Opinião

A inaplicabilidade da multa prevista no Código de Obras do DF e a Lei 6.138/2018

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24 de maio de 2019, 11h00

A Constituição Federal, fundamentada no interesse social, estabelece as diretrizes que devem ser seguidas pelos estados a fim de concretizar os princípios que versam acerca da política de desenvolvimento urbano, do uso consciente dos recursos naturais e do planejamento sustentável dos centros habitacionais[1].

Brasília nasceu da necessidade de interiorizar a sede do governo e foi fruto dos ideais de planejamento urbano e de sustentabilidade. A instalação da capital federal no centro do país objetivou a diminuição da exposição às possíveis invasões territoriais e contribuiu para o povoamento do planalto central.

A primeira Constituição da República, de 1891, determinou a região onde deveria ser instalada a futura capital, mas foi somente em 1956[2], com a determinação e coragem de Juscelino Kubitschek, que a construção da cidade emergiu, seguindo o plano urbanístico de Lúcio Costa e a inolvidável arquitetura de Oscar Niemeyer.

A construção de Brasília foi o legado mais visível do governo JK, fruto da atuação visionária e grandiosa para a modernização do país. Hoje as decisões políticas mais importantes acontecem em Brasília, nos três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Em meados de 2018, o então chefe do Poder Executivo do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, sancionou — com vetos — o Código de Obras e Edificações do Distrito Federal.

A nova norma, vigente desde junho de 2018, regula as obras e as edificações públicas e particulares em todo o Distrito Federal, bem como disciplina os procedimentos de licenciamento e fiscalização[3].

O objetivo do Código de Obras da capital é a adequação do espaço urbano segundo as determinações e exigências das normas técnicas que visam ao bem-estar da coletividade e à garantia das condições de acessibilidade, segundo critérios de segurança, higiene e cumprimento da função social da propriedade e do espaço público.

As normas que regem a matéria dirigem especial atenção ao cumprimento da função social da propriedade. Significa, em essência, a diligência na utilização da propriedade em conformidade com sua destinação.

O antigo Código de Edificações do Distrito Federal (Lei 2.105, de 8/10/1998) foi alterado pela Lei 6.138, de 26/4/2018 (Código de Obras do DF), que elevou excessivamente o valor das multas aplicáveis para os casos de infração. As penalidades são classificadas, para os efeitos de multa, em leves, graves e gravíssimas.

Ocorre que a cobrança da multa em decorrência da aplicação da penalidade não deve ofender o princípio da capacidade contributiva nem ser abusiva, pois contraria a legítima atuação da administração. A legislação deve, sim, prever valores que tenham a finalidade de prevenir as infrações por parte dos administrados, mas que atendam à proporcionalidade, evitando o enriquecimento ilícito por parte do Estado.

Ao contrário disso, o artigo 127 do atual Código de Obras prevê que as multas devem ser calculadas com base no índice denominado “K”, o qual leva em consideração a área objeto da infração, o que pode prejudicar ainda mais a situação do administrado. Caso a área seja acima de 5 mil metros quadrados, referido índice chega a ser multiplicado por dez vezes do valor original, que inviabiliza o pagamento por parte do autuado.

Para elucidar, no caso de aplicação de multa gravíssima, o valor inicial é de R$ 5 mil x K (K = 10, quando a área da irregularidade for acima de 5 mil metros quadrados), o que equivale a uma multa de R$ 50 mil:

Multa devida = R$ 5 mil x K
Multa devida = R$ 5 mil x 10
Multa devida = R$ 50 mil

Nesse contexto, caso o administrado seja reincidente ou atue de forma continuada, as multas serão aplicadas em verdadeira progressão, o que caracteriza o efeito confiscatório, tendo em vista a exorbitância da aplicação da multa.

A vedação ao efeito confiscatório consiste na proibição, prevista pela Constituição Federal, de qualquer pretensão do Estado que possa conduzir à injusta apropriação do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, tendo em vista o valor insuportável da carga tributária.

A aplicação de penalidade não pode ser um fim em si mesmo e deve ser analisado por seu viés teleológico, ou seja, a multa não deve ser um bem jurídico a ser buscado pela administração, mas, sim, o cumprimento das determinações e previsões do Código de Obras.

Com efeito, quando a administração fixa multa em caso de descumprimento de determinada obrigação, o objetivo é que sua imposição sirva como meio coercivo para o devido cumprimento. Todavia, se não aplicada com critério, pode ensejar no enriquecimento sem causa da parte que a aplicou.

Com base nesse entendimento, a inconstitucionalidade dos artigos 127 e 128 do Código de Obras do DF pode ser declarada incidentalmente caso o administrado questione em juízo, em razão do caso concreto e da patente desproporção dos valores previstos para a aplicação de penalidades, que se agrava ainda mais nos casos de reincidência ou de infração continuada.

Assim, a previsão contida nos artigos 127[4] e 128[5] é, ao nosso entender, inconstitucional, pois o cálculo resulta em valores impagáveis, e caso haja aplicação da penalidade, esta é calculada pelo dobro da última multa aplicada e, ainda, de forma cumulativa.

Os tribunais superiores admitem, por força do princípio da razoabilidade, a possibilidade da redução de valores[6] aplicados à título de multa[7], em decorrência do descumprimento de decisão judicial. Com base nesse posicionamento, entende-se que o mesmo raciocínio e hermenêutica deverá ser aplicado para as multas administrativas, caso discutidas em juízo.

