Opinião

Ensaio sobre justiça e igualdade: ações afirmativas e perspectivas de John Rawls

Autor

  • Augusto César Monteiro Filho

    é procurador federal em São Paulo e mestrando em Direito pela PUC-SP. Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP em Processo Civil e em Direito e Economia pelas Escolas da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo e da Advocacia-Geral da União e em Jurisdição Constitucional e Tutela dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Pisa (Itália).

26 de maio de 2019, 6h18

Objetiva o presente artigo problematizar, de maneira sucinta, o tema das ações afirmativas e seu enfoque jurisprudencial, partindo da previsão constitucional do princípio da igualdade e, bem assim, atentando aos objetivos da República, contidos no artigo 3º da Carta Magna.

John Rawls, um dos mais importantes filósofos políticos do século XX e sua Teoria da Justiça, como de rigor, será visitado na tentativa de compreender, com um pouco mais de profundidade, mas sem pretensão exauriente — incompatível com um tema desta magnitude e complexidade, que inquieta pensadores nos quatro cantos do mundo ao longo dos tempos —, a essência do princípio da igualdade.

Impossível falar de justiça sem enfocar o tema da igualdade.

O que é a igualdade? Em que efetivamente consiste? Qual o seu arcabouço normativo no ordenamento pátrio? Seria ele mesmo necessário? — perguntaria um jusnaturalista. Quais as nuances que envolvem tal princípio? Ou seria apenas uma regra? Seria possível a promoção de desigualações tendentes à satisfação de seu conteúdo intrínseco? Em caso afirmativo, mediante quais critérios?

Desde a Constituição do Império, o princípio da igualdade vem inscrito como igualdade perante a lei (acepção formal). A igualdade traduz-se como um dos valores supremos de uma sociedade que se pretenda fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Extrai-se da lei maior um reforço argumentativo proposital e uma exaustiva repetição do princípio da igualdade, preocupação compreensível, pondo-se em relevo o momento histórico em que promulgada, rompendo com um passado recente de viés autoritário e militarizado.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, fruto de um pacto consolidado em 1948 no âmbito da ONU e reforçado pela Conferência de Viena de 1993, veicula a existência axiológica de um consensus omnium gentium sobre a relevância dos direitos humanos para a convivência coletiva, o que hodiernamente é assumido pelos países democráticos como uma referência ética e de valores socialmente desejáveis.

A CF/88 erigiu a cidadania como fundamento do Estado (artigo 1º, II); previu a erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais como um seu objetivo, portanto, perene (artigo 3º, III); além de obtemperar que nossa ordem econômica, pautada na propriedade privada e na livre-iniciativa, observe, por outro vértice, os ditames da justiça social, visando, assim, assegurar vida digna a todos. Resulta clara, pois, a opção constituinte demonstrativa de sensível preocupação com a efetivação dos direitos sociais, ainda que em patamares mínimos.

Mas aquele questionamento se nos revela insistente: seriam possíveis, na busca por esse desiderato, discriminações igualizadoras, positivas ou benignas, com a devida vênia pela retórica redundância? Ou, noutro cenário, revelaria-se bastante a mera proibição de tratamentos discriminatórios, mediante instrumentos jurídicos meramente reparatórios e intervenções ex post facto?

Oportuno trazer à colação o conceito de “garantias”, consoante o constitucionalista Jorge Miranda[1]:

Clássica e bem atual é a contraposição dos direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos propriamente ditos ou direitos e liberdades, por um lado, e garantias, por outro lado. Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjetivas ainda que possam ser objeto de um regime constitucional substantivo; os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se direta e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos […].

Pontifica a preclara Flávia Piovesan[2]:

“O conteúdo do direito à igualdade consiste sempre num compromisso positivo, num facere, num dare. A concretização deste direito só se faz possível com a intervenção dos Poderes Públicos”.

Cumpre recorrer-se ao abalizado magistério de André de Carvalho Ramos[3], ao contextualizar o pensamento utilitarista clássico, consoante teoria consagrada por Jeremy Bentham e John Stuart Mill no final do século XVIII e início do século XIX, no âmbito dos direitos humanos.

No campo dos direitos humanos, o utilitarismo clássico sustenta que a avaliação de uma conduta decorre de suas consequências, e não do reconhecimento de direitos. Assim, determinado ato é — ou não — reprovável de acordo com as circunstâncias e consequências. O resultado em prol da felicidade do maior número possível de pessoas pode justificar determinada ação, uma vez que a utilidade não é simplesmente a felicidade individual. Para minimizar eventual defesa de monstruosidades (assassinato de alguns para beneficiar muitos, por exemplo), o utilitarismo não aceita que se obtenha a felicidade geral em prejuízo da felicidade individual. Logo, o utilitarismo não seria uma visão totalitária de eliminação da autonomia individual para o benefício da sociedade, mas, sim, uma visão de maximização das consequências positivas de uma conduta. A crítica ao utilitarismo em geral recai sobre a impossibilidade de uso dos indivíduos (e seus direitos) como instrumentos de maximização da felicidade da maioria. Ademais, há os riscos de se optar por uma ação que beneficie muitos e viole direitos fundamentais de poucos.

