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Anuário da Justiça: STF toma decisões controversas e sofre ataques

28 de maio de 2019, 7h16

Por Ana Pompeu

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*Reportagem publicada no Anuário da Justiça Brasil 2019, que será lançado nesta quarta-feira (29/5) no Supremo Tribunal Federal

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Juízes e tribunais passaram a integrar a paisagem política ao lado do Legislativo e do Executivo. O Supremo Tribunal Federal, como cúpula do sistema de Justiça e em posição privilegiada na Praça dos Três Poderes, é o ente com maior projeção nesse cenário de Judiciário sob holofotes — e mais recentemente, sob ataque. Trata-se de um processo que se desenrola há alguns anos, tendo o julgamento da Ação Penal 470, o mensalão, como um dos marcos do empoderamento do Supremo. Foram 53 sessões exaustivas para julgar os 38 réus. O caso dominou a corte, o noticiário, os debates país afora.

Não foi uma ou outra vez em que o tribunal foi chamado a arbitrar crises gestadas nos outros poderes. Seria uma ilusão supor que pudesse passar incólume em um ambiente tão polarizado e pesado politicamente. Não passou. O Supremo foi palco de disputas políticas, em julgamentos que tiveram repercussão para a construção da própria corrida eleitoral de 2018 e do ambiente político nacional.

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Dias Toffoli, presidente do STF desde setembro de 2018, classifica os últimos cinco anos como dramáticos. Impeachment de presidente, denúncia contra presidente da República, cassação de presidente da Câmara dos Deputados, investigações contra 1/3 do Senado e 1/3 da Câmara. Tudo isso mediado pelo Supremo. Na visão de seu presidente, a corte tem dado conta do recado. “A sociedade tem no Supremo Tribunal Federal a garantia de que vamos manter a institucionalidade do Brasil.”

De guardiões da Constituição e da institucionalidade, os ministros viraram, também, alvo. O Senado já recebeu pedidos de impeachment contra Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e — pasmem — Celso de Mello. A maior parte das petições é rapidamente arquivada pelo Senado, seja por apresentarem falhas jurídicas, seja pela avaliação de que falta fundamentação aos pedidos. Ainda assim, são emblemáticos do ponto de vista de que a corte e seus integrantes entraram na linha de tiro do clima de polarização social e política predominante.

A polarização interna também acabou aflorando no Plenário com a formação de dois grupos claramente identificados por suas posições em matéria penal: de um lado, os garantistas que primam pela defesa dos direitos fundamentais; de outro, os punitivistas, no combate à corrupção a qualquer custo. Gilmar Mendes é a figura mais notória do primeiro bloco, seguido pelos ministros mais antigos da casa, Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli. Roberto Barroso encabeça o bloco contrário, com Luiz Fux, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Alexandre Moraes. Rosa Weber flutua entre os dois lados.

O julgamento do Habeas Corpus preventivo impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2018, atingiu um dos pontos altos de divergência. Prevaleceu o entendimento de ausência de ilegalidade, abusividade ou anormalidade na decisão do Superior Tribunal de Justiça, que aplicou ao processo a jurisprudência vigente do STF, pela qual se permite o início do cumprimento da pena após a confirmação da condenação em segunda instância.

Nelson Jr. - SCO / STF
Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Celso de Mello: corte constitucional no papel de vara criminal Nelson Jr./SCO/STF

Depois de mais de dez horas de julgamento, a corte entendeu, por 6 votos a 5, que a execução antecipada da pena não viola o que diz o inciso LVII do artigo 5º da Constituição: “Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ocorre que já estavam liberadas para o Plenário, na ocasião, as ações declaratórias de constitucionalidade de relatoria do ministro Marco Aurélio que discutem se a prisão pode ser executada antes do trânsito em julgado de maneira abstrata, sem casos concretos por trás.

Para Marco Aurélio, o correto seria o tribunal definir a tese nas ações de controle concentrado para depois aplicar o entendimento aos demais casos específicos. A ministra Cármen Lúcia e seu sucessor na Presidência do STF, Dias Toffoli, resistiram em pautar as ADCs. Para eles, julgar as ADCs enquanto não se resolve o caso Lula é fulanizar uma causa mais ampla e apequenar o STF.

Pela via recursal e do Habeas Corpus, o STF continuou recebendo um considerável número de processos envolvendo temas penais. Em 2018, tais feitos representaram 22% da movimentação processual da corte. Isso faz com que os gabinetes dos ministros se assemelhem, como diz o ministro Ricardo Lewandowski, a verdadeiras varas criminais. Ainda assim, ele faz questão de enfatizar que não é dado ao Supremo deixar de apreciar processos que envolvam questões de liberdade. De acordo com ele, ainda, quase 20% dos HCs examinados na corte são concedidos, revertendo decisões anteriores e apontando ilegalidades das instâncias antecedentes.

