Direito Comparado

TripAdvisor criará precedente na responsabilidade civil espanhola

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

29 de maio de 2019, 20h28

Spacca

Agências, mapas, guias de viagem e livros turísticos são cada vez mais parte do passado. Em alguns lugares, nem mais são editados, para tristeza de alguns e indiferença de uma crescente maioria. Toda essa indústria de assessoramento aos turistas e viajantes foi substituída por mapas virtuais, páginas de viajantes e, nos últimos anos, por aplicativos de hotelaria, de reservas (de restaurantes e pontos turísticos) e classificação de lugares (e todos os pontos de interesse neles localizados). A internet, dentre várias outras revoluções na vida privada, também operou sua passagem devastadora nesse campo onde se desenvolve o “ócio com dignidade”.

Um dos epicentros dessa transformação é um site norte-americano, fundado em 2000, com o objetivo de reunir e publicar resenhas de viajantes sobre os pontos de interesse turístico (ou a ele associados, como restaurantes, hotéis e centros comerciais). Seu nome é autoexplicativo quanto a essa finalidade: TripAdvisor. O “conselheiro de viagem” evoluiu de um modelo baseado em autofinanciamento para um negócio que se sustenta com publicidade eletrônica.

O TripAdvisor apresenta informações sobre hotéis, restaurantes, companhias áreas, locação por temporada e de veículos, categorias que se organizam internamente por uma série de informações segmentadas. É necessário criar um perfil para ter acesso pleno às informações do site. A partir desse perfil, o participante pode emitir opiniões sobre todos os lugares (e serviços associados) que frequentou. Com esse procedimento, retroalimenta-se uma cadeia informacional com um ranking qualitativo de bens (culturais ou comerciais), serviços e lugares. O posicionamento nesse ranking é, na atualidade, fundamental para se angariar novos turistas e, por consequência, clientes para o setor terciário do sítio visitado.

Criou-se uma verdadeira “rede colaborativa” de informações turísticas global. Para além da mera posição no ranking, é possível ingressar em um segundo nível de informação com a leitura dos comentários dos usuários do TripAdvisor. Essas opiniões revelam as experiências dos turistas (e consumidores), com graus diferenciados de qualidade e de detalhamento. O local avaliado pode “contraditar” as opiniões sobre eles emitidas. Mas, para isso, tem de se cadastrar no site e aceitar suas regras.

Esse “maravilhoso mundo novo” da comunidade turístico-informacional parece apresentar suas primeiras fissuras a partir de um processo ajuizado em Valência, na Espanha, pelo proprietário do restaurante Marina Beach Club em face do TripAdvisor, por conta de péssimas avaliações de clientes que foram publicadas no site. Em uma delas, um dos avaliadores chamou o restaurante de “Tóxico Beach”, após ter comido algo que lhe fez mal ao estômago.

Antonio Calero, o dono do Marina Beach Club, processou o site norte-americano e pretendeu uma reparação civil de 600 mil euros (equivalentes, ao câmbio de hoje, a R$ 2,6 milhões) a título de danos morais. Um dos pontos centrais da petição inicial está em que o restaurante não autorizou sua entrada no TripAdvisor e quando tentou administrar seu perfil no site ele não conseguiu mais impedir tais comentários, os quais seriam devastadores para a reputação do estabelecimento. Alguns desses comentários acusam o restaurante de fraudar a seguridade social espanhola e de contratar pessoas sem qualificação, além de possuir uma administração amadora. Para o autor da ação, tais comentários ingressaram mesmo na esfera criminal.

Na audiência, ocorrida na Justiça de Barcelona, compareceu Bradford Young, vice-presidente mundial da empresa norte-americana. Em seu depoimento, ele explicou que há controles dos comentários em dois níveis. O primeiro, feito por máquinas, e o segundo, por humanos (a empresa tem pouco mais de três mil empregados, sendo metade deles nos Estados Unidos). O controle humano é residual e destina-se a casos considerados fora dos padrões normais do site. O executivo, porém, ressalva que não há como se proceder a uma verificação factual dos comentários.

