Anuário da Justiça

STJ cobra respeito à jurisprudência de juízes e tribunais, sob pena de colapso

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31 de maio de 2019, 8h33

* Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2019, lançado na quarta-feira (29/5) no Supremo Tribunal Federal

O Superior Tribunal de Justiça quebrou recordes em 2018. As canetas dos 33 ministros trabalharam quase tão rápido quanto o ponteiro dos minutos do relógio: julgaram mais de 511 mil processos. Isso representa uma média de 1.402 processos julgados por dia. Ou 58 por hora. Se trabalhasse todos os dias do ano e todas as horas do dia, cada ministro teria julgado 42 processos diariamente, quase dois por hora. Ainda assim, outros quase 300 mil casos ficaram no acervo aguardando definição. A corte vem desenvolvendo instrumentos tecnológicos para facilitar sua navegação, mas vê como primordial que as outras instâncias remem na mesma direção, sob risco de naufrágio.

Em encontro com os presidentes dos Tribunais de Justiça de todo o Brasil em São Paulo, em fevereiro de 2019, o presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, transmitiu diretamente essa mensagem. “O Brasil precisa de um padrão legislativo e um padrão a ser observado para que o jurisdicionado possa se pautar e se comportar conforme o entendimento do Judiciário. Se tivermos 200 entendimentos, ninguém saberá o que fazer. Tornar-se-á um país de malucos”, avisou. “Não podemos deixar cada tribunal e cada juiz decidir como quer”, resumiu.

ConJur
O problema pode ser intensificado pelas mudanças trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015, que aproximou o sistema jurídico brasileiro, historicamente baseado na Civil Law, da Common Law, que usa o sistema de precedentes. Como explica a ministra Assusete Magalhães, a mudança alargou a marcha processual, com alteração da contagem de prazos, agora em dias úteis, e o aumento das possibilidades recursais e do contraditório. “É preciso que o sistema de precedentes qualificados efetivamente funcione, senão teremos uma piora da situação no Judiciário”, conclui.

A crítica feita quanto à imposição de precedentes, a despeito do que ocorre em países que adotam a Common Law, em que a jurisprudência é construída e aceita com o tempo, é rebatida pela maioria dos ministros consultados pelo Anuário da Justiça. A ministra Nancy Andrighi, por exemplo, explica que a consolidação de precedentes pela corte decorre “da profundidade da análise e da força da argumentação jurídica”.

Acervo STF
Paula Carrubba/Anuário da Justiça

Não são raras, no entanto, decisões que superam súmulas, recursos repetitivos ou com repercussão geral e contêm o preâmbulo “não se desconhece o posicionamento das cortes superiores sobre o tema; no entanto…”. O desrespeito aos precedentes, alertam ministros da corte, é também uma das causas mais relevantes da explosão do número de recursos — em 2018, o STJ recebeu cerca de 350 mil novos processos. “Vamos lembrar que, embora fosse algo sugerido ao Judiciário — dar inteireza, estabilidade e segurança jurídica por meio de uma jurisprudência sólida e estável —, a jurisprudência sempre foi instável, e muitas vezes o próprio STJ chegou a ponto de claudicar, alterando-a aqui e acolá”, afirma o ministro Mauro Campbell Marques.

ConJur
O ministro Felix Fischer é um dos que trata com naturalidade o exercício do livre convencimento pelos magistrados brasileiros. Decano do STJ, ele atua na 3ª Seção, especializadas em matéria penal, onde por vezes filigranas alteram o curso das decisões. “O juiz tem direito a pensar, e também o Ministério Público. Se há um pensamento diferente e achamos que está errado, reformamos a decisão. Não há motivo nenhum para se irritar com isso”, minimiza.

Nos colegiados que decidem matéria penal, os excessos aparecem na forma de Habeas Corpus, definidos pela ministra Laurita Vaz como “panaceia para todos os males do processo penal”. A explicação dada pelos tribunais é que especificidades locais fazem com que decisões destoem do que o STJ definiu em âmbito nacional. O argumento é rejeitado pelos ministros. “A desobediência a precedentes cria uma desordem no sistema jurídico, e para o sistema funcionar existe, aceitem ou não, hierarquia”, diz o ministro Joel Ilan Paciornik.

Em evento promovido pela revista eletrônica ConJur, o presidente da corte, ministro João Otávio de Noronha, repreendeu publicamente o Tribunal de Justiça de São Paulo por “decisões condenatórias ao arrepio de súmulas do STJ e do STF”. Um de cada quatro recursos que tramitam no STJ veio da corte paulista. “O TJ-SP tem uma dívida e é bom que a gente diga e converse sobre isso”, disse Noronha na ocasião. Em novembro, o TJ-SP recebeu comitiva de quatro ministros do STJ para encontro de trabalho sobre jurisprudência penal, em que apresentaram-se dados estatísticos e discutiu-se a aplicação dos precedentes. Ministros já visitaram 15 tribunais, da Justiça Federal e estadual, para tratar de jurisprudência.

