Opinião

A retroatividade da jurisprudência mais benéfica no Direito Penal

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27 de maio de 2019, 6h19

A jurisprudência é criada com fundamento em fatos pretéritos. Quando se emana um acórdão, se constrói uma súmula etc., o órgão julgador tem como fundamento um caso passado, sendo a jurisprudência apenas um meio de enunciar a interpretação adotada naquele julgamento em particular.

As diversas formas de jurisprudência são utilizadas como meio de interpretação para casos futuros, isto é, a partir da jurisprudência, construída para um caso passado, constrói-se o sentido da interpretação de um caso posterior, ocorrido num momento em que aquela jurisprudência já possuía existência jurídica.

Assim, cria-se uma expectativa de que a lei será interpretada, pelo tribunal, daquela mesma forma em que foi interpretada no caso anterior.

Não é por outro motivo que o Código de Processo Civil, no seu artigo 489, parágrafo 1º, inciso IV, dispõe que não se considera fundamentada a sentença que deixar de seguir enunciado de súmula, precedente ou jurisprudência sem aplicar a devida distinção, criando-se um verdadeiro sistema de precedentes.

E, para garantir a estabilidade desse sistema de precedentes, gerando a necessária segurança jurídica, o artigo 926 do Código de Processo Civil dispõe que a jurisprudência deve ser mantida estável, íntegra e coerente[1].

Porém, quando a jurisprudência versa sobre Direito Penal, não basta que a jurisprudência seja estável, íntegra e coerente. Há de se ir mais além, fazendo com que a jurisprudência seja também anterior.

O sistema penal é fundado no princípio da legalidade, que significa a limitação da atuação do poder punitivo do Estado por meio da exigência de que a punição decorra de uma lei penal anterior.

Em razão disso, como meio de se efetivar a estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência em matéria penal, deve-se aplicar a ela o princípio da anterioridade[2], especialmente naqueles casos em que há uma ruptura com a jurisprudência até então dominante, seja para prejudicar ou beneficiar o réu[3].

Imagine-se o exemplo do proprietário de um aquário que vende peixes ornamentais que, na tentativa de evitar a prática do crime de sonegação fiscal (artigo 1º da Lei 8.137/90), constata que, com relação ao ICMS, não há incidência da norma à circulação do produto “peixe em estado natural” em razão da isenção, por exemplo. Buscando a jurisprudência sobre o assunto, observa que se tem aplicado a isenção à venda de peixes ornamentais e, assim, deixa de recolher o imposto.

Tempos depois, contudo, vê-se surpreendido por uma mudança radical na interpretação da norma tributária, que passa a considerar que a incidência não incide à espécie e que todos aqueles que deixaram de recolher o tributo cometeram sonegação fiscal.

Evidentemente que, nesta hipótese, a interpretação não poderia retroagir, pois prejudicaria o réu. Com efeito, se a interpretação foi feita com fundamento na jurisprudência até então tida como maioritária (ainda que não unânime), mas que depois foi superada pelo entendimento contrário, não há como se postular pela retroatividade no âmbito do Direito Penal em razão do princípio da legalidade.

Da mesma forma, mas em sentido contrário, caso a jurisprudência majoritária prejudicial ao réu seja superada por um novo entendimento mais benéfico, este deverá retroagir para abarcar casos passados.

No mesmo exemplo, caso o proprietário do aquário houvesse sido condenado pela prática do crime de sonegação fiscal com fundamento no entendimento maioritário de que a isenção não se aplicava à hipótese e, posteriormente, esse entendimento fosse alterado, poderia até mesmo haver revisão criminal.

Isso não significa que a jurisprudência deve ser imutável. Normalmente, a jurisprudência segue determinada linha, porém, em algumas hipóteses, esta “tradição jurisprudencial” é rompida através da introdução de um novo modelo-tipo. São nestas hipóteses que a aplicação do princípio da legalidade se mostra mais relevante, pois garante ao destinatário da norma que eventual mudança abrupta no curso da jurisprudência não poderá prejudicá-lo.

Além disso, não há óbice prático para a aplicação do princípio da anterioridade à jurisprudência, pois todas as suas formas são publicadas no Diário Oficial e, só a partir deste ato, começam a ter validade jurídica. No mais, existe um marco temporal claro que pode fundamentar a irretroatividade da jurisprudência menos benéfica e a retroatividade da jurisprudência mais benéfica.

Sendo assim, a aplicação do conceito de anterioridade à jurisprudência em matéria penal garantiria sua necessária estabilidade e coerência, bem como o respeito ao princípio da legalidade, tão caro ao Direito Penal democrático.


[1] Sobre a questão no Direito Processual Civil, vide: (STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 1.186 e ss.
[2] No mesmo sentido é a lição de Mariângela Gama de Magalhães Gomes: “[…]. A fim de tornar efetivas as garantias do princípio da legalidade no direito penal, a regra da anterioridade deve prevalecer na jurisprudência da mesma forma que em relação à lei e, nesse sentido, merece ser acolhida e utilizada. Se o objetivo da uniformização da jurisprudência é fazer com que desapareçam as consequências indesejáveis dos contrates na aplicação do direito, é importante eliminar a possibilidade de alguém ser responsabilizado criminalmente de um modo que não poderia prever no momento em que atuou, em razão de um entendimento sedimentado em sentido diverso do que lhe foi aplicado”. (Direito Penal e interpretação jurisprudencial: do princípio da legalidade às súmulas vinculantes. São Paulo: Atlas, 2008.p. 173).

[3] Existem outras perspectivas sobre o fenômeno, como a fundada no pensamento de Niklas Luhmann, que é trabalhada por Misabel Abreu Machado Derzi: Modificações da jurisprudência no Direito Tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar. São Paulo: Noeses, 2009. p. 316 e ss.

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