Opinião

Ainda a polêmica sobre as medidas executivas atípicas previstas no CPC

Autores

  • Luiz Rodrigues Wambier

    é advogado com atuação no Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal sócio do escritório Wambier Yamasaki Bevervanço & Lobo Advogados e professor no programa de mestrado e doutorado em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

  • Newton Ramos

    é juiz federal doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP e mestre pela Universidade de Brasília (UnB).

30 de maio de 2019, 7h13

Certamente um dos temas mais polêmicos do novo CPC, a previsão de medidas executivas atípicas no conjunto de poderes do juiz tem despertado grande interesse da comunidade jurídica. No plano do cotidiano forense, a criatividade tem sido pródiga: corte de energia elétrica de órgãos públicos, suspensão de serviço de redes sociais, bloqueio de contas e cartões de crédito, sequestro de verbas públicas em demandas de saúde, proibição do uso da área de lazer pelo condômino inadimplente etc. Parte da doutrina, em aval ao movimento pela máxima efetividade do processo, passou a defender a possibilidade de adoção indiscriminada de técnicas de execução indireta, como apreensão do passaporte e/ou de Carteira Nacional de Habilitação do executado, proibição de viajar, proibição de participar de concurso público ou de licitações públicas, entre outras.

O assunto, agora, está na agenda do Superior Tribunal de Justiça. Nos três primeiros Habeas Corpus ou recursos deles decorrentes que ali aportaram, a matéria de mérito não chegou a ser enfrentada sob o argumento de inadequação da via eleita (HC 428.553-SP, RHC 88.490-DF e HC 439.214-RJ). A 4ª Turma, contudo, no RHC 97.876-SP (rel. min. Luís Felipe Salomão, em 5/6/2018), considerou desproporcional a suspensão do passaporte de um devedor, determinada nos autos de execução de título extrajudicial, como forma de coagi-lo ao pagamento da dívida. O relator entendeu que a retenção do passaporte é medida possível em tese, mas deve ser fundamentada e analisada caso a caso, a fim de emprestar-se razoabilidade ao ato. No caso, considerou-se existente coação porque a medida foi adotada exclusivamente como forma de coerção para pagamento de dívida.

Em direção oposta, a 3ª Turma do referido tribunal, no RHC 99.606 (rel. min. Mancy Andrighi, em 13/11/2018), entendeu que, quando o devedor não indica meios para quitar sua dívida, pode ter seu passaporte bloqueado como meio coercitivo para pagamento do débito. Ressaltou a relatora, na ocasião, que os princípios da atipicidade dos meios executivos e da prevalência do cumprimento voluntário, ainda que não espontâneo, permitem ao juiz adotar meios coercitivos indiretos sobre o executado para que ele, voluntariamente, satisfaça a obrigação de pagar a quantia devida. A ministra também lembrou que o devedor não propôs meio de menor onerosidade e de maior eficácia da execução, o que representa violação aos deveres de boa-fé e colaboração.

Finalmente, em recente decisão envolvendo o ex-jogador de futebol Ronaldinho Gaúcho e seu irmão, a 2ª Turma do STJ manteve a apreensão dos passaportes como forma de coagi-los a pagar multa e indenização fixadas em um processo por dano ambiental. Os dois foram condenados pela Justiça do Rio Grande do Sul em virtude da construção de um trapiche na orla do Lago Guaíba, em Porto Alegre, sem prévia licença ambiental (HC 478.963, rel. min. Francisco Falcão, em 20/4/2019).

O relator entendeu que as medidas atípicas são cabíveis em situações em que o executado adota “uma postura processualmente desleal e não cooperativa”, que ocorre, por exemplo, quando “a busca persistente de bens do devedor não descortina patrimônio sujeito à execução, mas o comportamento social do executado evidencia o descolamento desse dado com a realidade: sinais de solvência em redes sociais ou no trânsito público em oposição à indisponibilidade patrimonial dentro das paredes do processo”. Nesses casos, “o descumprimento do princípio [da boa-fé objetiva], para além da sanção punitiva, deve irradiar efeitos jurídicos para repelir as consequências da atuação maliciosa”.

De modo geral, pode-se dizer que o CPC de 2015 teve como uma de suas preocupações fundamentais a construção de um processo eficiente, atribuindo à parte o direito a uma decisão de mérito justa e efetiva (artigo 6º). Na busca pela efetividade, merece destaque o inciso IV do artigo 139, que instituiu um “dever-poder geral executivo”, autorizando o uso, a princípio, de qualquer medida voltada à materialização da decisão judicial, inclusive em demandas de caráter pecuniário (tutela ressarcitória).

