Anuário da Justiça

"Cabe ao Judiciário impôr parâmetro da legalidade contra messianismo punitivista"

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2 de março de 2019, 7h19

Spacca
Contra exageros e abusos impulsionados pelo clamor social diante de um Brasil problematizado e judicializado, cabe ao Judiciário trazer o parâmetro da legalidade e evitar efeitos funestos de cruzadas messiânicas punitivistas. Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Antonio Saldanha Palheiro, é necessário o arrefecimento do ódio social corrente no país, assim como a reavaliação de uma política criminal que privilegia o encarceramento em massa.

“A sociedade não tem a percepção técnica de cada processo. Ela sabe o seguinte: ele é corrupto, ele estava envolvido com corruptos, eu quero vê-lo preso, porque esse cara tirou dinheiro do meu hospital, tirou dinheiro da escola dos meus filhos. A sociedade tem essa vertente e é legítima. Acho que cabe, sim, ao Judiciário trazer isso para o verdadeiro parâmetro do que deve ser feito, da legalidade. E a legalidade nesse cenário é fundamental. Porque toda cruzada messiânica ao longo da história deixou um rastro de sangue de inocentes”, afirma, em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2019, com lançamento previsto para maio.

O ministro defende que o julgador não se afaste da política criminal, sob pena de, ao interpretar friamente o Código Penal, não obter resultados socialmente relevantes. Mas convida à reflexão sobre a necessidade de manter o que classifica como “superencarceramento”. “A certos criminosos, se você tirar alguns elementos, não tem mais como praticar o crime”, avalia.

Para Antonio Saldanha, juízes com formação conceitual teórica sólida têm base argumentativa para negar a aplicação de precedentes, o que gera insegurança jurídica. “A gente estabelece um regramento, um critério, e a população tem que ter na cabeça que esse critério vai ser observado. Para não ficar o sabor aventureiro da interpretação de cada magistrado”, diz.

Leia a entrevista: 
ConJur — Quando um juiz ou desembargador decide, ele deve ter em mente a questão da política criminal? Porque, de fato, a decisão que ele toma é uma forma de efetivar essa política criminal.
Antonio Saldanha —
Qualquer decisão judicial tem a estrutura, tem a substância da conceituação da dogmática jurídica, mas ela tem também um componente ideológico. Claro, a forma de você decidir traz um pouco da ideologia. E a gente não pode se afastar da política criminal. Se aplicar o Código Penal friamente, você muitas vezes não vai ter o resultado socialmente relevante. O que temos que discutir é exatamente essa política criminal. Onde que a gente quer chegar? Por exemplo, hoje estamos com um superencarceramento, isso é inquestionável, indiscutível. As prisões estão superlotadas, em condições indignas, que o Supremo chama de 'Estado de Coisas Inconstitucional'. Aí vem a política criminal. Vamos continuar com a política de encarceramento? Então vamos ter que construir mais prisões e vai custar mais tantos milhões para os cofres públicos. O que a gente quer fazer? Ou não? Vamos ser mais seletivos no encarceramento? Então o que que a gente vai deixar de encarcerar? Que tipo de crime? 

ConJur — O senhor acha que é preciso que o encarceramento seja mais criterioso?
Antonio Saldanha —
Isso é uma opinião estritamente pessoal: eu acho que a prioridade para um encarceramento são aqueles crimes que carregam violência e ameaça, aqueles que fazem mal fisicamente às pessoas. A certos criminosos, se você tirar alguns elementos, não tem mais como praticar o crime. Agora, o cara que sai com uma faca, uma arma de fogo e vai te machucar, vai te matar, subtrair teu patrimônio, esse não pode ficar solto, porque tem uma índole de fazer mal fisicamente às pessoas. Então na minha concepção são esses crimes que a gente tem que privilegiar para encarcerar. 

ConJur — Os mais violentos, prioritariamente. 
Antonio Saldanha —
Certos crimes, nesse momento, geram muita revolta social: crimes do colarinho branco, crimes contra a administração pública, e a gente vai ter que encontrar alternativas. Você tem mecanismos para evitar que eles pratiquem os seus delitos sem precisar, necessariamente, manter encarcerado a longo prazo. Se você bloqueia a conta bancária, tira o passaporte, bloqueia o cartão, afasta da administração pública, ele não tem como fazer mal a mais ninguém.

ConJur — Mas a impressão que se tem é a de que a sociedade quer ver exatamente essas pessoas dos crimes de colarinho branco encarceradas.
Antonio Saldanha —
Quer.

ConJur — Esse momento pós-lava jato mudou um pouco a situação?
Antonio Saldanha —
A sociedade está revoltada com isso e tem essa inclinação, esse é o rumo da história. E a gente tem que olhar isso com muito cuidado quando vê esse messianismo punitivista. Historicamente a gente vê, porque a sociedade não tem a percepção técnica de cada processo. Ela sabe o seguinte: ele é corrupto, ele estava envolvido com corruptos, eu quero vê-lo preso, porque esse cara tirou dinheiro do meu hospital, tirou dinheiro da escola dos meus filhos. A sociedade tem essa vertente e é legítima. Acho que cabe, sim, ao Judiciário trazer isso para o verdadeiro parâmetro do que deve ser feito, da legalidade. E a legalidade nesse cenário é fundamental. Porque toda cruzada messiânica ao longo da história deixou um rastro de sangue de inocentes. 

