Paradoxo da Corte

A "decisão surpresa" na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

28 de maio de 2019, 8h00

Diante da redação do artigo 10 do vigente Código de Processo Civil, a questão referente aos limites da liberdade decisória do juiz tem suscitado controvérsia, à luz do princípio iura novit curia.

Como é cediço, o julgador, ao construir a ratio decidendi e aplicar as “normas legais” ao caso concreto, goza de absoluta liberdade, nos limites fáticos constantes do processo, para a subsunção que reputar mais ajustada.

Na verdade, o limite da liberdade do julgador encontra-se naquele ou naqueles fatos que individualizam a pretensão do autor e a exceção oposta pelo demandado, e que constituem, respectivamente, a causa petendi e a causa excipiendi: a qualificação jurídica desenhada pelo autor e secundada pelo réu nunca é definitiva e, consequentemente, nada impede a livre eleição dos motivos ou normas jurídicas que o órgão judicante entenda pertinentes.

Pode até mesmo suceder que no processo hermenêutico de subsunção, o juiz entenda que à situação fática narrada, de conformidade com a lex generalis, são aplicáveis normas especiais de regência, como, por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, mesmo que não invocadas pelas partes.

É, pois, a partir desta ocorrência que se deve aferir a incidência ou não do artigo 10 do Código de Processo Civil.

E, assim, desde que debatida a questão sob todos os ângulos possíveis, não incide à evidência a regra do mencionado artigo 10, visto que a requalificação jurídica da demanda não se descortina como um “fundamento surpresa”.

Desse modo, pode ser afirmado que o juiz ou árbitro não só pode como deve, sem alterar os fatos expostos, imprimir o enquadramento jurídico que entender mais adequado, circunscrito ao pedido deduzido pelas partes. Daí porque, por exemplo, o tribunal poderá desprezar toda a discussão travada sobre a prova do ato culposo e, com base na responsabilidade objetiva, sem modificar ou introduzir quaisquer fatos, emprestar nova moldura jurídica aos mesmos, a partir do reconhecimento da culpa presumida do produtor demandado no âmbito de uma relação de consumo.

No entanto, a recíproca não é verdadeira, vale dizer, se o contraditório tiver como foco a possível existência de coação, é vedado ao julgador, sem possibilitar a manifestação das partes, proferir sentença declaratória de nulidade do negócio com fundamento na simulação, visto que diferente seria a base fática.

Assim também, se o juiz (ou árbitro, no terreno da arbitragem) formar convencimento de que se operou a prescrição, não arguida e tampouco debatida durante toda a tramitação do processo, não poderá extingui-lo, por meio de sentença de improcedência do pedido, pelo reconhecimento da prescrição, sem ouvir previamente as partes envolvidas. Justifica-se a manifestação dos litigantes, até porque poderá existir uma causa interruptiva da prescrição, não revelada pelo autor pela simples razão de não ter sido ela suscitada pelo demandado.

Importa considerar que o Superior Tribunal de Justiça tem interpretado, de forma absolutamente correta, a novidade então introduzida no Código de Processo Civil em vigor.

Com efeito, a 4ª Turma, no recente julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1.695.519-MG, da relatoria da ministra Maria Isabel Gallotti, assentou, à unanimidade de votos, que:

“O ‘fundamento’ ao qual se refere o artigo 10 do Código de Processo Civil (2015) é fundamento jurídico — circunstância de fato qualificada pelo direito, em que se baseia a pretensão ou a defesa, ou que possa ter influência no julgamento, mesmo que superveniente ao ajuizamento da ação — não se confundindo com o fundamento legal (dispositivo de lei regente da matéria). A aplicação do princípio da não surpresa não impõe, portanto, ao julgador que informe previamente às partes quais os dispositivos legais passíveis de aplicação para o exame da causa. O conhecimento geral da lei é presunção jure et de jure.

Em senso análogo, entendendo que tal orientação prevalece inclusive em grau recursal, a mesma turma julgadora, ao ensejo do julgamento do Recurso Especial 1.755.266-SC, com voto condutor da lavra do ministro Luis Felipe Salomão, decidiu que, textual:

“O artigo 933 do Código de Processo Civil (2015), em sintonia com o multicitado artigo 10, veda a decisão surpresa no âmbito dos tribunais, assinalando que, seja pela ocorrência de fato superveniente, seja por vislumbrar matéria apreciável de ofício ainda não examinada, deverá o julgador abrir vista, antes de julgar o recurso, para que as partes possam se manifestar.

Não há falar em decisão surpresa quando o magistrado, diante dos limites da causa de pedir, do pedido e do substrato fático delineado nos autos, realiza a tipificação jurídica da pretensão no ordenamento jurídico posto, aplicando a lei adequada à solução do conflito, ainda que as partes não a tenham invocado (iura novit curia) e independentemente de oitiva delas, até porque a lei deve ser do conhecimento de todos, não podendo ninguém se dizer surpreendido com a sua aplicação.

Na hipótese, o Tribunal de origem, valendo-se de fundamento jurídico novo — prova documental de que o bem alienado fiduciariamente tinha sido arrecadado ou se encontraria em poder do devedor —, acabou incorrendo no vício da decisão surpresa, vulnerando o direito ao contraditório substancial da parte, justamente por adotar tese — consubstanciada em situação de fato — sobre a qual a parte não teve oportunidade de se manifestar, principalmente para tentar influenciar o julgamento, fazendo prova do que seria necessário para afastar o argumento que conduziu a conclusão do Tribunal a quo em sentido oposto à sua pretensão.

No entanto, ainda que se trate de um processo cooperativo e voltado ao contraditório efetivo, não se faz necessária a manifestação das partes quando a oitiva não puder influenciar na solução da causa ou quando o provimento lhe for favorável, notadamente em razão dos princípios da duração razoável do processo e da economia processual…”.

Verifica-se, pois, que, em primeiro lugar — repita-se — não se pode confundir fundamento legal com fundamento jurídico. Ademais, apenas quando se tratar de alteração ex officio da fundamentação jurídica é que o juiz ou tribunal deverá propiciar a manifestação das partes, a evitar a nulidade do processo por ofensa ao disposto ao artigo 10 do Código de Processo Civil. Tenha-se presente que o vício decorrente da inobservância desta importante regra processual implica nulidade absoluta, dada a inequívoca violação do devido processo legal!

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