Opinião

Multa cominatória é irrazoável quando devedor não tem como cumprir obrigação

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28 de maio de 2019, 15h15

As multas cominatórias — que têm origem no Direito francês — tornaram-se meios fundamentais para assegurar a efetividade das ordens judiciais obrigacionais. A previsão de que o magistrado pode impor multa pelo descumprimento da ordem judicial, que contém uma obrigação de fazer, de não fazer ou de entregar coisa, é ferramenta essencial para minimizar os inadimplementos, forçando as partes ao cumprimento das obrigações impostas pelo Poder Judiciário.

No entanto, há casos nos quais o cumprimento da obrigação pela parte se torna inviável, seja por impossibilidade técnica, temporal, ou por disposição legal em sentido adverso.

Para evitar a incidência de multas cominatórias nesses casos, prejudicando as partes que não possuem condições de cumprir determinada obrigação, os legisladores do Código de Processo Civil de 2015 editaram um artigo — o 537, parágrafo 1º, inciso II, segunda parte[1] — que autoriza os magistrados a excluírem a multa cominatória quando há justa causa[2] para o descumprimento da obrigação. Essa foi uma das importantes inovações do CPC/2015.

O CPC de 1973 não continha nenhuma previsão expressa permitindo a exclusão da multa, mas apenas admitindo a possibilidade de os magistrados modificarem o valor ou a periodicidade, nos casos em que se mostrava insuficiente ou excessiva (artigo 461, parágrafo 6º do CPC/1973)[3].

A previsão no CPC/2015 de que os juízes podem não somente modificar, como também excluir a multa cominatória, na hipótese em que a parte demonstrar justa causa para o descumprimento da obrigação, é reflexo do entendimento jurisprudencial consolidado antes mesmo da edição do código[4].

Apesar de não haver previsão expressa no CPC/1973 de que a multa cominatória poderia ser excluída, o Superior Tribunal de Justiça, mediante o Tema 706 de recurso repetitivo[5], decidiu, dentre outros, pela possibilidade de supressão da multa cominatória, sob o fundamento de que ela não integra a coisa julgada, servindo apenas como um meio de coerção indireta ao cumprimento da ordem judicial[6].

Ou seja, a possibilidade de exclusão da multa cominatória decorre do fato de que ela é imposta pelo juiz com um caráter coercitivo, a fim de que a parte cumpra determinada obrigação de fazer, de não fazer ou de entregar coisa.

Inexistindo possibilidade de adimplemento da obrigação, não há que se falar assim em desídia da parte no cumprimento da ordem judicial, sendo desarrazoado e desproporcional permitir a incidência da multa, que não atingirá o fim pretendido, qual seja, o cumprimento da obrigação, e ainda poderá provocar um enriquecimento sem causa do credor.

Nesse sentido são os ensinamentos de José Rogério Cruz e Tucci: “a natureza jurídica da multa não pode conduzir a um extremo injustificado, jamais podendo levar o seu beneficiário a enriquecer de forma indevida. A multa tem de atender à sua finalidade, que é a de obter, do próprio executado, um específico comportamento ou uma abstenção”[7].

Pela própria natureza da multa — que não é indenizatória, mas, sim, coercitiva — se reconhece que a decisão que a impõe não produz coisa julgada material, podendo ser excluída se houver justa causa e impossibilidade do cumprimento da obrigação, sob pena de descaracterizar sua função teleológica.

Apesar de antes da edição do CPC/2015 o Superior Tribunal de Justiça ter pacificado, mediante o Tema 706 de recurso repetitivo, a possibilidade de revogação da multa cominatória, o artigo 537, parágrafo 1º do CPC/2015 trouxe previsão expressa no sentido de que é permitida a alteração, modificação e exclusão da multa vincenda (não fazendo referência à multa vencida), o que gerou incertezas e provocou discussões doutrinárias.

A controvérsia, verificada mesmo após mais de três anos da vigência do CPC/2015, se dá na tentativa de compreender se a intenção do legislador era, de fato, estabelecer que apenas as multas cominatórias vincendas deveriam ter tratamento diferenciado; ou se, apesar do dispositivo legal não ser expresso nesse sentido, a possibilidade de modificação e revogação da multa coercitiva deveria abranger também aquelas já vencidas.

Alguns doutrinadores defendem a impossibilidade de alteração/exclusão da multa vencida, apegando-se à literalidade do artigo 537, parágrafo 1º do CPC/2015, sustentando que o dispositivo é transparente ao permitir somente a exclusão da multa vincenda[8].

Por outro lado, há aqueles que entendem ser possível a supressão do crédito decorrente da incidência da multa cominatória, inclusive para as multas vencidas, durante o período em que perdurar a justa causa.

Para Guilherme Rizzo Amaral, permitir a incidência da “multa em período durante o qual estava o réu impossibilitado de cumprir a decisão implica dar às astreintes caráter punitivo, o que não se mostra adequado, sendo a multa de caráter exclusivamente coercitivo”[9].

E mais. De acordo com o ilustre processualista, ainda que o próprio devedor seja o responsável por tornar impossível o cumprimento da obrigação, enquanto perdurar a justa causa, não deverá incidir a multa. “Do contrário, a multa incidiria ad eternum, o que seria absurdo e em total desacordo com a natureza coercitiva das astreintes.”[10]

Em que pese a divergência doutrinária, a jurisprudência pátria, guiada pelo Superior Tribunal de Justiça, manteve o entendimento de que a multa cominatória pode ser revista a qualquer tempo, inclusive no cumprimento de sentença, aplicando-se o disposto no artigo 537, parágrafo 1º do CPC/2015 também às multas vencidas[11].

Portanto, a decisão que impõe a multa cominatória não faz coisa julgada. E dada a sua natureza coercitiva é que se verifica a necessidade de sua exclusão ­— nos casos em que seu cumprimento se tornar impossível —, não se mostrando proporcional e razoável permitir a incidência da multa quando o devedor não possui meios de cumprir a obrigação que lhe foi imposta, sendo irrelevante a razão que deu origem a essa impossibilidade ou quem a provocou.


[1] Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.
§ O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:
(…)
II – o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento (grifos nossos).
[2] Os legisladores não conceituaram a justa causa prevista neste dispositivo nem tampouco indicaram um rol de hipóteses que justificariam a exclusão da multa cominatória, deixando a cargo do Poder Judiciário, em análise casuística, decidir quando verificada a justa causa, a fim de permitir a revogação da multa.
[3] Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
(…)
§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.
[4] REsp 1.019.455/MT, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/2011; AgRg no AREsp 408.030/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/02/2014.
[5] Tema nº 706 – “A decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada”.
[6] STJ – REsp 1.333.988/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/04/2014.
[7] TUCCI, José Rogério Cruz e, Revista Consultor Jurídico, 9 de janeiro de 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jan-09/paradoxo-corte-natureza-compatibilidade-limites-subjetivos-multa-coercitiva>. Acesso em: 17.mai.2019.
[8] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 919.
[9] AMARAL, Guilherme Rizzo. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JÚNIOR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coord.). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, , p. 1482, 1483.
[10] AMARAL, Guilherme Rizzo. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DIDIER JÚNIOR, Fredie; TALAMINI, Eduardo; DANTAS, Bruno (coord.). Breves comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, – p. 1482, 1483.
[11] STJ – AREsp 1.453.181/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, julgado em 27/03/2019.
STJ – AgInt no AREsp 1.221.517/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, julgado em 02/10/2018.
STJ – REsp 1186960/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/03/2016.

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