Como sensível, não se nos revela desimportante a crítica apresentada ao utilitarismo, mercê dos riscos de optar-se por uma ação que beneficie muitos e viole direitos fundamentais de poucos.

Nesse passo, posições extremadas vão se tornando, gradativamente, desprovidas de uma justificação racional, reclamando, portanto, o desenvolvimento de uma interpretação dinâmica e evolutiva de conceitos por vezes arraigados culturalmente, assim como a abertura ao diálogo e apego à tolerância, em prestígio à coexistência harmônica do pluralismo cultural, num arranjo pautado na dignidade humana como valor universal, pondo-se em relevo, nessa esteira, a proteção das minorias, não bastando, destarte, a mera invocação genérica à cláusula de legitimidade democrática para oprimi-las — cenário do qual deriva o fundamental papel contramajoritário da jurisdição interna e internacional.

Nos EUA se identifica o berço histórico de um novo ideário quanto ao direito fundamental à igualdade:

“(…) Quanto ao princípio constitucional da igualdade jurídica, que desde os primeiros momentos do Estado Moderno foi formalizado como direito fundamental, indagava o Presidente Lyndon B. Johnson, em 04 de junho de 1965, na Howard University, se todos ali eram livres para competir com os demais membros da mesma sociedade em igualdade de condições. Coube, então, a partir daquele momento, àquela autoridade norte-americana inflamar o movimento que ficou conhecido e foi, posteriormente, adotado, especialmente pela Suprema Corte norte-americana, como a affirmative action, que comprometeu organizações públicas e privadas numa nova pratica do princípio constitucional da igualdade no Direito (…)”.

Segundo Cármem Lúcia[4]:

“A expressão ação afirmativa, utilizada pela primeira vez numa ordem executiva federal norte-americana do mesmo ano de 1965, passou a significar, desde então, a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados culturalmente e que precisavam ser superados para que se atingisse a eficácia da igualdade preconizada e assegurada constitucionalmente na principiologia dos direitos fundamentais”.

As ações afirmativas compreendem, a um só tempo, postulados de justiça compensatória e distributiva, pautados no combate aos efeitos presentes de discriminação passada e, muitas vezes, ainda atual; na necessidade de redistribuição equitativa de bens, promovendo inclusão e diversidade.

A "justiça distributiva", nessa perspectiva, revela-se tendente à superação das desigualdades no mundo dos fatos, por meio de intervenção estatal que realoque bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício de todos.

A verdade e a justiça, como virtudes primeiras das atividades humanas, são indisponíveis. John Rawls nos convida ao experimento intelectivo, indutivo de sua teoria de justiça como equidade. Nesse exercício mental, numa espécie de representação intelectual da realidade, propõe nos desloquemos para uma posição hipotética, a posição original, que guarda correspondência com o estado de natureza na teoria clássica do contrato social.

Nesta viagem imaginativa, não nos é dado conhecer quais seriam nossas habilidades, fortunas ou atributos pessoais, nem mesmo a posição social, profissional ou qualquer outra condição que teríamos na sociedade, o que nos leva, pautados num ideário de liberdade, à racionalidade, cooperação e estabilidade sociais, deliberar sobre o justo e o injusto em essência, sem vícios ou preconceitos.

Para Rawls, filósofo político, neocontratualista contemporâneo, uma sociedade é bem ordenada quando os indivíduos aceitam os mesmos princípios de justiça e as instituições sociais básicas geralmente os satisfazem. Apresenta como premissa, portanto, na posição original, sob o assim chamado “véu da ignorância”, que pessoas livres e racionais preocupadas em promover seus próprios interesses (intuicionismo), aceitariam uma posição inicial de igualdade como definidora dos termos fundamentais de sua associação (situação inicial idealmente equitativa).

“A equidade se dá quando do momento inicial em que se definem as premissas com as quais se construirão as estruturas institucionais da sociedade.”[5]

Uma vez erigidos os princípios nessa posição equitativa, a concepção de justiça desta oriunda deve regular todas as relações e instituições sociais, de sorte a viabilizar, sinteticamente, a igualdade de direitos e deveres básicos a todos, pressupondo-se o mesmo acesso aos direitos civis e políticos. Caso isso não ocorra, para administrar tais desigualdades, Rawls defende a adoção do princípio da diferença, consoante o qual para que as desigualdades econômica e social sejam aceitas como justas, as regras devem privilegiar o máximo possível os cidadãos menos favorecidos da sociedade, franqueando-se-lhes, ainda, igualdade de oportunidades, o que traduz uma ideia de benefícios compensatórios — premissa das ações afirmativas.