Quando os comentários são excessivos, a própria empresa os apaga em um ou dois dias após sua postagem, segundo Young. O ponto central de sua argumentação está em que a empresa seria um mero portal de hospedagem de opiniões, não podendo se responsabilizar pelos juízos críticos de seus participantes.

Como subjacente à causa está o velho debate sobre liberdade de expressão versus os valores associados à honra, à reputação e à imagem. Para o restaurante, contudo, há algo além disso: a petição sustenta que os estabelecimentos avaliados se submetem ao pior dos dois mundos. Não ingressar voluntariamente no TripAdvisor implica ter de se submeter às avaliações sem direito a contraditório. E ingressar conduz a uma escravidão: acompanhar todos os comentários diariamente e respondê-los, como se fossem servos da empresa norte-americana.[1]

A audiência ocorreu no final de maio e o caso está no início.

Independentemente do que dirá a Justiça espanhola, é quase certo que haverá recurso às instâncias europeias, dada a argumentação preliminar da empresa norte-americana sobre sua isenção jurisdicional por estar sediada fora do Reino de Espanha. Ademais, o exemplo do restaurante valenciano poderá ser indutivo de outras ações dessa natureza em vários países, a se observar o altíssimo valor do pedido de reparação por danos morais. Os riscos de uma sucumbência elevada não pareceram assustar ao dono do Marina Beach Club.

Trazendo-se o caso para a realidade brasileira, alguns caminhos podem ser explorados.

Não há dúvida de que comentários ofensivos, mesmo a pessoas jurídicas (Súmula STJ 227), podem gerar reparação civil. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orientou-se no sentido de que “toda a edificação da teoria acerca da possibilidade de pessoa jurídica experimentar dano moral está calçada na violação da honra objetiva, consubstanciada em atributo externalizado, como uma mácula à imagem, à admiração, ao respeito e à credibilidade no tráfego comercial. Assim, a violação à honra objetiva está intimamente relacionada à publicidade de informações potencialmente lesivas à reputação da pessoa jurídica”.[2] Embora haja na doutrina relevantes vozes a condenar a titularidade dessas pretensões por pessoas jurídicas[3], essa hipótese é admitida no STJ desde o final dos anos 1990, com o precedente firmado no Recurso Especial 147.702, relator para o acórdão ministro Waldemar Zveiter.[4]

A responsabilidade pelos comentários é outra questão. Evidentemente que os autores são imputáveis diretamente, mas, a se prevalecer o artigo 19 do Marco Civil da Internet, a empresa não responderia salvo por descumprimento da ordem judicial de remoção do conteúdo ofensivo.

Mas essa equiparação do site a um provedor de aplicações de internet poderia ser discutível. Abstraindo-se essa resposta baseada no citado artigo 19 do MCI, surge a equiparação do ranking a serviços de crítica culinária. Antigamente, radicados em jornais ou revistas impressos, essa crítica migrou também para a internet. Muitas vezes, o juízo do crítico é pleno de adjetivos ácidos e que levam a uma forte retração de potenciais clientes do estabelecimento. Com a internet, a crítica pode perdurar por anos a fio e induzir novos clientes a nunca arriscarem frequentar o restaurante, a despeito de eventuais melhorias no atendimento ou na qualidade da comida. Até hoje, ao menos na jurisprudência do STJ, não se conhece um caso de judicialização de tal exercício do direito de crítica gastronômica.

A ausência de precedentes não implica dizer que haja uma esfera de imunidade para os críticos, especialmente por algo que raramente é posto em causa: a legitimidade de quem critica. Mas isso é tópico para outra discussão.

Interessa aqui examinar o último ponto derivado do caso Marina Beach Club versus TripAdvisor: a inscrição coativa do restaurante no site.

Abrir e manter um restaurante é submeter-se a um regime de permanente crítica dos clientes e, ao menos até pouco tempo atrás, de um seleto grupo de experimentadores profissionais. São muito conhecidas as cenas de filmes que retratam a figura anônima do crítico em um restaurante e os efeitos de sua apreciação posteriormente publicada em jornais ou revistas. Quanto a isso, o TripAdvisor não inovou substancialmente. A grande diferença está na (i) a presença induzida no site; (ii) no volume exponencial de comentários (como salientado na petição do restaurante valenciano, capaz de criar uma escravidão para os avaliados) e, embora não assinalado, (iii) na falta de “autoridade” dos críticos.

