Segurança jurídica

Mal redigida, Lei da Ficha Limpa prevê a mesma sanção para casos antagônicos

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3 de março de 2019, 7h43

Spacca
Se por um lado a Lei da Ficha Limpa foi um marco para a Justiça Eleitoral, forçando que candidatos mudem suas posturas enquanto gestores, por outro ângulo é cheia de problemas quanto às sanções. É o que afirma a advogada eleitoral Karina Kufa, que representou o presidente Jair Bolsonaro (PSL) durante a campanha eleitoral de 2018.

De acordo com a advogada, a Lei foi mal redigida em muitos sentidos. Um deles é a previsão da mesma sanção para casos antagônicos. Ela exemplifica que um candidato que superfature uma obra, tendo enriquecimento ilícito, vai ser "tão inelegível quanto uma pessoa que foi expulsa dos quadros do conselho regional de contabilidade". 

"Antes, para ser declarado inelegível com contas irregulares bastava o vício insanável, agora tem o ato doloso e de improbidade administrativa. Já me deparei com algumas situações em que na leitura do artigo anterior a pessoa estaria inelegível, mas no atual não, porque os requisitos são mais amplos", explica.  

Com 38 anos, a advogada é especialista em Direito Administrativo e Eleitoral, coordenadora do curso de pós-graduação na área, do IDP São Paulo. Antes, atuou como assessora jurídica no Tribunal de Contas do município.

Em entrevista à ConJur, ela conta que deixou de levar muitas pautas à Justiça e um dos fatores determinantes foi o posicionamento do Tribunal Superior Eleitoral. "Optou-se por não entrar com pedido de direito de resposta ou retirada de link em páginas de eleitores que não tinham muitos seguidores. O maior critério para atacar fake news era a quantidade de seguidores a pessoa tinha, e também demos preferência contra páginas oficiais de candidatos", afirma.

A advogada defende que é preciso ter cuidado ao penalizar criminalmente pessoas que publiquem ou compartilhem de fake news. De acordo com ela, as notícias falsas acabam tendo menor relevância em contraponto a perder a participação efetiva do eleitor. "É melhor que esses eleitores estejam engajados e vez ou outra reproduzam ou criem uma fake news do que a gente cercear a atividade deles. Já temos mecanismos mais do que suficientes e é até exagerado uma ação criminal ou de indenização contra alguns eleitores", diz.

Leia abaixo a entrevista:

ConJur — As restrições impostas pela legislação eleitoral à imprensa são uma forma de censura?
Karina Kufa —
Não sei se chegam a ser censura. Imagina num município pequeno em que um candidato tem um relacionamento bom com todos os jornaizinhos e eles fazem só matérias positivas em relação a esse candidato e matéria negativa em relação ao outro. Nesse caso, uma ação de abuso dos meios de comunicação social resolveria muita coisa.

ConJur — Como essa questão foi tratada na campanha de Jair Bolsonaro?
Karina Kufa —
O TSE deixou a imprensa livre. Ingressamos contra uma matéria de capa da revista Veja e uma ação de abuso dos meios de comunicação social contra o jornal Folha de S. Paulo, pela reportagem sobre o uso do WhatsApp. Mas muita coisa deixamos de levar para a justiça até pelo posicionamento do TSE, que trouxe jurisprudência de que uma matéria já veiculada que não foi questionada à época pode ser usada por candidatos em campanha. Esse é um ponto delicado, porque nem sempre o candidato tem a preocupação que deveria no período anterior à campanha. Ele deixa a matéria "rolar" porque não é candidato ainda.

ConJur — Quais foram os problemas enfrentados?
Karina Kufa —
Um problema que a gente teve na campanha em relação à imprensa foi o conteúdo das matérias, em que percebemos certa tendência. As notícias poderiam ter sido mais isentas.

