Direito em Transe

O tríplex de Schröedinger ou Direito Privado, esse desconhecido (parte 1)

Autor

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

30 de maio de 2019, 8h00

Spacca
O Código de Processo Penal autoriza ao juízo criminal, ao proferir sentença condenatória, fixar “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido” (artigo 397, IV, do CPP).

A ideia, naturalmente, é facilitar o ressarcimento do dano à vítima, que, tendo na sentença criminal condenatória um título executivo, não precisa se valer de uma ação cível de conhecimento.

Quando Caio furta a bicicleta de Tício, a fixação do dano é relativamente simples. Mas qual o dano a reparar, por exemplo, no famoso caso tríplex do Lula?

Dentro do grande marco de corrupção que teria ocorrido em torno da Petrobras, R$ 16 milhões teriam sido pagos pela empresa OAS ao Partido dos Trabalhadores. O acórdão condenatório impunha a Lula o dever de reparar toda essa quantia alegadamente recebida pelo PT.

Segundo o ministro Félix Fisher, relator, “não se mostra razoável admitir que o réu seja condenado a arcar, sozinho, com todo esse montante, já que inexiste prova de que ele tenha sido beneficiado com o valor integral desviado para o PT”. Reduz o montante para arredondados R$ 2,5 milhões[1].

Esse valor fica mais claro no voto do ministro Mussi: seria o valor do tríplex, “com reformas e mobiliário”. E faz uma ressalva: “apesar de o valor de R$ 2.424.991,00 (dois milhões, quatrocentos e vinte e quatro mil, novecentos e noventa e um reais) haver sido calculado com base na vantagem indevida comprovadamente recebida pelo acusado, com ela não se confunde, razão pela qual o confisco do apartamento tríplex como produto do crime não repercute no cálculo da indenização”.

Do voto seguinte, do ministro Soares da Fonseca, colhe-se que “condenou-se o recorrente (corrompido) e os corréus José Adelmário Pinheiro Filho e Agenor Franklin Magalhães (corruptores), ao pagamento de 16 milhões, a título de mínimo indenizatório, uma vez que foi este o valor destinado ao Partido dos Trabalhadores”.

É no voto do ministro Ribeiro Dantas que o valor final fica bem explicitado: “a diferença entre o valor pago na aquisição do imóvel 141 e o preço do apartamento 164-A, tríplex, no Condomínio Solaris, no Guarujá, no montante de R$ 1.147.770,96, mais os valores gastos na reforma e personificação do imóvel, avaliados em R$ 1.277.221,00, chegando-se ao total de R$ 2.424.991,00”.

Embora o conceito de dano seja tormentoso mesmo no Direito Privado, alguns pontos parecem consensuais o suficiente para mostrar o desacerto do Superior Tribunal de Justiça nessa decisão.

Em primeiro lugar, o dano é um só. Pode-se discutir, em um caso de roubo em concurso de agentes, isto é, com mais de um autor ou partícipe, se os gastos da vítima com remédios tranquilizantes para lidar com o trauma integram o dano sofrido pelo delito. Mas, chegado ao quantum, ele é único, de modo que seria um absurdo cobrar de cada um dos criminosos a totalidade do dano sofrido. Se, por hipótese, o dano fosse de R$ 10 mil e três fossem os agentes, é de clareza solar que não se poderia cobrar de cada um deles R$ 10 mil, pois isso faria o dano ser de R$ 30 mil.

No caso Lula, porém, os R$ 16 milhões foram cobrados de Lula, de José Adelmário Pinheiro Filho e de Agenor Franklin Magalhães, triplicando, portanto, o quantum.

Em segundo lugar, é preciso haver um nexo de causalidade entre a ação delitiva e o dano causado para que nasça o dever de reparar. Esse é o acerto do acordão; mas o valor eventualmente pago pela OAS ao PT está longe de se constituir de quantum para fins de reparação de dano. Retomaremos esse argumento ao final do artigo.

Em terceiro lugar, a alocação de responsabilidade por solidariedade tem de ter previsão legal ou contratual. Ainda que se quisesse fatiar o dever de “reparar” os R$ 16 milhões doados ao PT, o fatiamento desses valores seria uma complicada tarefa, no âmbito criminal. O Código Penal adota regra de unidade para fins de caracterização de um delito, no que diz respeito às diversas contribuições dos agentes em concurso. Assim, em que pese nem o anunciante do roubo com a arma em riste nem o comparsa que concomitantemente retira o dinheiro do cofre realizarem, sozinhos, o tipo penal de roubo, ambos respondem por ele. Mas não há regra congênere para o dever de reparar, isto é, não há determinação legal que determine a responsabilidade solidária dos réus na reparação civil ex delicto.

Em resumo: R$ 16 milhões não é dano; é inviável esperar de cada um dos três corréus a reparação integral, concomitante, do dano; não há norma explícita a autorizar a responsabilidade solidária.

Mas, sob o ponto de vista penal, o acórdão — notadamente no voto do ministro Mussi — avança em erro conceitual: dizer que o perdimento dos R$ 2,5 milhões — vantagem alegadamente recebida por Lula — não guarda relação com o dever de reparar os mesmos R$ 2,5 milhões, a título de dano, contraria o desenho jurídico brasileiro.

Lembre o leitor que o perdimento vem regrado no Código Penal, como efeito da condenação; cuida-se, no que interessa à análise, da perda em favor da União “do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato delituoso” (artigo 91, II, “b”). Trocando em miúdos: o que o criminoso ganhou com o crime não lhe pertence, mas à União. No caso de Lula, o upgrade no apartamento + reforma + mobília.

É possível um tríplex de Schröedinger, a um só tempo perdível para a União e reparador da vítima?

Temos uma pista forte no regramento das cautelares processuais penais para a solução do aparente dilema.