Ainda, as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos (RAWLS, J. 2000, p. 64).

Carlos Ayres de Britto[6] indaga a si próprio por que o preâmbulo da CF/1988 expressa uma sociedade pluralista como a ideal? E responde, sem deixar de lado sua veia poética:

“Por se render o nosso legislador constituinte à evidência de que os seres humanos trazem na lapela da própria alma o bóton da originalidade. Cada qual deles, mais que número, é número único. Vale dizer, toda criatura humana é diferente da outra e só pode ser plenamente feliz na concreta experimentação de suas diferenças”.

Aproveitando o ensejo de havermos falado em poesia, a seguinte frase de Boaventura de Souza Santos soa como música aos ouvidos:

Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.

Após esta agradável digressão, voltemos ao juridiquês. As políticas sociais de promoção da igualdade são, primordialmente, funções típicas dos poderes legislativo e executivo.

Indaga-se, pois: deve o Poder Judiciário, quando devidamente provocado, reduzir as desigualdades sociais, buscando a consolidação dos objetivos constitucionais?

Reputamos sobrevir do cenário normativo exposto a atribuição de maior ônus argumentativo ao legislador e ao administrador para a justificação adequada de eventual omissão na prestação do direito material à igualdade — de índole jurídico-constitucional — omissão que, se comprovada infundada, franqueia margem de ação legítima para o Poder Judiciário, reclamando-se, portanto, um diálogo constitucional permanente entre os três Poderes.

Ao longo das últimas décadas, o STF assumiu importante função institucional na defesa de grupos em situação de vulnerabilidade. Em atenção às normas e preceitos constitucionais e internacionais, o tribunal assumiu verdadeiro papel contramajoritário na concretização de liberdades e garantias. Nesse sentido, destacamos trechos de voto proferido na ADI 132:

“(…) Isso significa, portanto, numa perspectiva pluralística, em tudo compatível com os fundamentos estruturantes da própria ordem democrática (CF, art. 1º, V), que se impõe a organização de um sistema de efetiva proteção, especialmente no plano da jurisdição, aos direitos, liberdades e garantias fundamentais em favor das minorias, quaisquer que sejam, para que tais prerrogativas essenciais não se convertam em fórmula destituída de significação, o que subtrairia – consoante adverte a doutrina (SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA, “Fundamentos de Direito Constitucional”, p. 161/162, item n. 602.73, 2004, Saraiva) – o necessário coeficiente de legitimidade jurídico-democrática ao regime político vigente em nosso País” (voto min. Celso de Mello, na ADPF 132, p. 246)

Forte nos ensinamentos de Rawls e no quanto disposto em nossa carta política, assegurar igualdade de oportunidades a todos afigura-se, até hoje, um desafio e um objetivo a serem concretizados em nosso país. Esperamos que essas despretensiosas linhas possam colaborar nesse intento, mediante os apontamentos veiculados, propiciando uma mais adequada e humanista compreensão do princípio da igualdade, a um só tempo, tão singelo e tão complexo, por paradoxal que possa soar. Mas uma coisa é certa: sobejamente maltratado diuturnamente por nossa complexa sociedade simplista, infelizmente tão avessa às necessárias problematizações e, por corolário, cada vez mais aderente a maniqueísmos sem precedentes, desprovidos, não raro, de qualquer escrutínio crítico ou reflexão cautelosa!


[1] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional – Tomo IV – Direitos Fundamentais. Editora Coimbra, 9ª ed., 2012, pp. 88 e 89.
[2] PIOVESAN, Flávia. Proteção Judicial Contra Omissões Legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção, 2ª edição, rev. atual. e ampl., São Paulo: RT, 2003, p. 34.
[3] RAMOS, André de Carvalho, Curso de Direitos Humanos, 5ª Edição, Saraiva, 2018, p. 90.
[4] ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Ação afirmativa – o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica. In Revista Trimestral de Direito Público, nº. 15/1996, p. 87.
[5] BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de Filosofia do Direito. 1º Ed. São Paulo: Atlas, 2001.
[6] BRITTO, Carlos Ayres. Auto-Estima no Ponto. Revista Jurídica Consulex, ano XI, nº. 240, jan./2007, p. 66.

Autores

  • é procurador federal em São Paulo e mestrando em Direito pela PUC-SP. Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP, em Processo Civil e em Direito e Economia pelas Escolas da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo e da Advocacia-Geral da União e em Jurisdição Constitucional e Tutela dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Pisa (Itália).

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