Opinião

A inconstitucionalidade da investigação defensiva instituída pela OAB

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

28 de maio de 2019, 6h58

No dia 11 de dezembro de 2018, foi editado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil o Provimento 188/2018, que regulamenta o exercício da prerrogativa profissional do advogado de realização de diligências investigatórias para instrução em procedimentos administrativos e judiciais.

A norma interna da autarquia institui no Brasil a denominada “investigação defensiva”, que constitui, nos termos do artigo 1º do aludido provimento, “o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte”.

As finalidades da investigação defensiva estão previstas no artigo 3º, que reza:

“A investigação defensiva, sem prejuízo de outras finalidades, orienta-se, especialmente, para a produção de prova para emprego em: I – pedido de instauração ou trancamento de inquérito; II – rejeição ou recebimento de denúncia ou queixa; III – resposta a acusação; IV – pedido de medidas cautelares; V – defesa em ação penal pública ou privada; VI – razões de recurso; VII – revisão criminal; VIII – habeas corpus; IX – proposta de acordo de colaboração premiada; X – proposta de acordo de leniência; XI – outras medidas destinadas a assegurar os direitos individuais em procedimentos de natureza criminal. Parágrafo único. A atividade de investigação defensiva do advogado inclui a realização de diligências investigatórias visando à obtenção de elementos destinados à produção de prova para o oferecimento de queixa, principal ou subsidiária”.

Já o artigo 4º do provimento traz os meios que poderão ser empregados, de forma exemplificativa, na investigação defensiva. Diz o dispositivo:

“Poderá o advogado, na condução da investigação defensiva, promover diretamente todas as diligências investigatórias necessárias ao esclarecimento do fato, em especial a colheita de depoimentos, pesquisa e obtenção de dados e informações disponíveis em órgãos públicos ou privados, determinar a elaboração de laudos e exames periciais, e realizar reconstituições, ressalvadas as hipóteses de reserva de jurisdição. Parágrafo único. Na realização da investigação defensiva, o advogado poderá valer-se de colaboradores, como detetives particulares, peritos, técnicos e auxiliares de trabalhos de campo”.

Da análise técnica dos dispositivos, constata-se de plano que o provimento em comento é flagrantemente inconstitucional, tanto no seu aspecto formal quanto no material, como veremos.

O provimento em questão pretende instituir no Brasil uma investigação paralela à oficial, criando normas processuais que contrariam as já existentes previstas no Código de Processo Penal.

A Ordem dos Advogados do Brasil é uma autarquia que regula a atividade profissional e cuida dos interesses dos advogados, podendo, em algumas hipóteses específicas, postular judicialmente, mas não lhe cabe criar norma jurídica com força vinculante para autoridades públicas. Não é fonte material de direito, não possuindo autorização constitucional para a criação de normas legais, notadamente processuais, que demandam lei federal em sentido estrito, como deixa claro o artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Mesmo que se entenda não se tratar de matéria processual, mas atinente a procedimento em matéria processual, ainda assim se encontra sob reserva legal, mas de competência comum concorrente entre União, estado e Distrito Federal, nos termos do artigo 24, inciso XI, da Carta Magna.

Aliás, o provimento sequer contém normas em sentido estrito, mas um conjunto de regras administrativas vinculantes apenas para a classe dos advogados.

Flagrante, assim, a inconstitucionalidade formal do aludido provimento, que é oriundo de uma autarquia que não tem autorização constitucional para editar normas processuais ou procedimentais.

A inconstitucionalidade do provimento não se limita ao aspecto formal, mas também ao de fundo.

Um dos argumentos empregados para justificar a validade do provimento é a paridade de armas, ou seja, a isonomia, devendo estar na mesma situação o órgão acusador e a defesa.

O argumento é equivocado, pois confunde o conceito de investigação criminal com o de processo judicial.

Na investigação criminal, seja realizada pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público, não há direito ao contraditório e à ampla defesa. O inquérito policial ou o procedimento de investigação criminal é mero procedimento investigativo que visa apurar a ocorrência de uma infração penal e de sua autoria, que servirá de base para a propositura de uma ação penal ou, não havendo justa causa, para a promoção de seu arquivamento.