“Qual juiz vai ser burro de não citar o precedente do Supremo, do STJ na decisão e já eliminar aquele caso?”, indaga, de forma bem-humorada, o ministro Benedito Gonçalves. “Hoje, a cultura dos juízes e das escolas de magistratura, preservando a independência e o livre convencimento do juiz, é de não fazer da decisão judicial uma tese acadêmica. Aqui a parte quer uma resposta rápida”, acrescenta.

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Membros da corte concordam com a necessidade de mudança de mentalidade do julgador. Diretor da Enfam, a escola nacional de formação de juízes, o ministro Herman Benjamin destaca a necessidade de conscientizar que a cultura de precedentes “não é imposição de natureza casuística ou autoritária, mas um norte seguro para o juiz”. O ministro Luis Felipe Salomão acredita que o momento de câmbio de mentalidade já começou: “O Judiciário é muito avesso a qualquer mudança. Mas a velocidade com que o mundo moderno exige essas mudanças faz com que ele acelere seu ritmo”, avalia.

Enquanto isso, o STJ aposta na tecnologia. O tribunal já está quase que totalmente informatizado: em 2018, 85% dos recursos chegaram via petição eletrônica – os 15% restantes incluem Habeas Corpus, que podem ser encaminhados fisicamente.

Em agosto de 2018, iniciou os julgamentos virtuais pela 3ª Turma, prática já estendida a todos os colegiados. Por meio de um sistema “simples e eficiente”, segundo ministro Marco Aurélio Bellizze, a sessão fica aberta por sete dias para exame e voto dos julgadores. A avaliação no tribunal é positiva. A corte também regulamentou o teletrabalho. A medida melhora a qualidade de vida dos funcionários, economiza recursos e tem como contrapartida metas de produtividade pelo menos 20% maiores que as dos que trabalham presencialmente.

O próximo passo é a utilização efetiva da inteligência artificial, tema avaliado com entusiasmo por Laurita Vaz, presidente da corte no biênio 2016-2018, e por seu sucessor, João Otávio de Noronha. A ideia é que a identificação e classificação dos processos aconteça antes mesmo de sua distribuição aos ministros. Já há exemplos bem-sucedidos da prática nos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e Roraima e no STF, com o Projeto Victor.

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, diretor do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes, prevê aplicação semelhante na identificação de temas passíveis de afetação pelo rito dos processos repetitivos. “Preocupa o impacto cada vez maior da inteligência artificial tanto na nossa vida pessoal como na vida profissional. É realmente uma preocupação, temos que estar preparados”, afirma.

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A força-tarefa de servidores que atuou durante a gestão de Laurita Vaz para desafogar gabinetes com acervo grande foi deslocada para o Núcleo de Análise de Recursos Repetitivos (Narer). O ministro Noronha também promoveu mudanças administrativas, como a extinção do setor de taquigrafia e a reorganização dos órgãos de secretaria.

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“Tivemos como único objetivo liberar funcionários da atividade meio para que possam atuar na atividade fim, que é aquela diretamente ligada à produção do julgamento, da decisão. Com isso, vamos aumentar a produtividade do tribunal. Para conseguirmos, tivemos que eliminar uma série de procedimentos, remover pessoas, dirigi-las à atividade fim. Esperamos que, até o final de 2019, a produtividade do tribunal cresça de 20% a 30%”, afirma o presidente.

O ano de 2018 marcou, ainda, os dez anos da Lei de Recursos Repetitivos, que deu ao STJ o procedimento para julgar demandas de massa, e a afetação de seu milésimo tema. A avaliação na corte é de que o mecanismo tem funcionado a contento. “Basta citar o julgamento da prescrição intercorrente. Estima-se que pelo menos 25 milhões de processos terão fim. Isso significa 1/4 do acervo processual nacional”, exemplifica o ministro Mauro Campbell.

Segundo o ministro Rogerio Schietti, tem havido uma sensibilidade “ainda insuficiente, mas maior” dos tribunais para o uso desse filtro processual. “Essa via ainda é muito pouco utilizada”, diz a ministra Laurita Vaz. À frente do Nugep, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino avalia a tramitação dos repetitivos como “razoável”. Em 2018, o STJ afetou 28 temas, definiu 40 teses e revisou três outras.

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Mais importante é que os repetitivos têm cumprido sua função de segurar a subida de processos. “Não tivemos diminuição sensível, mas seguramente esse modelo está a impedir que tenhamos hoje um número maior ainda”, diz o ministro Sérgio Kukina. A definição de precedentes qualificados aproxima o STJ de seu verdadeiro papel: o de unificador da jurisprudência infraconstitucional. Mas, em um ciclo vicioso, a função é atrapalhada pelo excesso de processos.

“Os recursos repetitivos atendem bem à função. Temos que pescar essa pérola num turbilhão de questões, num mar revolto. Essa pesca não se faz com a eficácia que gostaríamos por conta do acervo. Você está julgando um repetitivo e ao mesmo tempo tem N causas que atormentam o dia a dia da jurisdição”, explica o ministro Og Fernandes.

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