Ambiente jurídico

O Brasil e a vedação constitucional de retrocessos ambientais

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25 de maio de 2019, 11h47

Spacca
Muito tem-se falado na imprensa, e no meio jurídico brasileiro, nos últimos tempos, e não à toa, em proibição de retrocessos ambientais. Retrocessos, em face da estrutura do sistema constitucional pátrio, estão, para que não se façam rodeios, absolutamente vedados. [1]

Beira à estultice, para se evitar fadiga intelectiva, se insistir neste ponto. Ainda aqueles que analisam o tema apenas de modo pragmático, ou consequencialista, não podem, permissa vênia, chegar a conclusão diversa.

É de se observar que, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, 2018 foi o ano com o maior desmatamento na Amazônia na última década:

Forbes

Segundo o World Resources Institute, seguindo esta tendência, a perda de cobertura de Floresta Tropical é progressiva nos últimos anos:

WRI Brasil

O Brasil, embora se quisesse o contrário, em 2018, foi o líder do indesejável ranking dos países com maior perda de floresta primária do World Resources Institute:

Instituto Humanitas.

O desmatamento não enriquece o Brasil, o empobrece. É de se verificar que o retrocesso ambiental pode custar, no pior dos cenários, US$ 5 trilhões de dólares ao país até 2050. É o quadro em que a governança é fragilizada ao extremo, o desmatamento explode e o Brasil tem que comprar créditos de carbono no exterior para cumprir sua parte no esforço global de reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

Neste exato sentido foi concluída pesquisa assinada por 10 destacados pesquisadores brasileiros e publicada na Nature Climate Change, uma das mais renomadas publicações científicas sobre mudanças do clima. [2]

Nesta perspectiva, segundo recentíssimo relatório da ONU, um milhão de espécies podem sumir nas próximas décadas, em virtude de ações antrópicas, como o desmatamento, gerando abalo sem precedentes ao meio ambiente, ao ser humano e a economia mundial [3] que ainda insiste no desmatamento e nos vetustos combustíveis fósseis como matriz energética.

Constituições, ademais em cenário de tal gravidade, não podem ceder frente a projetos de governo (de esquerda ou de direita), às matizes ideológicas, às histerias coletivas de certos segmentos sociais ou, ainda, às vinditas de ocasião, movidas por arroubos político-partidários ou a nefastos interesses inconfessos. O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado não pode ser suprimido ou descaracterizado por emenda constitucional e, a fortiori, por mera legislação infraconstitucional. Fato este que é sabido e consabido por estudantes das primeiras linhas do direito constitucional e, até mesmo, por jejunos jurídicos.

Referidas iniciativas legislativas são como sepulcros caiados, belas por fora, e apodrecidas por dentro. Eivadas, pois, de inconstitucionalidade, a toda prova, na origem.

A conquista dos direitos fundamentais pela sociedade, não se pode ignorar, foi e é árdua, inclusive os de cunho fraternal, nos quais está inserido o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Na visão de Canotilho, o princípio da proibição de retrocesso social indica que os direitos sociais e econômicos, “uma vez alcançados ou conquistados, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo”.

Assim, prossegue o constitucionalista português:

Independentemente do problema “fático” da irreversibilidade das conquistas sociais (existem crises, situações económicas difíceis, recessões económicas), o princípio em análise justifica, pelo menos, a subtracção à livre e oportunística disposição do legislador, da diminuição de direitos adquiridos (ex: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural (…). [4]

Para Sarlet, a vedação do retrocesso guarda íntima relação com a noção de segurança jurídica, “como expressão inarredável do Estado de Direito”. O jurista acrescenta que, no âmbito do direito constitucional brasileiro, esse preceito decorre dos seguintes argumentos de matriz jurídico-constitucional: a) do “princípio do Estado democrático e social de Direito, que impõe um patamar mínimo de segurança jurídica”; b) do princípio da dignidade da pessoa humana, a exigir prestações positivas pelo Poder Público para garantir uma existência condigna para todos e, também, na perspectiva negativa, a inviabilizar medidas que fiquem aquém desse patamar; c) do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais; d) das previsões específicas da Constituição Federal contra medidas de cunho retroativo, como a proteção dos direitos adquiridos, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito; e) do princípio da confiança e da boa-fé nas relações do Estado com os particulares, de modo a exigir “o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica”; f) da vinculação do Poder Legislativo (e demais Poderes Públicos) aos direitos fundamentais; g) da proteção internacional dos direitos econômicos e sociais, que “impõe a progressiva implementação efetiva da proteção social por parte dos Estados”, como se verifica na cláusula ou dever de progressividade previsto no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, [5] e no dever de desenvolvimento progressivo do art. 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, [6] complementado pelo art. 1º do Protocolo de San Salvador Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1988. [7]

Portanto, a doutrina do Direito Constitucional tem reconhecido, guardadas as controvérsias existentes, que as conquistas adquiridas pela sociedade no âmbito constitucional -como demonstrado, inclusive, na consagrada trilogia We the People [8], do Professor da Universidade de Yale, Bruce Ackerman – estão a salvo de medidas retrocessivas por parte do legislador, sob pena de inconstitucionalidade da legislação que promova a involução social.