Teve uma notícia sobre a campanha do Bolsonaro ter contratado empresa fantasma, coisa que nunca aconteceu. A empresa, de fato, era uma pequena e no endereço dela funcionavam duas ou três empresas e havia compartilhamento de funcionários. Mas a empresa prestou serviço, não era fantasma. O conteúdo da notícia explicava isso, mas o título era fake. Decidimos não entrar com ação por saber que íamos perder porque a jurisprudência fala que só a "chamada" sendo falsa não é suficiente para garantir o direito de resposta. Com essa questão do título, se "printado", será compartilhado que "Campanha de Bolsonaro contrata empresa fantasma", não aparecendo o conteúdo. A chamada das notícias deveria ser extremamente condizente com o conteúdo para evitar isso. Então tem situações que a Justiça Eleitoral poderia intervir um pouquinho mais.

ConJur — O Direito deve ser preocupar com fake news?  
Karina Kufa —
A fake news é produzida, muitas vezes, pelos eleitores. Se é na página do candidato, ele deve dar direito de resposta ou indenizar. Se fugir do campo eleitoral, ele deve responder por ação criminal, além de sanções civis e eleitorais. É mais difícil controlar o que o eleitor fala, essas fake news geralmente surgem em grupos de famílias, que é aquela tia que nem sabe o que é fake news e acaba repassando.

É delicado penalizar criminalmente aquela vó que publicou uma fake news na página dela, sem saber que estava publicando. Se houver penalização demais do eleitor, acabará tendo censura. Fake news acaba sendo um preço barato a se pagar para ter participação efetiva do eleitor no processo democrático. É melhor que esses eleitores estejam engajados e vez ou outra reproduzam ou criem uma fake news, do que a gente cercear a atividade deles. Já temos mecanismos mais do que suficientes e é até exagerado uma ação criminal ou de indenização contra alguns eleitores.

ConJur — Qual era o critério para entrar com ação na campanha do Bolsonaro?
Karina Kufa —
Optou-se por não entrar com pedido de direito de resposta ou retirada de link em páginas de eleitores que não tinham muitos seguidores. O maior critério para atacar fake news era a quantidade de seguidores a pessoa tinha e também demos preferência para entrar contra páginas oficiais de candidatos.

ConJur — Como é defender posturas do seu cliente, como faltar a um debate para dar entrevista ao vivo a uma TV concorrente ou publicar provocações ao adversários no Twitter?
Karina Kufa —
Sobre a entrevista tem uma ação que está em tramitação e, por não apresentar a defesa, vou me abster de falar. Sobre as provocações, os candidatos sempre se provocaram e desde que não cometam injúria, calúnia ou difamação, está dentro do direito deles e faz parte do jogo.

ConJur — Muitos discursos do Bolsonaro foram comprovadamente falsos e trataram de temas polêmicos, como o "kit gay", a Lei Rouanet no show do Roger Waters, incentivo a incesto…
Karina Kufa —
O kit gay existiu sob o nome "Escola sem Homofobia" e só não foi distribuído pelo governo. Uma ONG foi contratada para distribuir isso no site. A ação que questionou a fala do candidato não tratava da produção e contratação do "kit gay", mas sim dele ter sido distribuído. Indo mais adiante, o livrinho "Aparelho sexual e cia." não foi contratado pelo MEC, mas pelo Ministério da Cultura para distribuição nas bibliotecas. Já na questão do Roger Waters não houve uma fake news total.

ConJur — Como assim?
Karina Kufa —
A empresa que contratou o Roger Waters para fazer o show no Brasil é a maior beneficiária da Lei Rouanet. Não foi uma fake news por parte da campanha. Na ação é alegado que a empresa que o contratou poderia receber benefício indiretamente da Lei Rouanet, mas o cantor não poderia receber diretamente porque ele é um cantor internacional.

ConJur — A Justiça Eleitoral tutela demais a vontade do eleitor?
Karina Kufa —
Nas eleições passadas não houve tutela demais da Justiça Eleitoral em cercear o que se falava na propaganda, por exemplo. E a mesma coisa em relação ao eleitor, que teve bastante liberdade para participar da campanha eleitoral. O tribunal mantém a vontade do eleitor por ter escolhido determinado candidato para ser legítimo defensor da democracia, desde que não tenha ganhado a eleição com base numa conduta grave, ou então esteja inserido em um dos dispositivos previstos na Lei da Ficha Limpa. Não vejo por parte do TSE cerceamento, ele tutela dentro das leis.

