Opinião

Cobrar tornozeleira de preso é como cobrar corda do enforcado

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é professor de Direito e Processo Penal doutor em Direito Constitucional pela Unifor (Capes 6) mestre pela Universidade de Coimbra (Portugal) com estágio de pesquisa na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) especialista em Processo Civil pela Escola Superior do Ministério Público do Ceará defensor público do estado do Ceará e membro e ex-presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Ceará.

27 de maio de 2019, 6h07

Resumo: consta que na China cobram da família o custo da bala usada na execução do condenado; pois no Ceará cobrarão a tornozeleira; é como se na Inglaterra do século XIX cobrassem a corda da família do enforcado.

Nesta quarta dia 22 de maio de 2019 foi sancionada pelo Governador do Estado do Ceará norma estadual que tem a finalidade confessada de implantar e regulamentar a cobrança pela cessão e uso da tornozeleira eletrônica, mesmo diante de Parecer da Defensoria Pública estadual alertando para diversos pontos de inconstitucionalidade da lei, veja aqui.

Veja-se que a cobrança se dá “pelo uso oneroso de equipamentos de monitoração eletrônica por preso ou apenado no âmbito do sistema penitenciário estadual” que deve ser “instalado no prazo de 24 (vinte e quatro) horas contado da comprovação do pagamento”.

A inconstitucionalidade da lei é gritante e aparece em diversas vias.

Primeiro, sua substância não é de direto penitenciário, mas, sim, efetivamente de direito penal e de direito processo pena, uma vez que é inconteste que se relaciona com a restrição da liberdade com fundamento cautelar ou sancionador. O que revela a competência exclusiva da União para legislar sobre o assunto (art. 22, I, CF).

A utilização de monitoramento eletrônico como medida cautelar diversa da prisão está previsto no Código de Processo Penal, especificamente no inciso IX do art. 319, incluído pela Lei nº 12.403, de 2011, que dispõe:

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:

IX – Monitoração eletrônica.

Como medida ligada à execução da pena, a Monitoração Eletrônica foi introduzida pela Lei nº 12.258, de 2010, que incluiu o art. 146-B na Lei de Execução Penal, que determina:

Art. 146-B. O juiz poderá definir a fiscalização por meio da monitoração eletrônica quando:

II – autorizar a saída temporária no regime semiaberto;

IV – determinar a prisão domiciliar;

A norma cearense impõe o pagamento pela utilização do monitoramento eletrônico como condição de sua instalação, o que revela índole verdadeiramente penal e processual penal, pois é medida que acresce na restrição da liberdade do investigado/acusado/apenado.

Neste ponto, se assemelha a uma lei alagoana (Lei 6.816/2007) que instituía depósito prévio de 100% do valor da condenação para a interposição de recurso nos juizados especiais cíveis. A questão foi submetida ao STF que lhe carimbou uma “Inconstitucionalidade formal”, pois, por se tratar de matéria processual, seria de competência privativa da União (ADI 4.161). O destino desta lei deve ser o mesmo.

A fiança é a única exigência de prévio pagamento para a obtenção da liberdade que é admitida na Constituição Federal, ainda assim, expressamente mitigada:

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança

E com razão, tendo em vista se tratar de um país com grandes desigualdades sociais e uma pobreza que tem aumentado, infelizmente, nos últimos anos, após o ensaio de sua erradicação [1].

O perfil do preso no Brasil, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias feito em junho de 2014, é majoritariamente de jovens, de negros, de pessoas de baixa escolaridade e, em especial, de baixa renda. Algo em torno de 90% dos presos do Ceará são atendidos pela Defensoria Pública.

Aliás, a lei prevê a isenção do pagamento caso o preso ou apenado seja patrocinado pela Defensoria Pública. Ficam de fora os pobres que são patrocinados por advogados particulares e advogados dativos, estes têm, ainda, que dirigir o pedido de isenção ao – pasmem – Secretário de Administração Penitenciária, alçado ao patamar de autoridade julgadora, apta a conceder a gratuidade da medida cautelar.

Esse dispositivo tem dois problemas constitucionais graves: (i) interfere na competência legislativa para legislar sobre gratuidade de justiça; e (ii) fere a reserva de jurisdição.

Sobre o primeiro ponto, claramente a concessão de isenção para a utilização do monitoramento eletrônico ligado a um processo penal ou de execução é um viés de gratuidade da Justiça, e o STF, analisando uma lei amazonense que tratava sobre concessão gratuita de teste de maternidade e paternidade, entendeu que se tratava de matéria de índole processual, portanto a ser disciplinada pela União (ADI 3.394).

Por outro lado, resta claro que toda e qualquer dispensa de pagamento de emolumento, taxas e custas ligadas a atos judiciais, e a aplicação da cautelar de monitoramento ou o monitoramento como condição para saída ou regime penitenciário deve decorre de uma decisão judicial, sendo-lhe exatamente o âmago da decisão.