Exatamente o mesmo ocorre com a proibição de retrocessos ambientais. É dizer, veda-se aos Poderes Públicos que promovam uma desconstrução e regressão dos níveis de proteção ambiental já alcançados, notadamente diante de um dever constitucional justamente em sentido oposto, isto é, de que o Estado assegure uma progressiva efetividade do direito ao meio ambiente equilibrado, como se extrai do art. 225, §1º, da Constituição Federal.

O dito mínimo existencial (socioambiental) “opera como limite material a vincular negativa (mas também positivamente) o poder público”. [9] Com isso, a (…) garantia constitucional da proibição de retrocesso socioambiental (ou mesmo ecológico, como proferem alguns) assume importância ímpar na edificação do Estado Socioambiental de Direito, pois opera como instrumento jurídico apto a assegurar, em conjugação com outros elementos, níveis normativos mínimos em termos de proteção jurídica do ambiente, bem como, numa perspectiva mais ampla, de tutela da dignidade da pessoa humana e do direito a uma existência digna, sem deixar de lado a responsabilidade para com as gerações humanas vindouras. [10]

O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, não raras vezes injustamente criticado, nestes tempos, já se manifestou sobre a proibição de retrocessos ambientais quando reconheceu a impossibilidade de diminuição ou supressão de espaços territoriais especialmente protegidos por meio de medida provisória.

No referido leading case restou assentado que, conquanto a aplicação do princípio da proibição do retrocesso socioambiental não possa engessar a ação legislativa e administrativa, sendo forçoso admitir certa margem de discricionariedade às autoridades públicas em matéria ambiental, não pode ser atingido o núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. [11]

Importante, portanto, o respeito e a concretização do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como direito e dever constitucional fundamental, indene de agressões e de retrocessos, no interesse não apenas das presentes, mas, também, das futuras gerações de seres humanos e não humanos. Ao menos, nesta Era de mudanças climáticas e de perda da biodiversidade, é o que se espera…


[1] Sobre o tema, ver: WEDY, Gabriel; MOREIRA, Rafael. Manual de Direito Ambiental: de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019.

[2] VALOR ECONÔMICO. Retrocesso ambiental pode custar US$ 5 tri ao Brasil até 2050. Disponível em: https://www.valor.com.br/brasil/5647915/retrocesso-ambiental-pode-custar-us-5-tri-ao-brasil-ate-2050-diz-estudo?fbclid=IwAR1Cx9jSMxzW0hyaEEMvW7lEabIu70lX3vmKOGJUOST2XqaPDIyy9USKXjA. Acesso em: 22.05.2019.

[3] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Onu mostra que 1 milhão de espécies de animais e plantas enfrentam riscos de extinção. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relatorio-da-onu-mostra-que-1-milhao-de-especies-de-animais-e-plantas-enfrentam-risco-de-extincao/. Acesso em:23.05.2019.

[4] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 468-469.

[5] Conforme art. 2º, item 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: “Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, querer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas” (UNFPA Brasil. Pacto Internacional Sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2018).

[6] O art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 é do seguinte teor: “Art. 26. Desenvolvimento Progressivo. Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados” (OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Comissão Americana dos Direitos Humanos de 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 25 mai.2019).

[7] Conforme dispõe o art. 1º do Protocolo de San Salvador: “Os Estados Partes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem-se a adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo” (OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador”. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/e.Protocolo_de_San_Salvador.htm>. Acesso em: 25.mai. 2019).

[8] Sobre a conquista evolutiva dos direitos fundamentais pelo povo norte-americano, consultar a trilogia:

ACKERMAN, Bruce. We the People. The Civil Rights Revolution. 3v. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University, 2014;

ACKERMAN, Bruce. We the People. Transformations. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University, 1998;

ACKERMAN, Bruce. We the people. Foundations. Cambridge: Harvard University Press, 1993.

[9] FENSTERSEIFER, Tiago, SARLET, Ingo Wolfgang. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 211.

[10] Ibid., p. 212.

[11] STF, Pleno, ADI 4.717/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 05.04.2018, informativo nº 896.

Autores

  • Brave

    é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar pela Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law.

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