitos ordinários ao texto constitucional, possa empreender uma inversão de valores e, em flagrante desrespeito constitucional, determinar de modo abstrato que, em qualquer hipótese ou fase persecutória, a prisão provisória é a “regra” e a liberdade tornar-se-ia a exceção no tratamento do imputado."

2) Não é esse o entendimento do Plenário do STF, tampouco de uma Turma, mas somente de um Ministro.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 126292-SP, em 2016, entendeu ser possível a execução imediata de condenação assentada em segundo grau de jurisdição.

Independentemente da análise da constitucionalidade de tal entendimento, constata-se que o precedente autoriza a execução de sentenças condenatórias, após a confirmação por um órgão colegiado que aprecia o caso em segunda instância.

Assim sendo, não se pode confundir a colegialidade de um órgão constituído de juízes leigos que não necessitam fundamentar suas decisões com a de um órgão de segunda instância. A colegialidade, por si só, não foi utilizada como fundamento para a decisão do STF supra colacionada. Não integra a decisão do STF o entendimento de que, nos crimes julgados pelo procedimento do júri, a execução da pena pode iniciar já em primeira instância.

De fato, no HC n. 118.770/SP [6], julgado pela Primeira Turma do STF, em que a defesa alegava excesso de prazo na prisão, a despeito de o Ministro-Relator Marco Aurélio Melo ter votado pela concessão da ordem, o Ministro Luís Roberto Barroso votou pelo não conhecimento do writ, pois, segundo ele, no procedimento do júri, “não há arbitrariedade na manutenção no regime de prisão, ainda quando pendente a apelação”. O caso não contemplava discussão sobre a execução provisória da pena nos julgamentos do Tribunal do Júri.

Em seguida, a Ministra Rosa Weber denegou a ordem por não reconhecer o excesso de prazo, sem adentrar no mérito da questão levantada pelo Min. Barroso, enquanto o Ministro Luís Fux constou que não conheceu do remédio constitucional, por se tratar de substitutivo de recurso ordinário. Portanto, não se pode sustentar que a alteração legislativa proposta possui supedâneo em entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Esse é também o posicionamento do STJ: HC 462.763/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 18/09/2018, DJe 28/09/2018.


[1] CPP: Art. 492………………………………………………..

I- ……………………………………………………………….

e) determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direito e pecuniárias, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;

…………………………………………………………………….

§ 3o O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação.

§ 4o A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo.

§ 5o Excepcionalmente, poderá o Tribunal de Apelação atribuir efeito suspensivo à apelação, quando verificado cumulativamente que o recurso:

I – não tem propósito meramente protelatório;
II – levanta uma questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto.

§ 6o O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente no recurso ou através de petição em separado dirigida diretamente ao Relator da apelação no Tribunal, e deverá conter cópias da sentença condenatória, do recurso e de suas razões, das contrarrazões da parte contrária, de prova de sua tempestividade, e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.

[2] Artigo 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[3] Artigo 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[4] Artigo 8.2,h. direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior.

[5] MORAES, Mauricio Zanoide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.446.

[6] Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12769406. Acesso em 18 fev. 2019.

Autores

  • é defensora pública do Estado do Ceará atuante nas 2ª e 4ª Varas do Júri da Comarca de Fortaleza-Ceará e mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.

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