Limite Penal

O projeto "anticrime" passaria no teste Kobayashi Maru?

Autores

1 de março de 2019, 8h00

Spacca
O título pode soar estranho. Porém, os fãs da série Star Trek certamente conhecem muito bem a expressão. Aliás, Robert Alexy já lhe fez referência (ALEXY, Robert; GARCIA FIGUEROA, Alfonso. Star Treck y los Derechos Humanos. México: Tirant lo Blanch, 2012), assim como Vinícius Mozetic. No universo Star Trek, Kobayashi Maru é um cenário de simulação de uma espaçonave ocupada por 300 pessoas, que pede socorro por estar perdida dentro de uma zona neutra. O cadete em teste deve decidir se viola o tratado — praticando um ato de guerra e invadindo a zona neutra para salvar os 300 tripulantes da aeronave — ou se apenas os deixa morrer no espaço.

Em Star Trek II: A ira de Khan, Kobayashi Maru é colocado como um teste para o qual a possibilidade de vencer não existe, já que não há solução viável. É uma prova destinada a testar a disciplina, o caráter e a capacidade de comando do candidato, diante de uma situação impossível. Ainda assim, no filme, o capitão Kirk é tido como o único que teria logrado êxito, ao mudar as “condições de teste”.

A grande questão é: diante de um teste impossível de ser aprovado, qual seria sua ação? Você violaria o tratado e invadiria a zona neutra? Você mudaria as condições do teste? Diante de dois bens jurídicos a serem sacrificados, qual você optaria por sacrificar? Seu caráter seria aprovado no teste Kobayashi Maru?

Os acontecimentos nacionais que fazem parte da agenda diária de autoridades e cidadãos comuns evidenciam um ambiente semelhante ao cenário de simulação da série Star Trek. A corrupção, o crime, os desastres ambientais, a recente eleição para o cargo de presidente do Senado Federal, apenas para citar algumas controvérsias do cenário kafkiano atual, desafiam as autoridades públicas dos três Poderes da República a se submeteram ao teste Kobayashi Maru.

Na tentativa de se encontrar solução para estancar essas chagas e promover a saúde social, são apresentadas propostas pelas quais não há qualquer constrangimento em se defender a saída via violação de tratados. Embora tenha sido arquivada, a PEC 410/2018 tinha por objeto a alteração do artigo 5º, inciso LVII, da CF, com a finalidade de assegurar a prisão após decisão condenatória em segunda instância. Nesse caso, estaria sendo violado o tratado constitucional, que não permite a alteração de cláusula pétrea por meio de emenda à Constituição.

No mesmo sentido é o projeto de lei “anticrime” (By PreCogs — Minority Report). Tentando ressuscitar práticas antidemocráticas, pelo projeto viola-se o tratado, atenta-se contra a Constituição e, aparentemente, tenta-se causar um ato de guerra, não contra o crime, mas contra o Direito.

Por mais que o artigo 5º, LVII, da Constituição da República seja claro ao estatuir que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e que o artigo 283 do Código de Processo Penal dispõe que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”, pelo projeto “anticrime” se pretende inverter a lógica para que a prisão seja a regra, e a suspensão da execução provisória exceção, reservada aos casos em que houver uma “questão constitucional ou legal relevante” (sic). Aliás, o projeto do ministro é cheio de “excepcionalmentes”. No documento esta prevista, inclusive, a prisão imediata após a condenação pelo tribunal do júri[1]. Mas, claro, “excepcionalmente”, o juiz presidente poderá “deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação” (PreCog).

Isso tudo sem falar na ampliação trágica da excludente de ilicitude da legítima defesa (licença para matar) para incorporar as hipóteses decorrentes de medo ou surpresa do agente. O atual artigo 25 do Código Penal estabelece que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Pelo projeto “anticrime”, propõe-se o acréscimo de um parágrafo único, com a seguinte redação:

“Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. 

