Limite Penal

Mais uma vez: não confunda a função da prisão cautelar

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

24 de maio de 2019, 8h05

Spacca
Acadêmica nos pergunta porque os tribunais estaduais e federais, em geral, prendem tanta gente de modo cautelar embora existam súmulas do Supremo Tribunal Federal exigindo requisitos concretos, analisados caso a caso, com a necessidade de que o Superior Tribunal de Justiça, muitas vezes, seja obrigado a conceder liminar em Habeas Corpus diante da fragilidade da fundamentação.

Por diversas vezes[1], inclusive na semana passada (aqui), afirmamos que a prisão cautelar exige fim processual (e não material), de cunho excepcional, proporcional e provisório (CPP, artigo 282). A prisão cautelar é confundida como modalidade de “tutela de evidência” (novo CPC), incompatível com o regime da presunção de inocência. A questão ganha maiores contornos em face da decisão do STF em determinar o cumprimento de decisões condenatórias em face das instâncias ordinárias (STF, HC 126.292).

A Declaração dos Direitos do Homem, em seu artigo 9º aponta que “todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa poderá ser severamente reprimido pela lei”. Já a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 11, diz: “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. E no Pacto de San Jose da Costa Rica, no artigo 8º, item 2: “toda pessoa acusada de um delito tem o direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Alguma dúvida? Se o recurso faz parte — é uma etapa do processo —, não há trânsito em julgado (CPP, artigo 283). Mas o STF inventou que sim no HC 126.292. Seria necessário, no mínimo, uma reforma constitucional e a adequação do sistema normativo para que os recursos especial e extraordinário se transformassem em ação de impugnação autônoma.

Disso decorre a regra de tratamento, pela qual não pode sofrer os efeitos antecipados da condenação, e a regra de carga probatória, segundo a qual a inocência é pressuposta e cabe ao jogador acusador demonstrar os requisitos para condenação, ressalvada a alegação de álibi. Entretanto, prevalece lógica de "defesa social"[2], em que os pressupostos para o deferimento são manipulados por frases prontas, discursos alarmistas, sem vinculação concreta com o caso. A presunção de inocência exige que o acusado receba regra de tratamento[3] como tal, pouco importando a probabilidade de ser condenado. Até o trânsito em julgado, a prisão poderá ser decretada em face exclusivamente de requisitos vinculados ao processo.

A adoção/rejeição da Teoria Geral do Processo é o fator diferencial para o acolhimento, no processo penal, do denominado “poder geral de cautela”, pelo qual o juiz teria ampla disponibilidade para concessão de provimentos capazes de garantir o objeto do processo. A questão não enfrentada — por muitos — é a de que no processo penal, ao tratar de liberdades, incide a regra da expressa previsão legal, consistente em limitar a criatividade jurisdicional. No processo civil, diante da multiplicidade de casos, abre-se o leque de opções de tutelas (urgência e evidência, não subsistindo a cautelar inominada do CPC/73), situação que não pode ser trazida ao processo penal, sob pena de se confundir os registros[4].

Adotado o poder geral de cautela, por exemplo, o magistrado poderia “inventar” novas cautelares à prisão, ampliando o rol do artigo 319, do CPP (18.5.)? Se sim, pode mandar frequentar igreja, cortar cabelo, cobrir tatuagens etc.? Embora aceita por alguns, inclusive no STF (HC 130.140), sua pertinência no regime das regras limitativas de liberdade é decorrente da má compreensão do lugar e função do processo penal como garantia[5]. Ademais, com o novo CPC (artigo 300-310), resta superada a noção cautelar e antecipação de tutela, prevalecendo a lógica das tutelas de urgência e evidência, incompatíveis com o regime da presunção de inocência. A liberdade somente pode ser restringida nas hipóteses e nos limites legais[6]. O poder geral de cautela é incompatível com o processo penal democrático, porque medidas cautelares somente são as expressamente previstas em lei. Se a liberdade é o pressuposto, restringe-se nos limites legais.

A decretação da prisão pressupõe trajeto democrático da motivação:

a) a presunção de inocência é regra de tratamento, razão pela qual a liberdade é o ponto de largada da decisão judicial;

b) analisando os requisitos da prisão preventiva — fummus comissi delicti — em cotejo com o artigo 282, do CPP — adequação, necessidade e proporcionalidade —, cabe analisar o periculum libertatis em concreto e não por conjecturas, nem mesmo a gravidade abstrata, o clamor público ou a comoção social, de modo abstrato, são inidôneos (STJ, RHC 055.070; HC 311.162; RHC 048.058), principalmente em crimes nos quais a condenação não resultará em prisão (princípio da homogeneidade — STJ, HC 303.184; HC 178.812; RHC 049.916). A pergunta a ser feita é: o que de concreto e recente (STJ, HC 214.921; HC 299.733; HC 246.229) o acusado fez para prejudicar a instrução processual ou evitar a aplicação da lei penal? A ordem pública, por outro lado, encontra-se em ambiente retórico e incontrolável, porque nem mesmo “crimes de catálogo” dispomos, abrindo-se espaço para artifícios retóricos;

c) diante do comportamento processual do acusado é que se pode definir o cabimento, ou não, das medidas cautelares diversas da prisão (CPP, artigo 319) e, por último da prisão cautelar.