Nelson Jr. - SCO / STF
Dias Toffoli, presidente, Marco Aurélio, Lewandowski, Fux, Barroso e Moraes: garantia de institucionalidade Nelson Jr./SCO/STF

O ministro Edson Fachin, desde que tomou posse, em junho de 2015, disse já ter observado três identidades diferentes em voga no tribunal: o da crise econômica, o da crise política e, agora, o de corte penal. Relator da “lava jato” no Supremo, Fachin é figura central, então, deste último perfil, ainda que a matéria penal represente 5% de seu trabalho. Do total de casos sob responsabilidade dele, 70% são civis. A atenção que chamou, no entanto, faz parecer que processos penais ocupam bem mais do que isso. É este o assunto que coloca Fachin — mas não só ele — nas manchetes dos jornais e nos artigos de analistas.

Nessa conjuntura de expansão da atuação do Supremo Tribunal Federal em matéria criminal, fato é que as pautas das turmas são dominadas por Habeas Corpus e matéria penal. Com efeito, a corte se debruçou em 2018 sobre temas sensíveis em matéria penal e processual penal, como a execução provisória da pena após a condenação em segunda instância; a inconstitucionalidade da condução coercitiva; o Habeas Corpus coletivo de mulheres grávidas e mães de crianças; a restrição do foro por prerrogativa de função a delitos cometidos em função e no período do mandato; a validação da Polícia Federal como ente autorizado a negociar e celebrar acordos de delação premiada, mesmo sem a anuência do Ministério Público.

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Há dez anos, em 2008, foram protocolados 3.736 Habeas Corpus no Supremo. Esse número quase quadruplicou passada uma década: foram 13.364 HCs. Do atual acervo de 15.497 processos não recursais em tramitação no STF, 5.882 são de classes criminais, o que corresponde a quase 38%, mais de um terço do volume de trabalho. Além disso, a corte concedeu 642 ordens de HCs, volume inédito em sua história.

Em matéria trabalhista, o ano também foi atipicamente repleto para o STF. O tribunal validou a terceirização de mão de obra, mesmo em se tratando de atividade-fim, assim como chancelou itens da reforma trabalhista, de 2017, inclusive o fim da contribuição sindical. Por 6 votos a 3, o Plenário concluiu que a extinção do desconto obrigatório da contribuição sindical no salário dos trabalhadores é constitucional. Os ministros analisaram um pacote de 19 ações diretas de inconstitucionalidade e uma ação declaratória de constitucionalidade e mantiveram a deliberação do Congresso Nacional.

Também foi decidido que são imprescritíveis ações de ressarcimento à Fazenda por improbidade, além de que o foro especial por prerrogativa não se estende a ações de improbidade administrativa. O STF homologou acordo entre poupadores e bancos para compensar as perdas com os planos econômicos Bresser (1987), Verão (1989) e Collor 2 (1991). A lei do voto impresso, um dos principais pontos de conflito entre o então candidato a presidente Jair Bolsonaro e a Justiça, foi suspensa pelo STF porque a maioria dos ministros entendeu que ela violava o sigilo do voto. Em fevereiro de 2018, a corte julgou a constitucionalidade do novo Código Florestal: reconheceu a validade de vários dispositivos, declarou alguns trechos inconstitucionais e atribuiu interpretação conforme a outros itens.

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Em termos de direitos fundamentais, decisão do Plenário assegurou a liberdade de expressão política em universidades, que vinha sendo tolhida por decisões da Justiça Eleitoral. A análise se deu em outubro de 2018, em plena reta final das eleições. Pelo menos 17 universidades foram alvos de juízes eleitorais acusadas de fazer propaganda eleitoral irregular.

A reação contra a censura eleitoral-judicial chegou ao Supremo que referendou a suspensão das ações, determinada em liminar pela ministra Cármen Lúcia.

Além disso, a corte considerou que a prática do ensino domiciliar, o homeschooling, não poderia ser admitida até a superveniência de lei regulamentadora. Os ministros garantiram, por unanimidade, o direito de transgêneros alterarem o nome social no registro civil, mesmo sem que se submetam a cirurgia de redesignação. Equiparou, também, as cotas eleitorais para mulheres à distribuição do fundo partidário para candidaturas femininas, entendendo que a elas devem ser garantidos 30% das candidaturas e igual porcentagem em verbas.

O tribunal, que com frequência se divide ao meio em questões penais, sobretudo quando envolvem combate à corrupção política, costuma votar por unanimidade, ou com largas maiorias, nos temas envolvendo direitos fundamentais.