Neste ponto, é importante ressaltar que a atipicidade dos meios executivos não se consubstancia em uma regra aplicável a priori. Ao contrário, a regra do sistema continua a ser o da tipicidade dos meios executivos, embora mitigada pelo sistema atípico[1], cujo uso está autorizado quando frustrados todos os meios executivos típicos disponíveis. Além disso, o artigo 139 do CPC/2015, em seus incisos III e IV, define as medidas processuais punitivas e medidas processuais executivas aplicáveis ao processo civil brasileiro. Ali estão previstas duas modalidades de atuação distinta do magistrado: por meio delas é possível impor sanções (civil or criminal contempt) pelos atos de improbidade processual ou aplicar medidas de coerção para viabilizar a execução das ordens judiciais (coercitive power).

Em relação às medidas de coerção — que não se confundem, como dito, com medidas sancionatórias —, há que se ter em conta que a expressão para assegurar o cumprimento da ordem judicial revela a natureza instrumental da medida. Significa dizer que deve haver um liame necessário, lógico e razoável de instrumento e fim entre a medida coercitiva e o cumprimento da determinação judicial. Imposição de medidas que não obedecem a esse nexo etiológico mais se aproxima das medidas punitivas — que sempre obedecem à regra da tipicidade, em vista de seu caráter sancionatório — do que de medidas coercitivas — elencadas exemplificativamente pelo legislador[2].

Não por outra razão a simples ausência de indicação de bens pelo executado não pode ser “apenada” com o uso de medidas executivas atípicas, por se considerar sua conduta como “não cooperativa”. Aliás, no tocante ao “dever” de cooperação, é preciso lembrar que as expressões “cooperação” ou “colaboração” são dotadas de múltiplos sentidos, podendo ensejar uma exegese incompatível com a construção de um processo efetivamente democrático. Dali não se pode extrair o sentido de um dever da parte de colaborar com a pretensão de seu adversário, sendo certo que a própria estrutura adversarial do processo contencioso liga-se à ideia de uso pelas partes de suas posições antagônicas[3]. Nesse ponto, a parte tem um dever “negativo”: não criar obstáculos para que o Estado-juiz cumpra seu papel, o que não se confunde com auxílio à pretensão adversária (que, no caso do processo executivo, consubstancia-se na entrega do bem da vida perseguido). A cooperação, pois, não pode ser compreendida como um instrumento que, ao contrário de ampliar o debate processual, na perspectiva de uma “comunidade de trabalho”, presta-se à instrumentalização das partes e estímulo a uma postura ditatorial do juiz.

De fato, é preciso levar em conta que uma má compreensão da cooperação processual poderá conduzir a resultados desastrosos em termos de ganhos democráticos. Numa vertente autoritária, a cooperação pode estimular o protagonismo judicial indevido, temperado por um componente moral, capaz de relativizar posições processuais legítimas dos contendores, que agem na defesa estratégica de seus interesses em conflito, em busca da solução que se pretende “justa” ou mais “eficiente”.

A proposta da comunidade de trabalho visa incrementar o diálogo entre juiz e partes, de maneira a produzir decisões com maior grau de legitimidade. Essa proposta, porém, não equivale a conceder ao juiz a possibilidade de obrigar as partes a atuarem em busca de um resultado específico por ele escolhido. Assim, não é possível falar-se em boa-fé no sentido de colaboração para descoberta da verdade ou para a entrega da prestação jurisdicional, sob pena de se esvaziar o agir estratégico das partes, que insere no âmbito de sua autonomia privada.

Assim, não se revela adequada a leitura da cooperação como “colaboração” das partes para com o Estado, discurso que dá ensejo a toda sorte de ativismos voltados à realização de fins metajurídicos. Seria ela, nesse sentido, uma concitação, uma regra de boa vontade, devendo ser exercida pelas partes no limite de sua disponibilidade e no âmbito do dever de lealdade e probidade processual. Ela não se impõe como dever absoluto nem mesmo autoriza a imposição de condutas contributivas por ato jurisdicional sancionador. E, ainda quando não observada (a boa-fé processual), tal conduta enseja sanções típicas específicas, inclusive no processo de execução (artigo 774, CPC), para o que não se prestam as medidas voltadas tão somente ao adimplemento da obrigação. Com efeito, as diretrizes democráticas que balizam o processo moderno impedem que se atribua uma interpretação totalmente utilitarista aos poderes de condução do processo, de maneira a autorizar o juiz a adotar, a partir de argumentos econômicos, morais ou éticos, qualquer medida restritiva.

O dispositivo, de todo modo, impõe um desafio interpretativo no tocante à definição dos limites de atuação do magistrado, que obviamente não exerce competência discricionária. No ponto, impõe-se aqui o uso das técnicas de controle de constitucionalidade a fim de emprestar um sentido constitucionalmente válido à norma, especialmente a declaração de nulidade parcial sem redução de texto, de modo a excluir do espectro de sua abrangência situações que importem em malferimento de direitos fundamentais. Nesse sentido parece caminhar a recente ADI ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (ADI 5.941), subscrita pelos advogados Rodrigo Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega, que, aliás, recebeu parecer favorável da PGR no sentido de que “a fase de cumprimento da sentença, em qualquer tipo de obrigação, não é punição ao devedor. O Estado de Direito repele qualquer medida que se aproxime da vingança ou que supere a autorização constitucional para invasão do patrimônio do devedor para satisfazer o crédito”.