Já no processo judicial se fazem presentes todas as garantias do devido processo legal, notadamente o contraditório e a ampla defesa. Nessa fase, acusação e defesa se encontram em igualdades de condições, sendo observada a isonomia constitucional.

Assim, somente após a instauração do processo judicial é que se instala o contraditório, sendo garantida a ampla defesa, de modo que as provas produzidas na fase investigatória poderão ser contrariadas e apresentadas outras pelas partes, notadamente pela defesa.

Não é de atribuição de particulares a investigação criminal em nosso país, que é própria do Estado e regulada pela Constituição Federal e pelo Código de Processo Penal.

Cabe à polícia judiciária e ao Ministério Público, órgãos de Estado, cujos membros são investidos no cargo após concurso público, a função investigatória por expresso mandamento constitucional[1].

Não há nenhuma norma constitucional ou legal em nosso sistema jurídico que embase a investigação defensiva tal como colocada pelo provimento em tela.

E a assertiva se mostra ainda mais evidente quando analisamos as razões do veto presidencial de dispositivo da Lei 13.245/2016, que alterou o artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, que permitiria aos advogados “requisitar diligências”. As razões do veto são estas:

“Da forma como redigido, o dispositivo poderia levar à interpretação equivocada de que a requisição a que faz referência seria mandatória, resultando em embaraços no âmbito de investigações e consequentes prejuízos à administração da justiça. Interpretação semelhante já foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em sede de Ação Direita de Inconstitucionalidade de dispositivos da própria Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994 – Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 1127/DF). Além disso, resta, de qualquer forma, assegurado o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, nos termos da alínea ‘a’, do inciso XXXIV, do art. 5º, da Constituição”.

O provimento, muito embora não empregue esse nome, tem a pretensão de permitir ao advogado requisitar documentos e até mesmo a produção de provas sem nenhum amparo em norma constitucional ou legal.

O poder de requisição é típico de autoridades públicas, que deriva da Constituição Federal e do Código de Processo Penal em matéria criminal. Assim, por ser ato de Estado, não é possível ao particular dar ordem para que o funcionário público pratique ou deixe de praticar ato administrativo ou judicial. No caso do Ministério Público, o poder de requisição ainda lhe é outorgado por suas leis orgânicas. Ou seja, há norma constitucional e legal a amparar o poder requisitório[2].

Outra argumentação empregada pelos defensores da legalidade do provimento é que, se o Conselho Nacional do Ministério Público conferiu por intermédio de resolução o poder de investigação criminal ao Ministério Público, também é possível à Ordem dos Advogados do Brasil fazê-lo para os advogados.

Também se mostra equivocado o argumento. O poder de investigação criminal do Ministério Público emana do nosso sistema jurídico e foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal em sede de recurso extraordinário com repercussão geral[3].

O Conselho Nacional do Ministério Público não conferiu o poder investigatório ao Ministério Público, tendo apenas regulamentado a investigação criminal pela instituição, cuja possibilidade é fruto de interpretação do nosso sistema jurídico respaldada por decisão do STF. Assim, a regulamentação está embasada em normas constitucionais e legais.

Já o provimento da OAB não tem amparo legal e muito menos constitucional, ferindo de morte o princípio da legalidade e da separação dos Poderes, pois não lhe cabe legislar, usurpando função típica do Poder Legislativo.

Nada obstante não tenha sido a intenção da OAB, o provimento poderá ser interpretado em desfavor dos clientes dos advogados, prejudicando-os. Reconhecida a legalidade da investigação defensiva, estará sendo instaurado o contraditório e a ampla defesa na fase investigatória, descaracterizando sua natureza, o que pode levar, inclusive, a ser possível pleitear a condenação do réu com base apenas na prova policial, derrogando o disposto no artigo 155 do Código Processo Penal, que não permite a formação do convencimento judicial com base na prova produzida exclusivamente na fase inquisitiva, exceção às provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Como foi instaurado o contraditório nesta fase, oportunizando-se a mais ampla defesa ao advogado, a prova seria suficiente para ensejar a condenação, já que de sua produção participou ativamente a defesa. Vejam ao absurdo que chegaríamos no caso de o provimento ser considerado legal.