Assim ocorre, por exemplo, com a isenção da fiança, em que, embora a legislação permita o arbitramento pelo delegado de polícia, a decisão que dispensa o pagamento só pode ser tomada por um magistrado. É o que se chama reserva de jurisdição (STF MS 23.452/RJ).

Agora os dois temas de chamada deste artigo: o incentivo ao crime e o aumento do custo do sistema prisional.

É a mesma tecla que temos batido aqui: A sanha populista no direito penal tem causado grandes prejuízos. Já falamos que a Lei 13.330/2016 na realidade operou verdadeira causa de privilégio aqui ; que a Lei 13.654/18 retirou a circunstância majorante do crime de praticado com uso de arma imprópria ou arma branca aqui; e que o decreto das armas desclassificou em muitos casos a conduta mais grave de porte/posse de arma de uso restrito para porte/posse de arma de uso permitido aqui.

Desta vez temos uma lei que incentiva aos agentes públicos a cometerem o crime de abuso de autoridade previsto na lei nº 4.898/1965. Explica-se.

O magistrado, conceder a liberdade provisória (ou revogação de uma prisão preventiva), ao impõe como condição, entre outras, a utilização de tornozeleira eletrônica, sem qualquer condicionamento ao pagamento pela sua cessão ou uso.

Ao determinar a manutenção da prisão de alguém sem qualquer decreto judicial que a fundamente, pelo período correspondente ao pagamento, ou à comprovação do pagamento, ou à juntada de documentos e requerimento que comprove a ausência de condições de hipossuficiência econômica, ou, ainda, pelo tempo que o Secretário levará para decidir pela isenção, a lei está incentivando, em tese, o cometimento do crime de abuso de autoridade, configurado no não cumprimento imediato da ordem de liberdade [2].

Quanto à questão do custo, parece aquela economia que se faz de trocar de carro quando o pneu está furado.

A cobrança feita pela cessão e uso da tornozeleira visa a minimizar os custos do sistema penitenciário – que fazem falta à saúde e à educação, segundo a mensagem do Governador – , mas, em sentido contrário, aumento o custo ao manter o apenado e o acusado preso enquanto não feito o pagamento e os valores arrecadados não são destinados nem à saúde, nem à educação.

Dá para entender? Caros leitores, o custo com o encarceramento é muito maior.

Uma pessoa presa no sistema penitenciário tem um custo mensal de 2 mil reais, ou seja, cerca de R$ 67,00 reais por dia. A nova medida sugere que a pessoa beneficiada com um alvará de soltura, mas a qual foi imposta a medida cautelar de monitoramento, fique no sistema até que o pagamento pela tornozeleira seja efetuado e que seja comprovado. Ou, ainda, que dirija seu requerimento de isenção com a comprovação ao Secretário e este decida sobre a questão. Estamos falando de 10 dias? 20 dias? Um mês? A conta não fecha.

Fala-se em mais de 3 mil pessoas com o monitoramento eletrônico no Estado do Ceará, a um custo mensal de 169 reais por tornozeleira, e apenas 12% com possibilidade de pagar [3].

Ora, a demora de, vejamos, 10 dias para decidir pela isenção dos 88% que não podem pagar já eleva o custo em quase dois milhões de reais. A cada dia sem o cumprimento do alvará o custo é de algo e torno de 180 mil reais.

Os demais 12% que hipoteticamente podem pagar, ficarão com a tornozeleira por um tempo médio de 6 meses, tempo esse pré-determinado na própria decisão judicial de soltura, o que leva pouco mais de 350 mil reais de ressarcimento ao Estado.

Repita-se, a conta não fecha.

Há um déficit de 1,5 milhão de reais que, segundo o próprio Governador informa na mensagem que enviou à Assembleia, fazem falta à saúde e à educação. Isso sem falar que Estado tem o dever de indenizar a pessoa ilegalmente presa.

Atenção magistrados cearenses, não permitam a violação da Constituição, não permitam a usurpação de sua competência, não permitam a dilação ilegal da prisão, não permitam a sangria nos cofres públicos, exarem suas decisões de concessão de liberdade, e deixem bem claro que a ordem de soltura deve ser cumprida imediatamente independentemente de assinatura de termo de cessão, de comprovação de pagamento ou de decisão de requerimento de isenção, sob pena de o agente responder penal, civil e administrativamente pelo crime de abuso de autoridade previsto na lei nº 4.898/1965.

Melhor, declarem a inconstitucionalidade incidental da lei. Controle difuso. Enquanto a lei não for declarada inconstitucional em controle concentrado.


[1] “…os problemas no sistema penitenciário que se concretizam em nosso país, devem nos conduzir a profundas reflexões, sobretudo em uma conjuntura em que o perfil das pessoas presas é majoritariamente de jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda.  Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN – JUNHO DE 2014. p. 6.

[2] Art. 4º Constitui também abuso de autoridade: (…) i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.

[3] https://www.revistaceara.com.br/apenas-12-dos-presos-deverao-ser-obrigados-a-pagar-pela-utilizacao-da-tornozeleira-eletronica-no-ceara/

Autores

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional.

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