No Direito contemporâneo, há uma pretensão imanente em favor do cidadão de não se ver limitado — a não ser na perspectiva patrimonial — em razão de dívida. Não se vislumbra possível que uma obrigação patrimonial possa ser satisfeita, ainda que indiretamente, por meio de medidas que recaiam sobre a pessoa do executado, especialmente quando se intenta estabelecer, a título de medida coercitiva, sanções que em processos penais ou ações de improbidade somente são cabíveis após juízo definitivo de cognição exauriente, assegurada a ampla defesa.

Ganha relevo no exame das medidas executivas, aliás, o papel do diálogo entre juiz e partes, próprio do modelo cooperativo de processo. É que, antes de medidas unilaterais adotadas pelo magistrado, é possível que a aplicação da cláusula geral de negócio processual do novo estatuto (artigo 190) gere resultados mais efetivos quanto ao cumprimento escalonado de dada obrigação[4]. Nesse sentido, é possível construir um quadro programático de cumprimento de decisões judiciais em diversas questões sensíveis, como o fornecimento de medicamentos ou tratamento médico, reintegrações de posse, recuperação ambiental etc., inclusive a partir de medidas estruturantes em demandas de maior complexidade[5]. Essa perspectiva é capaz de gerar um processo de constante aprimoramento das decisões judiciais, tornando o processo decisório mais dinâmico com vistas a uma solução ajustada ao problema da efetivação de direitos[6].

Finalmente, não se pode olvidar que o quadro crônico de inadimplência e dificuldade de recuperação de crédito no Brasil é também um problema metajurídico (política de concessão de crédito, carga tributária, crise econômica etc.), que, como tal, ultrapassa o limite do Direito e das soluções que ele pode engendrar. A efetividade é um valor importante, mas não pode ser inimiga da sensatez nem conquistada a qualquer preço, ainda que se reconheçam as boas intenções que norteiam o uso das providências voltadas à entrega do bem da vida perseguido. Aliás, sobre a lógica dos fins que justificam os meios, o desafio reside na circunstância de que “ser bom é fácil; difícil é ser justo” (Inspetor Javert, no romance Os Miseráveis, de Victor Hugo).

Qualquer interpretação elastecida do dispositivo, portanto, redundará em retrocesso social aos tempos do Direito medievo, em que o sujeito pagava sua dívida com a liberdade ou com a própria vida. Essa perspectiva é importante para que o Direito não se afaste do seu locus originário, que é a tutela das garantias fundamentais de todo cidadão, entre as quais está o valor civilizatório que anima o devido processo legal.


[1] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 241.
[2] “Não nos parece que seja lícito ao magistrado – ainda que esteja legitimamente bravo e irritado e indignado com os atos processuais do executado cafajeste – possa, incorretamente, denominar de ‘medida coercitiva’ uma ‘medida sancionatória’ e, com base na atipicidade de meios executivos, inventar uma medida processual punitiva atípica, portanto, que esteja fora do rol de sanções desta estirpe previstas pelo legislador. Não pode haver uma sanção, seja ela processual ou não, sem prévia lei que a defina, e sem contraditório ou devido processo que permita alguém contra ela se defender; […]”. (RODRIGUES, Marcelo Abelha. O que fazer quando o devedor é um cafajeste. Apreensão de passaporte? Da carteira de motorista? Migalhas. 21 set. 2016. Disponível em: <http://m.migalhas.com.br/depeso/245946/o-que-fazer-quando-o-executado-e-um-cafajeste-apreensao-de-passaporte>. Acesso em: 18.jun.2018.
[3] MITIDIERO, Daniel; MARINONI, Luiz Guilherme. O projeto do CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 73.
[4] Na mesma linha de raciocínio, STRECK, Lênio; NUNES, Dierle; RAMOS NETO, Newton Pereira; FREIRE, Alexandre. Comentários ao art. 139. In: Lenio Luiz Streck; Dierle Nunes; Leonardo Carneiro da Cunha; Alexandre Freire. (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. 2ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 224.
[5] Sobre o tema, vide também: COSTA, Eduardo José da Fonseca. A “execução negociada” de políticas públicas em Juízo. Revista de Processo: RePro, v. 37, n. 212, p. 25-56, out. 2012. THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigância de interesse público e execução comparticipada de políticas públicas. Revista de Processo: RePro, v. 38, n. 224, p. 121-152, out. 2013.

[6] Nesse sentido, cf.: STRECK, Lenio Luiz. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Consultor Jurídico. 25 ago. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio#_ftnref2>. Acesso em: 25.ago.2016.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!