No aludido provimento, o que mais chama a atenção e leva à sua evidente inconstitucionalidade é o disposto no seu artigo 4º, que traz os instrumentos que poderão ser empregados para a investigação defensiva, que, na sua maioria, são típicos de órgãos do Estado.

Não há nada que impeça o advogado de colher depoimentos e pesquisar dados e informações disponíveis[4]. O que não se faz possível é exigir a entrega dos dados e informações.

Pode o advogado exercer o seu direito de petição e requerer o fornecimento dos documentos e informações e, no caso de desatendimento, pleitear ao juiz, por medidas próprias, a sua obtenção.

No entanto, viola flagrantemente a oficialidade das investigações dar ao advogado o poder de determinar a uma autoridade pública, ou seja, requisitar a elaboração de laudos, exames periciais e reconstituição, atividade típica de investigação criminal pelos órgãos públicos competentes.

O Código de Processo Penal regula de forma muito clara como se procedem essas perícias e quem pode realizá-las e requisitá-las. Aliás, é possível ao advogado indicar assistente técnico e apresentar quesitos para serem respondidos pelos peritos oficiais ou nomeados pelo juízo, nos termos do artigo 159, parágrafo 3º, do Código de Processo Penal. Até mesmo pode o advogado contratar especialista para elaborar parecer técnico, ao qual será dado o valor que merecer.

As provas periciais produzidas na fase policial, por não serem repetíveis em regra, serão submetidas ao contraditório diferido em juízo, ocasião em que poderão ser impugnadas.

Não há no Estatuto da Advocacia nenhuma norma que permita ao advogado fazer diligências investigatórias, o que se repete em todo diploma legal brasileiro.

Até mesmo a possibilidade de contratação de detetive particular para investigações criminais é proibida pela Lei 13.432/2017, que regula a profissão[5]. A lei proíbe expressamente a participação direta em diligências policiais, que somente podem ser realizadas pela polícia judiciária, nos termos do artigo 144 da Constituição Federal, e pelo Ministério Público, cujo poder investigatório foi reconhecido pelo STF.

Por fim, causa espécie o disposto no artigo 6º do provimento. Diz a regra que:

“O advogado e outros profissionais que prestarem assistência na investigação não têm o dever de informar à autoridade competente os fatos investigados. Parágrafo único. Eventual comunicação e publicidade do resultado da investigação exigirão expressa autorização do constituinte”.

Na investigação oficial pelos órgãos do Estado, todas as provas produzidas são necessariamente juntadas aos autos para que a defesa tenha ciência delas, uma vez que seu objetivo é o esclarecimento dos fatos. Resguarda-se, assim, o contraditório.

Já o provimento permite ao advogado sonegar as provas que forem prejudiciais ao seu cliente, isentando, inclusive, os profissionais que prestarem assistência na investigação de informar à autoridade competente os fatos investigados.

Não é razoável que a polícia judiciária e o Ministério Público procedam investigações e colham provas para buscar a verdade real, enquanto a defesa realiza investigações particulares, inclusive com o emprego de funcionários e bens públicos, podendo sonegar as provas que lhe forem prejudiciais.

E pior, até mesmo os peritos que forem requisitados pela defesa para a realização de exames, perícias e reconstituições, com fulcro no artigo 4º do provimento, não serão obrigados a informar à autoridade competente os fatos investigados, contrariando normas legais que obrigam todo funcionário público, notadamente peritos no exercício de sua função, a declarar a verdade.

É certo que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo; no entanto, não é possível que um provimento revogue normas legais que obrigam toda testemunha a dizer a verdade, exceto quando se fizer presente o dever de guardar sigilo profissional ou proibição de depor.

Perito oficial ou nomeado pelo juízo, bem como outros funcionários públicos que realizarem diligências por determinação da defesa, não podem se negar a declarar a verdade, sob pena de cometimento de crime de falso testemunho.