Dias Toffoli assumiu a Presidência da corte, em substituição à ministra Cármen Lúcia, gerando, também, expectativa quanto à mudança de perfil na direção do tribunal. A gestão de Cármen Lúcia foi marcada por turbulências e casos polêmicos, que aprofundaram as divisões internas do colegiado e atropelaram os planos da ministra de marcar sua passagem com o exercício da pacificação social. Como Cármen Lúcia, Dias Toffoli não assumiu em um momento de calmaria, mas, depois de eleições gerais, da posse de novos governantes do Executivo e da renovação parlamentar, o que espera é que a conjuntura lhe seja mais generosa que foi com sua antecessora.

Ao tomar posse, Dias Toffoli reconheceu que o Judiciário teve muito protagonismo no Brasil e afirmou que é preciso “abrir espaço” para a volta da política. Seria hora de o Judiciário se recolher para deixar que a política resolva as próprias questões. Ele tem falado, desde então, em unir esforços entre os Três Poderes, em um “grande pacto republicano” para tirar o Brasil da crise. Disse ser necessário que a “política volte a liderar o desenvolvimento do país”.

Uma reforma administrativa, também deve ser promovida na dinâmica de trabalho do Supremo. Os números de várias casas decimais preocupam o ministro. Como fez no próprio gabinete, Dias Toffoli planeja dar eficiência ao trâmite dos processos dentro da corte. Em 2018 o tribunal proferiu 125 mil decisões, sendo 88% monocráticas (110 mil) e 12% colegiadas (15 mil). No período, foram baixados 105 mil processos; atualmente, o acervo do tribunal soma 38 mil processos, cifra 15% inferior ao existente ao final de 2017.

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Em 2000, pela primeira vez na história, o número de processos protocolados na corte chegou aos 100 mil. Para estabelecer um filtro, evitar o acúmulo de processos semelhantes e impedir que disputas iguais encontrem soluções divergentes, em 2007 foi regulamentada e implantada a repercussão geral. O mecanismo existe como um meio em que os ministros decidem o que deve ou não ser julgado pelo Supremo com base em critério de relevância que ultrapasse o caso concreto.

Em 2018, foram incluídos no Plenário Virtual 43 novos temas de repercussão geral, dos quais 32 tiveram esse instituto reconhecido. O mérito foi julgado em 27 processos com repercussão geral, levando à resolução de mais de 88 mil feitos em instâncias inferiores; em quatro deles houve a reafirmação de jurisprudência. Outros 11 processos tiveram a existência da repercussão geral negada. O problema é que se aceita mais casos do que se consegue apreciar.

Desde que foi instituída, o Supremo reconheceu a repercussão geral de 688 casos e negou em 329. Estão pendentes de julgamento 305 temas. Alguns deles paralisam a tramitação de milhares de processos nas instâncias inferiores. Em matéria tributária, isso é ainda mais patente. Dos 27 temas com repercussão geral reconhecida em 2018, 18 tratam de Direito Tributário.

Em outubro, por exemplo, foi julgado e definido que não incide contribuição previdenciária sobre verba não incorporável à aposentadoria do servidor público, tais como terço de férias, serviços extraordinários, adicional noturno e de insalubridade. A decisão do recurso extraordinário em pauta impactou outros 51 mil casos. A aceitação da repercussão geral do caso, no entanto, deu-se quase uma década antes, em maio de 2009.

Em 2015, o Código de Processo Civil trouxe o parágrafo 5º do artigo 1.035, segundo o qual, “reconhecida a repercussão geral, o relator no STF determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”. Numa questão de ordem definida em junho de 2017, no entanto, o Supremo decidiu que o sobrestamento depende de decisão monocrática do relator. Deixou de ser, portanto, consequência automática do reconhecimento da repercussão geral.

A quantidade de processos sobrestados na origem, em dados fornecidos pelos tribunais e consolidados pelo Conselho Nacional de Justiça, ultrapassa 1,7 milhão: 1.713.192. O número representa o total de casos impactados, incluídos aí todo o histórico da repercussão geral, ou seja, de mérito julgado ou pendente de julgamento.

Não faltam sugestões de mudanças. A causa tem no ministro Roberto Barroso um dos mais entusiasmados defensores. A ideia inicial foi do ministro Alexandre de Moraes. Para ele, o Plenário Virtual deve ser melhor aproveitado. Assim, cautelares em ações diretas deveriam ser colocadas imediatamente no Plenário Virtual para ratificação ou não. Se não forem confirmadas, não produzem efeitos. Roberto Barroso estendeu a proposta: todas as decisões cautelares ou liminares, em todos os tipos de processos, deveriam ser prontamente colocadas em Plenário Virtual (ou no ambiente virtual da turma, conforme o caso), para manifestação do conjunto dos ministros.

“Essa providência simples contribuiria para a reinstitucionalização do STF, abolindo a possibilidade de um ministro, isoladamente, falar em nome do tribunal. A perda do poder individual que, de resto, não deveria mesmo existir seria largamente compensada pela reconquista de credibilidade. Não tendo armas nem a chave do cofre, é a credibilidade, mesmo, a fonte da nossa autoridade”, defende o ministro.