Em resumo, a mera possibilidade sobre os fatos (imaginária, porque não verificável) autoriza alguém a matar. Como bem demonstra Luís Greco, trata-se de proposta supérflua e/ou nociva, uma vez que, em sendo a legítima defesa direito de o ser humano resistir ao arbítrio alheio, não se pode restringi-la a agentes policiais, “porque induz a uma compreensão diversa, que, na sua pior versão, confere licenças para matar e transplanta para a legítima defesa a lógica do direito de guerra. A proposta de um excesso na legítima defesa é, em si, bem-vinda, mas foi mal executada”[2]. E o pior: como agora nos confrontos se pode matar por prevenção, deve-se antecipar que o “outro lado” também vai se “prevenir da prevenção”, a saber, se um lado atira antes, o outro está autorizado a atirar antes do antes.

Mas já que estamos falando de uma série americana, vamos falar da tentativa de americanizar o processo penal também. Conforme sabido, a pena é uma atribuição estatal (Estado-juiz) e, portanto, pública. Apesar disso, o monopólio do poder de punir vem sendo perseguido por aqueles que galgaram superpoderes com a Constituição de 1988 e, agora, com a rubrica do projeto “anticrime”, pretendem implementar o plea bargaining no Brasil.

Ocorre que o plea bargaining é uma degeneração do processo penal e uma visão distorcida do que seja um processo penal de partes e do sistema acusatório[3]. Apesar de a ampliação negocial ser uma tendência mundial, a importação à la carte, como diz Aury Lopes Jr. (aqui), do modelo americano defendido pelo ministro Sergio Moro evidencia uma completa ausência de jurisdição sobre as investigações, o que representa grande risco para os direitos e garantais constitucionais. A novidade precisa ser tropicalizada de modo a pensar, se for o caso, todo o sistema, e não reformas ad hoc. Assim é que os acontecimentos que assaltam a dinâmica do tecido social brasileiro, com evidência de grande espaço já afetado pela degeneração, e o agir das autoridades que integram os três Poderes da República dão sinais que oportunizam vislumbrar que o Brasil está perdido dentro da zona neutra.

Mas o Brasil não é uma série de ficção. A falácia do socorro não pode ter a força de violar tratado, especialmente quando esse tratado é a Constituição da República. A falácia do socorro também não pode abrir espaço para a atuação messiânica, a qual, para passar no Kobayashi Maru, muda as condições do teste. Prender sem o trânsito em julgado, relativizar a presunção de inocência ou importar práticas de outros países sem se pensar o nosso sistema processual pode parecer politicamente correto e moralmente bom, todavia essas são matérias que invadem a zona neutra constitucional e, portanto, praticam um ato de guerra contra o Direito. Além disso, demonstram uma fosso criminológico assustador de quem pretende promover alterações legais.

Apesar da crise moral que o país atravessa, não podemos deixar que isso contamine o processo. Em termos hegelianos, se o cometimento do crime se dá com a negação/violação do Direito[4], não se pode permitir que a aplicação da pena, que é a negação da negação do Direito, se dê, também, com a negação do próprio Direito. É dizer: a aplicação do Direito só é possível dentro das balizas do devido processo penal. O crime é, por definição, a violação da norma. Querer aplicar uma penalidade ou restringir direitos violando os limites impostos pela lei acaba se tornando um ato de negação do próprio Direito. Sem falar na questão dos custos da implementação das ditas reformas anticrime. Não combinaram com o ministro Paulo Guedes, até porque não há prisão grátis. Enfim, o projeto, nos pontos sublinhados, é um espetáculo da ficção e do Direito Penal simbólico.

Vamos pensar e bom Carnaval.


[1] Sobre o assunto, já defendemos a inconstitucionalidade da medida aqui: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-indevida-execucao-provisoria-da-pena-apos-condenacao-pelo-tribunal-do-juri-03082018
[
2] GRECO, Luís. Análise sobre as propostas relativas à legítima defesa no ‘Projeto de Lei Anticrime’. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/penal-em-foco/analise-sobre-propostas-relativas-a-legitima-defesa-no-projeto-de-lei-anticrime-07022019
[3] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 159.
[4] HEGEL. Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 85

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!