ConJur — Há alguma forma de os tribunais eleitorais atuarem para manter a estabilidade das jurisprudências?
Karina Kufa —
Com o Código de Processo Eleitoral. Praticamente todo ano eleitoral tem mudanças nas resoluções e essa discussão é antiga. Em meados de 2010, foi criado um colégio de presidentes das OABs, que eu fiz parte pelo Conselho Federal, e nós tínhamos a intenção de levar o pleito da aprovação de um Código de Processo Eleitoral para o Congresso, o que não foi muito adiante.

ConJur — Em que nível isso influencia no trabalho da advocacia? 
Karina Kufa —
Para os advogados militantes na área eleitoral, a mudança contínua da legislação eleitoral é relativamente tranquila, porque estão acostumados a acompanhar as novidades legislativas ou novas resoluções. Porém, muitos candidatos pensam que por ter tomado uma atitude na eleição passada poderão fazer nesta também. Isso dificulta não só a vida dos advogados que atuam apenas nas campanhas, mas também a própria equipe e o candidato. Esse advogado provavelmente não acompanha o processo de modificação das normas e acaba não sabendo qual que é a regra do jogo. Em algumas situações a legislação conflita com as normas e isso dificulta o trabalho.

ConJur — Pode citar algum exemplo?
Karina Kufa —
O carro de som só é permitido em carreata, passeata, caminhada e durante reuniões e comícios. Foi feita uma consulta ao TSE para saber qual é o conceito de carreata. Com dois carros já pode ser considerada uma carreata? Da mesma forma, outra previsão não afinal qual deve ser o tamanho da bandeira. Até então, fica a critério de cada zona eleitoral. O juiz que fiscaliza a propaganda eleitoral acaba determinando isso e, às vezes, quando não determina, cada candidato faz do seu jeito. Uns fazem de forma mais arriscada e conseguem ter mais visibilidade do que os mais conservadores.

Para o próprio processo eleitoral seria de muito bom grado ter regras mais claras e resoluções que dissessem exatamente o que pode e o que não pode. E também ter um Código de Processo Eleitoral atualizado para dar conta desses conflitos e ajudar na consulta do advogado não militante. Para mudar a jurisprudência teria que ser votado agora e definir se um caso concreto se aplicaria a jurisprudência que já existia ou se seria aplicado para a próxima eleição. O TSE tem trabalhado bem na questão de estabilidade de jurisprudência.

ConJur — A Justiça Eleitoral sofre do mesmo problema dos outros ramos, que é não seguir as definições do TSE?
Karina Kufa —
Isso acontece sim e justamente por isso o TSE reverte algumas decisões dos TREs em decisões gravosas, como de cassação de mandato. Um caso muito claro aconteceu quando o TSE considerou que quem doa acima do limite legal a um candidato se torna automaticamente inelegível.

Tiveram alguns casos que meu escritório defendeu que a pessoa não estava inelegível porque a doação era de um percentual ínfimo: meio por cento do total gasto na campanha. Mesmo assim, o juiz da zona eleitoral indeferiu o registro sob argumento de que a pessoa estaria inelegível porque não dependia do quanto ela doou, sendo que a jurisprudência atual já previa flexibilização. Em 2016, como nem todos os processos haviam sido julgados pelos TREs antes da eleição, os candidatos tiveram que ser substituídos ou perderam a eleição porque acabaram ficando com a mácula de estar inelegível.

ConJur — A política está melhor com a aplicação da Lei da Ficha Limpa?
Karina Kufa —
A Lei da Ficha Limpa foi um marco importante para a justiça eleitoral e para a democracia. De uma forma geral, ela tem limpado a política, mas é extremamente defeituosa e mal redigida. É difícil defender totalmente a Lei porque ela é ruim, inclusive para impedir que candidatos se lancem justamente. A alínea G acabou dificultando a incidência de inelegibilidade.

A Lei prevê a mesma sanção para casos antagônicos. Por exemplo, se um determinado candidato, que foi prefeito, superfaturar uma obra em alguns milhões de reais tendo enriquecimento ilícito, ele vai ficar tão inelegível quanto uma pessoa que foi expulsa dos quadros do conselho regional de contabilidade. Isso cria contrassenso, porque a lei prevê a sanção de no mínimo 8 anos de inelegibilidade para qualquer caso. Antes, para ser declarado inelegível com contas irregulares bastava o vício insanável, agora tem o ato doloso e de improbidade administrativa. Já me deparei com algumas situações que na leitura do artigo anterior a pessoa estaria inelegível, mas no atual não, porque os requisitos são mais amplos. Daí eu concordo com o ministro Gilmar Mendes, do STF, quando ele diz que a lei foi mal redigida.

