Mentiras premiadas

Caso no Paraná mostra inconveniência de blindar delações contra questionamentos

Autor

24 de maio de 2019, 7h58

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal está prestes a reabrir a possibilidade de delatados questionarem acordos de colaboração premiada. O caso concreto dá muitos dos argumentos a favor da rediscussão de um precedente de 2015 do Plenário. É mais uma história de crimes sendo cometidos para combater outros revelados numa delação premiada em que não se sabe mais o que é verdade.

Carlos Moura / SCO / STF
Gilmar Mendes defende que delatados possam questionar acordos de delação
Carlos Moura/SCO/STF

O caso trata da operação “publicano”. Em janeiro de 2015, o auditor fiscal Luiz Antonio de Souza foi preso em flagrante por crime contra a dignidade sexual de menor. Ele estava num motel de Londrina com uma menina de 15 anos e R$ 22 mil — disso, R$ 2,5 mil seriam para pagar a menor por sexo. Depois foi descoberto que ele tinha feito programas do tipo com mais de 40 adolescentes.

Ao mesmo tempo, empresários e auditores da Receita estadual do Paraná foram presos por supostamente negociar o pagamento de propina para a redução de tributos. Era a primeira fase da operação, e Souza também estava sendo investigado nesse caso.

Encurralado, ele fechou acordo de delação premiada com o Ministério Público do Paraná em maio de 2015. Acusada de extorquir empresários, sua irmã, Rosângela de Souza Semprebom, também auditora fiscal, fez o mesmo. Com os compromissos, homologados pela 3ª Vara Criminal de Londrina, os irmãos Souza denunciaram uma organização que, em sua versão, comandava um esquema de corrupção no Fisco paranaense. E acusaram o ex-governador Beto Richa (PSDB) de se beneficiar das negociatas por meio de doações não declaradas na campanha de 2014, na qual se reelegeu.

Regime diferenciado
Luiz Antonio de Souza confessou ter praticado os crimes de estupro de vulnerável, exploração sexual de vulnerável, corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e participação em organização criminosa. Em troca de suas informações sobre o esquema da Receita estadual e a exploração sexual de adolescentes, Souza ficaria em prisão preventiva até 30 de junho de 2016. Depois disso, passaria para um regime semiaberto diferenciado e, após três anos, iria para o aberto.

Enquanto estava preso, porém, Souza extorquiu o empresário Aparecido Domingos dos Santos. O fiscal pediu R$ 1 milhão para não mencioná-lo nos depoimentos de sua delação premiada. Segundo o Ministério Público, Santos é um dos chefes de uma organização criminosa que juntou empresas do setor de abate e venda de suínos para sonegar impostos.

Por isso, o MP requereu a rescisão do acordo de colaboração premiada de Luiz Souza e Rosângela. Em 8 de junho de 2016, o juiz Juliano Nanuncio aceitou o pedido e anulou os benefícios concedidos aos auditores fiscais.

Promessas descumpridas
Revoltado com a rescisão de seu compromisso de cooperação, Luiz Antonio de Souza partiu para o ataque. Em interrogatório de fevereiro de 2017, o fiscal acusou os promotores do caso de adulterar seus depoimentos. Segundo ele, os integrantes do MP aliviaram a barra de alguns delatados e fortaleceram as denúncias contra outros.

O advogado de Souza questionou em audiência por que não havia vídeos e áudios dos depoimentos de seu cliente prestados na fase extrajudicial. A justificativa do Ministério Público foi que não havia bateria na câmera para gravar os testemunhos.

Em nota na época, o MP-PR declarou que as acusações têm o "claro objetivo de obstar" seu trabalho na operação publicano. "Os desnecessários, descabidos, desleais e ilegais ataques pessoais, que vem sendo dirigidos aos promotores de Justiça, travestidos de pseudoexercício de defesa têm o único propósito de desqualificar a atuação e tentar desestabilizar os membros do Ministério Público", destacou o órgão, ressaltando que "não houve escolha, favorecimento ou direcionamento das investigações para atingir ou o excluir pessoas do objeto da operação".