O Código de Processo Penal conhece medidas cautelares patrimoniais com duas finalidades: assegurar o perdimento de bens e/ou o ressarcimento da vítima. Os artigos 125 a 144-A do CPP são dedicados ao assunto, além do velho Decreto-lei 3.240/41, dedicado “ao crime de que result[e] prejuízo para a fazenda pública desde que dele resulte locupletamento ilícito para o indiciado” (artigo 1º).

Há, pois, como regra geral, três objetos de incidência das cautelares patrimoniais: (i) os instrumentos lícitos do crime; (ii) os proveitos da infração; e (iii) bens do investigado ou réu.

Os dois primeiros servem ao perdimento; o segundo, à reparação do dano sofrido pela vítima.

Pois bem. O Código de Processo Penal é claríssimo: “do dinheiro apurado” com o leilão dos bens sequestrados, “será recolhido ao Tesouro Nacional o que não couber ao lesado ou ao terceiro de boa-fé” (artigo 133). Repete, em verdade, o próprio artigo 91 do Código Penal, que afirma ser efeito da condenação o perdimento, “ressalvado o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé”. Logo, a lei estabelece uma ordem: primeiro ressarce-se a vítima ou o terceiro de boa-fé, para depois garantir-se, se for o caso, o perdimento.

Parece claro que essa solução se aplica a casos em que a União não é a vítima direta; assim, a ela se perde aquilo que represente produto do crime, no que excede a reparação da vítima. Mas e quando a União é a vítima?

Nesse caso, requer-se que haja o respectivo enriquecimento ilícito do investigado. Há jurisprudência no sentido de que o sequestro pode incidir, inclusive, sobre os bens ilicitamente havidos, com vistas à garantir o ressarcimento ao erário (cf. STJ, AgRg na PET 9.938/DF, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.10.2017; STJ, AgRg no ARESP 1.182.173/MG, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Jr., j. 5.4.2018). Isso porque, infere-se, o ente público é o destinatário final tanto do perdimento como da reparação.

Voltemos ao caso Lula: a perda do correspondente ganho ilícito havido pelo réu é efeito da sentença condenatória; se for revertido à vítima, não pode ser novamente cobrado pelo Estado a título de reparação do dano.

Esse caso concreto mostra que aplicabilidade da regra de reparação do mínimo indenizatório pelo juízo criminal não se mostra adequada para crimes mais complexos, assim entendidos aqueles em que a definição do quanto seja dano sofrido pela vítima é intangível ou de difícil determinação.

Aníbal Bruno já advertia que “mas deve-se observar que, se todo crime conduz conceitualmente a um resultado, porque este se inclui na estrutura da ação, substrato, por assim dizer, material do fato punível, nem sempre este resultado configurará um dano civil capaz de justificar a ação de ressarcimento”[2].

De fato, imagine-se o caso de um doleiro, que teria movimentado US$ 10 milhões, ao longo de 10 anos, valendo-se de interpostas pessoas jurídicas, sucessivas transferências bancárias, inclusive em jurisdições de baixa transparência bancária.

Qual o dano sofrido nesses casos?

Liberado o teto de câmbio, o único efeito negativo da evasão é a perda de percepção pelo Banco Central de divisas que brasileiros têm no exterior, além de uma provável não tributação da remessa. Já no caso da lavagem, prepondera que o bem jurídico afetado é a administração da Justiça, por meio da ocultação dolosa de bens e direitos. Mas isso não gera prejuízo palpável, perda patrimonial para a União.

De novo, o diabo da multiplicidade do conceito de dano. O Direito Administrativo conhece o conceito de dano in re ipsa, ou seja, o reconhecimento de que determinadas condutas são lesivas em si mesmas. Mas não é disso de que se trata o dano, na esfera penal.

Mesmo o perdimento, nesse caso, ficaria de difícil aferição. Não ofereço aqui um critério seguro para medir o quanto ele tenha auferido ilicitamente ao longo de dez anos, movimentando US$ 10 milhões. É certo, porém, dizer, que não foi de US$ 10 milhões, já que ele se locupletou apenas do lucro na transação ilícita de moedas estrangeiras. Que não se confunde, é óbvio, com a totalidade de valores movimentados.

Para conclui, relembro ao leitor que não estou a falar “apenas” da repercussão patrimonial nascente da responsabilidade criminal. Há diversos institutos penais só no Código Penal que dependem da reparação do dano, o que demanda, por certo, uma compreensão mais fechada, em atenção à legalidade estrita inclusive, do conceito de dano: a) arrependimento posterior (artigo 16); b) progressão de regime nos crimes contra a administração pública (artigo 33); c) atenuante (artigo 65, III, “b”); d) sursis e sua revogação (artigo 78, parágrafo 2º, e 81, III); e) livramento condicional (artigo 83, IV); e f) extinção da punibilidade no peculato culposo (artigo 312, parágrafo 3º).

Em resumo, o manejo exagerado dos quanta indenizatórios parece ser uma faceta do Direito Penal dos holofotes. Na prática, em muito casos, priva-se o acusado da totalidade de seus bens, ressalvado os de caráter alimentar, mas em violação a seu desenho legal. A privação dos bens — sobretudo em caráter cautelar — acaba servindo como verdadeira pena patrimonial antecipada, com todos os requintes da publicidade ostensiva. Não fosse suficiente, tem o condão de impactar diversos institutos penais, como visto. É a desnaturação do Direito Privado, a reboque do que se tem feito com o próprio Direito Penal, a serviço de um combate judicial ao crime, tão deletério como inconstitucional.


[1] As citações dizem respeito ao AgRg no Recurso Especial n. 1.765.139-PR.
[2] Direito Penal, Parte Geral. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, t. 3, p. 48.

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