A rejeição, motivada, da impertinência para garantia do processo da aplicação das cautelares deve preceder a decretação da preventiva. A inversão dessa ordem é comodismo autoritário. A decisão que decreta a preventiva e não demonstra argumentativamente o não cabimento das cautelares é nula (STJ, HC 246.582; RHC 036.443; HC 302.730), por omitir pressuposto alternativo à prisão. O acusado, diante da presunção de inocência, deve ter a liberdade reconstituída, não sendo possível medidas cautelares e, por último, prisão. O salto direto para preventiva é a burla da adequada motivação judicial.

Para o deferimento de qualquer das medidas cautelares, exige-se motivação idônea em que o “caso penal” seja problematizado, não bastando juízos de conveniência subjetivos, e sim aspectos relativos às narrativas e contextos. Os requisitos devem ser demonstrados em decisão singularizada e concreta (STJ, HC 315.093; HC 311.440). A decisão que serve para qualquer caso, recheada de citações e/ou julgados assertivos, desprovidos de costura/pertinência com a hipótese detalhada nos autos, constitui-se decisão charlatã e nula. Incidem os vieses e heurísticas, especialmente pela decisão imediata, intuitiva e fácil[7].

A gravidade do crime ou os antecedentes do acusado, isoladamente, não são suficientes para manutenção/decretação da custódia cautelar. O contexto social e midiático promove a construção (imaginária) de cenário de valorização das condutas violentas, gerando, com isso, pressão externa na motivação (oculta) dos julgadores. Incide a heurística da disponibilidade[8], pela qual as contingências sociais contaminam o caso, dificultando o enquadramento e promovendo o efeito do “bode expiatório”. Com isso, diante do ambiente violento, o acusado passa a ocupar o lugar de quem é o representante do mal, pagando uma conta que não é, necessariamente, sua. Assim, a obtenção de informações preliminares sobre o modo de pensar dos jogadores/julgadores é ganho tático.

Infelizmente, a prisão cautelar tem sido degenerada para atender a outros fins que não os processualmente demarcados. Diante de uma sociedade hiperacelerada, que não quer esperar e que não compreende o "tempo do Direito", existe o anseio mítico por uma justiça instantânea, e a prisão cautelar acaba dando vazão a esse desejo. É a ilusão de uma justiça imediata que leva ao encurtamento entre fato-prisão, sem a mediação do processo penal. Claro que isso não se faz sem um grande risco e imenso custo, agravando o quadro já desenhado no passado por Carnelutti, ao comentar as Misérias do Processo Penal. Talvez a maior "miséria" do processo penal seja exatamente esta: para saber se devemos punir alguém, já vamos punindo através do processo. O problema é que, se, ao final, a punição se revelar incabível, já teremos punido injusta, errônea e desproporcionalmente alguém.

No Brasil, as prisões cautelares estão excessivamente banalizadas, a ponto de primeiro se prender para depois ir atrás do suporte probatório que legitime a medida. Além do mais, está consagrado o absurdo primado das hipóteses sobre os fatos, pois se prende para investigar, quando, na verdade, primeiro se deveria investigar, diligenciar, e somente após prender, uma vez suficientemente demonstrados o fumus commissi delicti e o periculum libertatis.

Com razão, Ferrajoli[9] afirma que a prisão cautelar é uma pena processual, em que primeiro se castiga e depois se processa, atuando com caráter de prevenção geral e especial e retribuição. Ademais, diz o autor, se fosse verdade que elas (as prisões cautelares) não têm natureza punitiva, deveriam ser cumpridas em instituições penais especiais, com suficientes comodidades (uma boa residência) e não como é hoje, em que o preso cautelar está em situação pior do que a do preso definitivo (pois não tem regime semiaberto ou saídas temporárias).

Na lição de Carnelutti[10],

as exigências do processo penal são de tal natureza que induzem a colocar o imputado em uma situação absolutamente análoga ao de condenado. É necessário algo mais para advertir que a prisão do imputado, junto com sua submissão, tem, sem embargo, um elevado custo? O custo se paga, desgraçadamente em moeda justiça, quando o imputado, em lugar de culpado, é inocente, e já sofreu, como inocente, uma medida análoga à pena; não se esqueça de que, se a prisão ajuda a impedir que o imputado realize manobras desonestas para criar falsas provas ou para destruir provas verdadeiras, mais de uma vez prejudica a justiça, porque, ao contrário, lhe impossibilita de buscar e de proporcionar provas úteis para que o juiz conheça a verdade. A prisão preventiva do imputado se assemelha a um daqueles remédios heroicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudência, porque podem curar o enfermo, mas também podem ocasionar-lhe um mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a anestesia, e sobretudo com a anestesia geral, a qual é um meio indispensável para o cirurgião, mas ah se este abusa dela!