Delação restabelecida
Quando outro auditor fiscal apontou a divergência nos depoimentos de Souza, ele e sua irmã já haviam assinado um aditivo ao acordo de colaboração com o MP. No documento, ele ratifica as informações prestadas anteriormente e se retrata por "falsear a verdade" quanto às acusações de irregularidades do Ministério Público. Em interrogatório, ele disse que só adotou uma postura agressiva contra os promotores por orientação do advogado.

Com o aditivo — homologado pelo juiz Juliano Nanuncio, da 3ª Vara Criminal de Londrina —, o compromisso de delação foi ampliado. Por um lado, o auditor fiscal comprometeu-se a falar mais e a entregar mais bens. Por outro, o MP-PR concordou em pedir perdão judicial para ele em seis ações penais existentes e nas novas que forem propostas.

Além disso, os promotores obrigaram-se a pedir a redução de dois terços da pena de 49 anos imposta a Souza na primeira sentença da operação publicano, de dezembro de 2016. Cumprido o regime fechado, ele vai para o semiaberto diferenciado.

Críticas de Gilmar
Na terça-feira (21/5), Gilmar Mendes votou por declarar a nulidade do acordo de Luiz Antonio de Souza e de Rosângela de Souza Semprebom. Por derivação, ele reconheceu a ilegalidade das acusações dos delatores. Mas, em nome da segurança jurídica e da previsibilidade do sistema penal negocial, o ministro votou por manter os benefícios oferecidos pelo MP aos colaboradores. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Luiz Edson Fachin.

No voto, Gilmar afirmou que as práticas do MP no caso são "claramente temerárias e questionáveis" e colocaram em risco a persecução penal. "Devemos, então, perceber como a atuação abusiva dos órgãos de investigação e acusação pode destruir qualquer viabilidade de perseguir e punir crimes eventualmente praticados", apontou.

O ministro criticou que o aditivo ao acordo de colaboração — que tinha sido rescindido — exigiu que os delatores se retratassem das acusações aos promotores de justiça e ratificassem as declarações anteriormente prestadas na fase de investigação.

“Considerando a gravidade das acusações apontadas aos membros do Ministério Público estadual que atuaram no caso, mostra-se evidentemente questionável a possibilidade de que esses agentes possam negociar e transigir sobre a pretensão acusatória com relação a fatos supostamente criminosos a eles imputados”, avaliou o magistrado, questionando que alteração dos fatos fez o MP mudar de opinião e oferecer um novo acordo — abordando os mesmos fatos — aos delatores.

A celebração de um novo termo de delação após a rescisão do primeiro fragiliza a confiabilidade das declarações dos colaboradores, opinou Gilmar Mendes. E estas, destacou, já têm valor probatório reduzido — precisam ser corroboradas por outras provas, como estabelece a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013).

Devido às ilegalidades da celebração dos acordos de delação premiada de Luiz Antonio de Souza e Rosângela de Souza Semprebom — que violaram a legalidade e regularidade do mecanismo negocial —, Gilmar disse que as declarações prestadas pelos dois são imprestáveis. Nesse cenário, a Justiça deve proteger os direitos dos delatados, analisou.

“A atuação dos atores envolvidos nas negociações e formalização do acordo deve ser pautada pelo respeito à legalidade, de modo que o panorama de ilegalidades aqui narradas ocasiona inevitável desconfiança quanto aos atos realizados, o que impõe a atuação do Judiciário para proteção efetiva dos direitos fundamentais dos imputados, como a presunção de inocência e o contraditório.”

Boa parte dos problemas do caso decorre da falta de gravação das negociações para a celebração dos termos de cooperação, ressaltou o ministro. Como exemplo, ele citou que, com uma gravação, seria fácil de verificar as alegações de alterações nos depoimentos. Assim, Gilmar sugeriu que o MP e até o Congresso assegurem a obrigatoriedade de filmagem de todos os atos da colaboração premiada, inclusive negociações e depoimentos prévios à homologação.