ConJur — É para coibir abusos. 
Antonio Saldanha —
Na Idade Média, a caça às bruxas pegava muitos adversários políticos. Na Revolução Francesa, quantos inocentes perderam a cabeça na guilhotina por causa daquela fúria contra a aristocracia? Até os teóricos da Revolução Francesa acabaram deixando o pescoço lá. E depois veio a Alemanha de Hitler, a Rússia de Stalin, o macarthismo nos Estados Unidos. A gente tem que olhar isso com cuidado. Os corruptos têm de ser punidos, segregados, mas a gente tem que cuidar dos inocentes, tem que arrefecer esse ódio social. Daqui a pouco as pessoas estão sendo apedrejadas na rua.

ConJur — E o recado das urnas é esse, do aumento da repressão.
Antonio Saldanha —
É o que o povo quer.

ConJur — E qual será o efeito, com a ascensão dessa 'nova política'?
Antonio Saldanha —
Essas lideranças que estão ascendendo ao poder terão essa percepção de que terão esse papel de unificação, de apaziguamento. Claro que foi muito discurso de campanha, a sociedade precisava ouvir esse discurso de saneamento, de purificação, que trouxe até um certo componente, em alguns casos, de vingança social. Mas eu tenho certeza que esses políticos que ascenderam ao poder e a sua assessoria, eles já estão direcionando para um discurso de união. Eu tenho muita esperança de que isso vai acontecer porque são pessoas de bem. Não são pessoas que têm uma ênfase de violência, de punitivismo. Eu acho que isso tudo era uma retórica de campanha. 

ConJur — Por qual motivo os precedentes do Direito Criminal por vezes não são cumpridos pelas instâncias inferiores?
Antonio Saldanha —
A Constituição inaugurou um sistema híbrido de controle de constitucionalidade. No Supremo você tem o controle concentrado. Mas, ao mesmo tempo, a Constituição autorizou que o juiz do caso concreto exerça o controle difuso, também isso como fruto da sede por liberdade depois do regime autoritário. Qualquer juiz do mais longínquo rincão nacional pode declarar a inconstitucionalidade de uma norma. Eu acho que o que impede as cortes de origem de cumprirem os precedentes é uma falta de tradição da nossa dogmática jurídica, a gente não tem essa tradição. 

ConJur — É uma questão cultural, portanto.
Antonio Saldanha —
A gente não tem essa tradição da dogmática jurídica de cumprir precedentes. O nosso sistema constitucional sempre foi concentrado. Então você vê, os Estados Unidos têm cerca de 30 mil juízes, mas lá eles cumprem, eles têm controle difuso, você não vê essas controvérsias. Por quê? Porque um juiz inglês ou um juiz americano não foge do precedente. A formação dogmática do nosso juiz é diferenciada. Ele diz assim 'olha, o meu entendimento é esse, a parte que recorra', 'Tem um precedente, mas eu penso diferente'. Quer dizer, ele não tem uma subordinação, isso é horroroso, porque isso traz insegurança jurídica. 

ConJur — Perde-se previsibilidade das decisões.
Antonio Saldanha —
A judicialização, apesar de numericamente ser bastante significativa, é uma aventura. Você torce para cair com o juiz que pense de uma forma que te ajude. Se o seu vizinho conseguiu, você pode cair com outro juiz que pense de outra forma, e essa falta de vinculação dos precedentes não é porque tem as vicissitudes regionais, é porque o juiz brasileiro não teve a formação de cumprir, de obedecer aos precedentes. 

ConJur — Ministros do STJ foram recentemente ao Tribunal de Justiça de São Paulo em reunião para tratar da jurisprudência. Esse é um exemplo de que a criminalidade local é mais dura, por isso o maior rigor.
Antonio Saldanha —
Mais dura que o Rio? Mais dura que o Nordeste? É cultura e, principalmente, São Paulo, que é um estado mais conservador, e os juízes estão muito bem formados. Os juízes paulistas, em geral, são juízes com uma formação conceitual teórica muito sólida. Então eles têm base argumentativa para dizer 'não, eu não entendo dessa forma, eu entendo de outra. Esse precedente não se aplica'. Mas com isso a gente traz o quê? Insegurança jurídica, porque a gente estabelece um regramento, um critério, e a população tem que ter na cabeça que esse critério vai ser observado. Para não ficar o sabor aventureiro da interpretação de cada magistrado.

ConJur — O STJ, como tribunal da cidadania, deve julgar tudo o que chega ou é necessário a imposição de filtros mais apurados, como proposto na PEC da Relevância?
Antonio Saldanha —
A sociedade brasileira vivencia um fenômeno que é reconhecido por todos que se resolveu nominar de judicialização das relações sociais. Hoje em dia nós vivemos em uma sociedade judicializada. A Constituição de 1988, exatamente em decorrência de mais de 20 anos de um regime fechado, um regime autoritário, veio buscando novos ares. Ela foi pródiga nas liberdades, nas garantias, nos direitos, e entre esses direitos, ou dentre esses direitos, desponta o acesso à Justiça como um consectário da cidadania. E isso foi muito enfatizado. Isso foi mobilizando, motivando a sociedade a judicializar as relações. 