ConJur — O que foi percebido com a Lei?
Karina Kufa —
Antes da Lei da Ficha Limpa as demandas judiciais eram pequenas, e hoje se avolumou demais. Também houve mudança de comportamento dos gestores públicos, que antes não se preocupavam em responder uma ação de improbidade no Tribunal de Contas, pois receberiam uma multa como sanção. Isso ensejaria, no máximo, inelegibilidade por 3 anos. Com a Ficha Limpa, aumentou a preocupação com o uso do dinheiro público e com a administração em geral, já que aumentou também a penalidade, como responder uma ação de improbidade pelo mesmo fato. Com isso, buscam cometer menos erros e ter maior zelo, o que acredito que diminui a corrupção. A partir do momento que políticos sabem que as consequências são grandes, como ficar inelegível por, no mínimo, 8 anos, eles mudam. No mínimo 8 anos porque as penas não são somadas, mas começam a contar em períodos distintos. 

Se tivesse alguma reforma hoje teria que ser aprovada pelo Congresso. Embora seja vendida como uma lei de iniciativa popular, a Ficha Limpa foi aprovada pelo Congresso, alterando a Lei Complementar 64 de 1990. Por prever sanção de três anos, a LC era inócua porque a pessoa cumpria a pena e já se candidatava para a próxima eleição.

ConJur — Como avalia a medida da cota de gênero de 30%?
Karina Kufa —
Sempre fui favorável às cotas, porque tem pouca representatividade das mulheres nas campanhas eleitorais. Quando veio a cota de financiamento, todos imaginaram que teriam mais mulheres eleitas. Realmente tivemos um número maior de mulheres eleitas, mas elas não tiveram dinheiro. Muitas foram eleitas com uso das redes sociais. Joice Hasselmann e Janaína Paschoal gastaram pouquíssimo.

É preciso questionar a efetividade dos 30%, que não fez com que tenham mais mulheres no Congresso, por exemplo. O que eu vejo como solução é a educação do eleitor. Se a campanha de Bolsonaro conseguiu criar um diálogo com o eleitor e virar Presidente da República, por que a gente não consegue qualificar uma mulher para ela também ter esse diálogo nas redes sociais? Criei um projeto chamado Eleita, que deve começar em março ou abril. A ideia é dar cursos gratuitos para mulheres que têm interesse na política num período anterior da eleição, ajudando na qualificação delas sobre os mais diversos temas: desde regras eleitorais, com o que pode e o que não pode, até sanções, a questão do marketing político e prestação de contas.

ConJur — As regras eleitorais hoje são rigorosas em relação à lisura dos gastos de campanha e têm grande preocupação com a honestidade dos candidatos — mas não fazem qualquer exigência quanto à aptidão, capacidade ou competência do candidato. Como está, não se corre o risco de o país ter toda uma geração de eleitos "honestos" e incompetentes? Se para dirigir um automóvel é preciso exame psicotécnico, não deveria haver também para quem vai dirigir uma cidade ou um estado?
Karina Kufa — Quando decidimos a nossa democracia, foi estabelecido que todos pudessem se candidatar desde que atendidos alguns requisitos. Ao exigir escolaridade, porém, seria retomado o tempo que a política era exclusiva de uma determinada classe. Se eu falar que a partir de agora para ser candidato à presidente tem que ter mestrado e doutorado, quem serão os candidatos à presidência? Só uma determinada classe. Você acaba restringindo a política de outras classes.

E o sistema representativo é isso: representar o povo. É preciso trabalhar para que o povo tenha uma educação de qualidade, mas não restringir que aquele que não tem uma educação formal não possa atingir um cargo de prefeito. Se pensarmos em criar requisitos de educação formal para uma pessoa sair candidata a algum cargo, a gente volta a aquele tempo que o poder, a política ficava nas mãos de alguns.

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