O STF definira antes que delatado não pode questionar acordo de colaboração premiada ao julgar a validade da delação do doleiro Alberto Youssef — espinha dorsal da “lava jato”. A defesa de um dos executivos da Galvão Engenheira envolvido na operação pediu a anulação do acordo e todas as provas que surgiram a partir dos depoimentos dele.

Reprodução
STF não viu problemas no fato de o doleiro Alberto Youssef firmar novo termo de colaboração após descumprir o primeiro

O argumento dos advogados era que a colaboração foi firmada pelo MPF sete dias depois de o juiz federal Sergio Moro considerar que Youssef quebrou um acordo anterior de 2003, no chamado caso Banestado. Eles apoiaram-se em parecer do ministro aposentado do STJ Gilson Dipp que apontava dois problemas: o colaborador não teria credibilidade e o MPF omitiu o descumprimento na primeira chance.

Mas o ministro Dias Toffoli, relator do caso, rejeitou o pedido. Em sua decisão, disse que “negar-se ao delatado o direito de impugnar o acordo de colaboração não implica desproteção a seus interesses”. A seu ver, existem duas razões para isso. Uma é que nenhuma sentença pode ser proferida apenas com base em informações prestadas em compromisso de colaboração. Outra é que o delatado terá direito ao contraditório para confrontar as acusações.

Na terça, Gilmar Mendes pontuou que a decisão foi acertada na época. Porém, “ocasionou uma quase total intangibilidade e incontrolabilidade dos acordos de delação”, já que os únicos que podem contestá-los — delator e MP — quase sempre agirão para manter sua validade. “Por efeito colateral, tornamos os acordos de colaboração premiada praticamente intocáveis”, verificou.

Nesse cenário, o ministro defendeu que se tracem critérios para limitar abusos em delações premiadas. A seu ver, o MP não pode oferecer benefícios ilegais ou ilegítimos. Se o fizer, o compromisso é nulo, e o Judiciário não deve homologá-lo. Como exemplo, citou decisão em que o ministro Ricardo Lewandowski afirmou a impossibilidade de homologação de cláusulas sem embasamento legal.

Em 2017, Lewandowski negou a homologação de compromisso de delação do publicitário Renato Barbosa Rodrigues Pereira por entender que o Ministério Público não pode assinar acordos de colaboração premiada em que prevê perdão judicial e combina qual será o regime inicial do cumprimento das penas do delator. O máximo que o MP pode fazer, conforme o ministro, é se comprometer a não oferecer denúncia contra o delator, e mesmo assim apenas no limite do que é permitido por lei. Para Lewandowski, só o Judiciário pode conceder perdão ou tratar do cumprimento de pena.

Mesmo se o acordo for homologado, o Judiciário pode anulá-lo posteriormente se verificar ilegalidades, ressaltou Gilmar. Como o termo de colaboração é meio de obtenção de prova, é tem natureza semelhante à da interceptação telefônica, apontou. E há diversas decisões do Supremo reconhecendo a ilegalidade de grampos e, consequentemente, das provas decorrentes deles. A 2ª Turma do STF — no HC 151.605, relatado por Gilmar — inclusive já reconheceu a ilicitude dos atos decorrentes de acordo de cooperação homologado por juízo incompetente.

Ainda que sua estrutura seja semelhante à de um contrato bilateral, o acordo de colaboração premiada atinge direitos dos delatados, segundo o ministro. Embora a homologação do termo não ateste a veracidade das acusações, ponderou, o uso midiático delas “acarreta gravíssimos prejuízos à imagem” dos citados. “Além disso, há julgados desta corte [STF] que, de modo questionável, autorizam a decretação de prisões preventivas ou o recebimento de denúncias com base em declarações obtidas em colaborações premiadas”, criticou o ministro.

Dessa forma, argumentou Gilmar Mendes, em casos de acordos ilegais e ilegítimos, os delatados devem poder questionar o compromisso no Judiciário. E este Poder deve agir para garantir os respeitos a direitos fundamentais e ao princípio da segurança jurídica.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!