Como o provimento contraria a legislação em vigor, que obriga os funcionários públicos envolvidos em uma investigação a dizer a verdade, bem como outras testemunhas que tenham a obrigação de depor, mostra-se flagrantemente inconstitucional também nesse aspecto.

Em resumo:

  • o aludido provimento é formalmente inconstitucional, porque não cabe à OAB criar norma processual ou procedimental por meio de provimento. Suas regras administrativas vinculam apenas os advogados, não possuindo efeitos erga omnes;
  • o provimento também é materialmente inconstitucional por ser a investigação oficial privativa de agentes do Estado, que não contempla o contraditório e a ampla defesa. Além do mais, requisição é ato administrativo e, por isso, próprio de funcionários públicos;
  • o Ministério Público possui poder de investigação criminal decorrente de suas próprias atribuições constitucionais, dentre elas a titularidade da ação penal pública (artigo 129, I, da CF). Se o MP pode o mais, que é propor a ação penal pública, também pode o menos, que é investigar para trazer melhores subsídios para o processo a fim de obter a procedência de seu pedido (teoria dos poderes implícitos), não podendo ser esquecido que o membro do Ministério Público, além de parte, é fiscal da ordem jurídica, tendo por obrigação constitucional e legal buscar a verdade real dos fatos para a promoção da justiça. Coube ao Conselho Nacional do Ministério Público apenas regulamentar a investigação criminal pelo Ministério Público;
  • não cabe à defesa realizar investigações criminais oficiais, que são privativas de agentes públicos investidos nas funções por mandamento constitucional;
  • não é razoável que os órgãos oficiais juntem aos autos todas as provas produzidas, observando o contraditório, enquanto a defesa realiza investigações particulares, inclusive com o emprego de funcionários e bens públicos, podendo sonegar as provas que lhe forem prejudiciais. Além do que, não pode um provimento desobrigar profissional que atuou na investigação defensiva de dizer a verdade como testemunha ou perito, exceto nos casos previstos na legislação processual;
  • por todos os ângulos que se examine, o provimento é inconstitucional, materialmente inexistente, não merecendo sequer ser observado pela autoridade pública, uma vez que oriundo de órgão que não possui ascendência sobre qualquer dos Poderes, mas apenas à classe dos advogados.

[1] O artigo 144 da Constituição Federal diz serem de atribuição da Polícia Federal e das polícias civis os atos de polícia judiciária, neles estando incluídas as investigações criminais. A interpretação de nosso sistema jurídico também permite aos membros do Ministério Público a investigação criminal, concorrentemente com os órgãos da polícia judiciária, contando com decisão favorável do Supremo Tribunal Federal.
[2] A Constituição Federal conferiu o poder de requisição ao Ministério Público nos procedimentos administrativos de sua competência, o que foi regulamentado por sua Lei Orgânica Nacional — Lei 8.625/1993 (art. 26, I, “b”, e II) — e Lei Complementar 75/1.993 (art. 8º, II e IV).
[3] Em memorável julgamento, para dirimir de vez a questão sobre o poder de investigação criminal do Ministério Público e traçar-lhe os limites, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, decidiu que o Ministério Público dispõe de atribuição para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias de que assistem a qualquer indiciado ou pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos os advogados (Lei 8.906/1994, art. 7º, notadamente os incs. I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado Democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa Instituição (RE 593727/MG – Rel. Min. Cezar Peluso – Tribunal Pleno – j. em 14.05.2015).
[4] Os depoimentos colhidos pelo advogado, bem como os documentos por ele produzidos, são documentos particulares, que não contêm presunção de veracidade e legitimidade, própria de documento público emanado de autoridade administrativa ou judiciária competente.
[5] Não é permitido ao detetive particular a participação direta em diligências policiais (art. 10, IV). Pode o profissional apenas, a critério da autoridade policial, colaborar com investigação policial em curso. Neste caso, a autoridade policial pode admiti-lo ou rejeitá-lo a qualquer momento (art. 5º).

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