O legislador deve, ao elaborar a norma, prever valores pertinentes para a cobrança das multas e atender ao axioma da adequação. Desta forma, a multa não pode ser fixada em valor exorbitante, de modo a tão somente beneficiar a administração, bem como não pode ser irrisória, a ponto de ser mais vantajoso o descumprimento por parte do administrado.

É certo que o administrado pode buscar a tutela judicial, a fim de requerer o ajuste adequado da multa às circunstâncias concretas[8]. Portanto, entende-se que é medida justa e lícita a redução da multa pelo Poder Judiciário, tendo em vista a necessidade de concretização da norma constitucional que impeça o efeito confiscatório.


[1] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
[2] Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891
Art 3º – Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital federal.
Parágrafo único – Efetuada a mudança da Capital, o atual Distrito Federal passará a constituir um Estado.
[3] Lei 6.138, de 26 de abril de 2018.
[4] Art. 127. As multas devem ser aplicadas tomando-se por base os valores estabelecidos no art. 126, multiplicados pelo índice k relativo à área objeto da infração, de acordo com o seguinte:
I – k = 1, quando a área da irregularidade for de até 500 metros quadrados;
II – k = 3, quando a área da irregularidade for de 500 metros quadrados até 1.000 metros quadrados;
III – k = 5, quando a área da irregularidade for de 1.000 metros quadrados até 5.000 metros quadrados;
IV – k = 10, quando a área da irregularidade for acima de 5.000 metros quadrados.
[5] Art. 128. No caso de reincidência ou de infração continuada, as multas são aplicadas de forma cumulativa e calculadas pelo dobro do valor da última multa aplicada.
§ 1º Verifica-se a reincidência quando o infrator comete a mesma infração nos 12 meses seguintes após a decisão definitiva sobre a sanção aplicada.
§ 2º Verifica-se infração continuada quando o infrator descumpre os termos da advertência, do embargo, da intimação demolitória ou da interdição.
§ 3º Persistindo a infração continuada após a aplicação da primeira multa, aplica-se nova multa.
[6] AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. APLICAÇÃO DA MULTA DO ART. 461, § 4º, DO CPC. ASTREINTES FIXADAS EM HARMONIA COM A SITUAÇÃO FÁTICA DA CAUSA. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE ATENDIDOS. LIMITAÇÃO AO VALOR DA CONDENAÇÃO. POSSIBILIDADE. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Em princípio, o valor das astreintes não pode ser revisto em sede de recurso especial, em face do óbice da Súmula 7/STJ. Contudo, em situações excepcionais, nas quais o exagero na fixação configura desrespeito aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a jurisprudência deste Tribunal afasta a vedação da Súmula 7/STJ para reduzir e adequar a multa diária. No caso, o valor da multa, por si só, não se mostra elevado. 2. Como se vislumbra da fundamentação do julgado recorrido, cabe fixar um teto máximo para a cobrança da multa, pois o total devido a esse título não deve se distanciar do valor da obrigação principal. Precedentes. 4. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 976.921/SC, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 09/03/2017, DJe 16/03/2017.) DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. REDUÇÃO DO VALOR DE MULTA POR ATO DE IMPROBIDADE EM APELAÇÃO.
[7] O tribunal pode reduzir o valor evidentemente excessivo ou desproporcional da pena de multa por ato de improbidade administrativa (art. 12 da Lei 8.429/1992), ainda que na apelação não tenha havido pedido expresso para sua redução. O efeito devolutivo da apelação, positivado no art. 515 do CPC, pode ser analisado sob duas óticas: em sua extensão e em profundidade. A respeito da extensão, leciona a doutrina que o grau de devolutividade é definido pelo recorrente nas razões de seu recurso. Trata-se da aplicação do princípio tantum devolutum quantum appellatum, valendo dizer que, nesses casos, a matéria a ser apreciada pelo tribunal é delimitada pelo que é submetido ao órgão ad quem a partir da amplitude das razões apresentadas no recurso. Assim, o objeto do julgamento pelo órgão ad quem pode ser igual ou menos extenso comparativamente ao julgamento do órgão a quo, mas nunca mais extenso. Apesar da regra da correlação ou congruência da decisão, prevista nos artigos 128 e 460 do CPC, pela qual o juiz está restrito aos elementos objetivos da demanda, entende-se que, em se tratando de matéria de direito sancionador e revelando-se patente o excesso ou a desproporção da sanção aplicada, pode o Tribunal reduzi-la, ainda que não tenha sido alvo de impugnação recursal. REsp 1.293.624-DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 5/12/2013.
[8] O controle incidental de constitucionalidade é o mais amplo mecanismo previsto na Constituição Federal (art. 97 e 102, III, “a”, “b” e “c”). Este controle é feito em um processo em que se discute um bem da vida qualquer, distinto da questão constitucional. Contudo, para resolver o litígio, qualquer órgão do Poder Judiciário pode fiscalizar a lei, declará-la inválida para o respectivo caso e sentenciar a demanda. Nestas hipóteses, a declaração de inconstitucionalidade não transita em julgado, não vale para todos, restringindo-se às partes litigantes. Retirado do site http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,controle-de-constitucionalidade-modalidade-incidental,48220.html.

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