ConJur — E como reverter?
Antonio Saldanha —
Eu penso que a gente tem que rever esse caminho. E para isso você tem que rever aspectos legais, encontrar modos alternativos de composição de conflito, não tem jeito. Hoje a sociedade tem esses meios alternativos, mas está acostumada e motivada a qualquer embaraço de relação social já recorrer ao Judiciário. As questões que deviam ser resolvida interna corporis. Na Câmara, no Senado, nas cortes estaduais, nas câmaras legislativas estaduais, tudo se judicializa. Então tem que rever isso. 

ConJur — O acesso à Justiça é muito amplo?
Antonio Saldanha —
Tem que encontrar caminhos. Creio que a gente não tenha alternativa a não ser limitar não o acesso à Justiça — isso não pode ser limitado —, mas limitar a natureza das controvérsias que podem ser objeto de demandas. Aqui, no STJ, na seção criminal, a gente está tendo aumento exponencial. Por que isso? O escopo do Habeas Corpus foi cada vez se ampliando mais. O que inicialmente era para garantir a liberdade de ir e vir, hoje se aceita em uma quantidade bem mais abrangente de situações controvertidas.

ConJur — Especificamente sobre o Habeas Corpus, qual seria a forma de limitar esse uso? 
Antonio Saldanha —
A gente vai ter que ter um regramento mais estreito, mais fechado para ocorrência, para a incidência do Habeas Corpus. Para isso, a gente depende da interpretação do Supremo Tribunal Federal, ele tem a última palavra. Como o Supremo é o Tribunal Constitucional e o Habeas Corpus está previsto na Constituição, ele tem que dar uma interpretação de conformidade para as necessidades sociais. E, na minha percepção, vai ter que ocorrer um regramento. A gente hoje usa Habeas Corpus para rever dosagem de pena, dosimetria. Diz respeito à liberdade, mas tem outros caminhos. 

ConJur — Essa questão da judicialização é cultural, também? Há indícios de mudança?
Antonio Saldanha —
É constitucional e cultural, não é só cultural. A Constituição veio abrir, trazer luzes para a sociedade, luzes de liberdade, de garantias, de direitos. E a reboque dessas luzes veio a judicialização. A gente tem uma Constituição de cláusulas abertas, são cláusulas principiológicas. Direito à vida, à saúde, à liberdade de expressão, liberdade de manifestação do pensamento, dignidade da pessoa humana. Com essas cláusulas a gente entra onde quiser. E a sociedade, então, se viu motivada a judicializar. Determinadas matérias que deveriam ficar no âmbito restrito da administração são judicializadas. 

ConJur — As agências reguladoras.
Antonio Saldanha —
Se uma passageira tem um problema com um voo, por que ela tem que vir à Justiça? Tem que ir à Anac, a agência que regula a aviação civil, e aí eles trariam uma solução genérica para evitar os atrasos e uma reparação para aquele caso específico. Mas hoje, por um lado a gente tem a ineficiência das agências. A agência não faz o seu papel como deveria por várias razões: porque viraram, na verdade, grandes celeiros políticos, que têm uma dependência do governo, elas não têm independência necessária para regulamentar o setor com o rigor que seria conveniente. Se você pudesse tirar da judicialização as questões que discutem energia elétrica, telecomunicações, telefonia, transportes, saúde… Quantas ações de saúde hoje a gente tem? Milhões, que deveriam ser resolvida lá pela ANS. 

ConJur — E não é o que acontece.
Antonio Saldanha —
Ao mesmo tempo, os órgãos de imprensa… Saiu uma reportagem que dizia que o custo da Justiça quadruplicou. Aí fazem uma análise parcial, né, segmentada. O custo da Justiça quadruplicou não é por causa de salários, não quadruplicou a remuneração de ninguém, é porque a judicialização aumentou. Então você precisa de mais recursos humanos, computador, prédios. Cada vez é mais processo entrando, você não consegue ver isso diminuir, a sociedade se autorregular. É uma ciranda. A gente tem que discutir isso amplamente e levar para a população, para determinados segmentos, que não adianta, que o Judiciário não vai se manifestar sobre isso. 

ConJur — De forma geral, qual é a principal contribuição do STJ para a sociedade nesses 30 anos desde sua instalação?
Antonio Saldanha —
Não é uma contribuição específica. O STJ tem a contribuição de garantir os direito infraconstitucionais, que antes ficavam com uma limitação de apreciação e uma uniformização de entendimento, porque as cortes estaduais, muito impregnadas pela cultura regional, ficava ali sedimentada. O STJ trouxe uma visão mais generalizada do Direito e pode, efetivamente, uniformizar entendimentos a nível nacional. Então acho que esse é o grande papel, uniformizador das relações infraconstitucionais.

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