O item (iii) faz lembrar a observação de Umberto Eco sobre a ascensão do “idiota da aldeia”: “Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel (…) O drama da Internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”.[5]

O item (ii), ao menos segundo o Direito brasileiro, paradoxalmente, cria uma esfera de proteção para empresas que operam na internet. Há um consenso, inicialmente jurisprudencial e depois plasmado em lei, de que o controle prévio desses comentários é inviável (o que é bem discutível). Mas a discussão nesse aspecto, ao menos no Brasil, seria inócua.

Resta o item (i): a inclusão do restaurante no site poderia ser compulsória, a depender da mera crítica de um usuário? A resposta seria singela se o modelo de crítica culinária fosse o tradicional: qualquer estabelecimento poderia ser visitado pelo crítico e ter sua comida e sua infraestrutura expostas no jornal. Modelos como o do TripAdvisor tornam difícil a transposição desse raciocínio da crítica culinária tradicional. Tem-se um verdadeiro negócio de avaliação coletiva, que a ninguém remunera (nem críticos nem criticados) e só resulta em lucros para o site. Poder-se-ia até mesmo dizer que a esse modelo seria mais adequada à analogia com uma “sociedade” de críticos e de criticados, na qual o ingresso deveria ser voluntário para ambos e não apenas para os primeiros. Esse é o aspecto mais interessante a ser examinado.

Reconhecer o direito a um estabelecimento de não ser integrado na plataforma não é algo tão irrazoável assim. E não se trata de mero exercício de liberdade de expressão dos críticos, que podem emitir seus juízos em jornais, blogs e outros meios de comunicação. Aqui há uma diferença: o negócio funda-se em uma crítica em modelo industrial, na qual críticos e criticados operam como empregados (sem remuneração) de uma empresa organizada com tal finalidade. Note-se que não se está a equiparar os rankings (e os há em grande quantidade nos mais diversos setores, inclusive para universidades) com o caso exposto pelo restaurante valenciano. O ponto central está nos comentários e não na pontuação. Os comentários estabelecem uma obrigação (não desejada) de vigilância permanente e de acompanhamento exaustivo para se avaliar excessos e responder a afirmações mais assertivas.

Estas são apenas as primeiras impressões para um problema que promete crescer e que merece as atenções dos civilistas. Há fortes razões que permitem defender ângulos opostos para esse caso. Por agora, vale acompanhar o desfecho do processo na Justiça espanhola. E, enquanto não chega a próxima viagem, convêm consultar o TripAdvisor.


[1] Todos os elementos descritivos deste caso foram extraídos de matérias jornalísticas: El Mundo (https://www.elmundo.es/comunidad-valenciana/2019/05/26/5ce966ccfdddffb0b88b466f.html); Público (https://www.publico.pt/2019/05/17/fugas/noticia/restaurante-mal-avaliado-tripadvisor-1873074); El País (https://elpais.com/economia/2019/05/16/actualidad/1558010266_281014.html). STJ. AgInt no AgInt no REsp 1455454/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17/04/2018, DJe 20/04/2018.

[3] FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Dano moral e pessoa jurídica. In. RODRIGUES JR., Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da. Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 553-561.

[4] “CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – RESPONSABILIDADE CIVIL – PESSOA JURÍDICA – DANO MORAL.

I – A honra objetiva da pessoa jurídica pode ser ofendida pelo protesto indevido de título cambial. Cabível a ação de indenização, por dano moral, sofrido por pessoa jurídica, visto que a proteção dos atributos morais da personalidade não está reservada somente às pessoas físicas (REsp nº 60.033-2-MG-DJ de 27.11.95).

II- Recurso conhecido e provido” (STJ. REsp 147.702/MA, Rel. Ministro Eduardo Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 21/11/1997, DJ 05/04/1999, p. 125).

[5] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2015/06/11/redes-sociais-deram-voz-a-legiao-de-imbecis-diz-umberto-eco.jhtm. Acesso em 28-5-2019.

Autores

  • é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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