Infelizmente, as prisões cautelares acabaram sendo inseridas na dinâmica da urgência, desempenhando um relevantíssimo efeito sedante da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da prisão imediata acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção de “eficiência” do aparelho repressor estatal e da própria justiça. Com isso, o que foi concebido para ser “excepcional” torna-se um instrumento de uso comum e ordinário, desnaturando-o completamente. Nessa teratológica alquimia, sepulta-se a legitimidade das prisões cautelares.

Conclui-se, portanto, que o problema não é legislativo, mas cultural.

Respondemos que se trata de mentalidade inquisitória, como diz Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e outros[11], ainda prevalecente em boa parte da magistratura, embora superada em grande medida pelo Supremo Tribunal Federal e, especialmente, pelo Superior Tribunal de Justiça, consoante se infere no Habeas Corpus 509.811, relator ministro Néfi Cordeiro, impetrado pelo advogado Felipe Andre Laranjo, cuja decisão, do último dia 16, deixa claro:

“Como se vê, ainda que tenha sido indicada no decreto prisional a reiteração delitiva, verifica-se que a quantidade de droga apreendida, qual seja, 18,62 gramas de cocaína, não é expressiva. (…) Ante o exposto, defiro a liminar para a soltura do paciente P. H. F., a fim de determinar o cumprimento da medida cautelar de apresentação a cada 2 meses, proibição de mudança de domicílio sem prévia autorização judicial, e proibição de ter contato pessoal com pessoas envolvidas com o tráfico de drogas e outras atividades criminosas; o que não impede a fixação de outras medidas cautelares diversas da prisão, por decisão fundamentada”.

Foi preciso um Habeas Corpus até o STJ para que o paciente pudesse ser solto, açodando o sistema processual com demandas que poderiam ser resolvidas imediatamente, caso assumida a prevalência da presunção de inocência. Enquanto isso não ocorre, haja liminar do STJ.


[1] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais, 2019.
[2] SANTOS, Bartira Macedo de Miranda. Defesa Social, Uma Visão Crítica. Estúdio Editores: São Paulo, 2015. p. 13: “O poder punitivo, como todo poder, pode ser analisado como uma relação de força; um mecanismo de repressão. O poder é aquilo que reprime os indivíduos ou classes, fazendo-os se comportarem de determinada forma, e não de outra, e será eficiente na medida em que não precise utilizar a fora. Na modernidade, o poder não se exerce pela força da espada, mas pela força da manipulação ideológica, que não constrange, mas convence o indivíduo a, voluntariamente, incorporar determinado sistema de crenças e a agir de acordo com elas”. CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002; CHAVES JUNIOR, Airto; OLDONI; Fabiano. Para que(m) serve o Direito Penal? Uma análise criminológica da seletividade dos segmentos de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 168.
[3] LANFREDI, Luís Geraldo Santana. Prisão Temporária. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 85: “A presunção de inocência, em verdade, estampa uma regra de juízo e uma regra de tratamento: como regra de juízo, está a exigir que uma cautelar só se pode implementar caso esteja fundada em pressupostos fáticos razoáveis da ocorrência de um crime e do comprometimento de alguém com essa infração, enquanto regra de tratamento, transpira a impossibilidade de uma cautelar servir como castigo antecipado, isto é, assumir feição retributiva diante de uma infração, juridicamente ainda sequer definida”. CASARA, Rubes. Prisão e Liberdade. São Paulo: Estúdio Editores, 2014.
[4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 807-808.
[5] MOREIRA, Rômulo de Andrade; MORAIS DA ROSA, Alexandre. O poder geral de cautela é incabível no Processo Penal. Quando o STF erra. Consultar: http://emporiododireito.com.br/o-poder-geral-de-cautela-e-incabivel-no-processo-penal-quando-o-stf-erra-por-romulo-de-andrade-moreira-e-alexandre-morais-da-rosa.
[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre; AGUIAR, Michelle. Poder Geral de Cautela é uma abusiva criação jurisprudencial sem fundamento? Consultar: http://emporiododireito.com.br/poder-geral-de-cautela-no-processo-penal-e-uma-abusiva-criacao-jurisdicional-sem-fundamento-por-por-alexandre-morais-da-rosa-e-michelle-aguiar.
[7] WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi: MORAIS DA ROSA, Alexandre. Vieses da Justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contraintuitiva. Florianópolis: EMais, 2019 (no prelo).
[8] MATLIN, Margaret W. Psicologia Cognitiva. Trad. Stella Machado. Rio de Janeiro: LTC, 2004, p. 275: “A familiaridade dos exemplos — bem como sua recenticidade — também pode produzir uma distorção na estimativa da frequência. (…) Os jornalistas e os repórteres de notícias nos superexpõem a alguns fatos e nos subexpõem a outros. (…) Falam-nos de fatos violentos, como incêndios e assassinatos com muito mais frequência do que de causas de morte menos dramáticas (e mais comuns). Há cem vezez mais mortes por doenças do que por assassinato e, no entanto, os jornais trazem o triplo de artigos sobre assassinatos”.
[9] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 776 e s.
[10] CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el proceso penal, v. 2, p. 75.
[11] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. Vol. 1, Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. p, 423; MALAN, Diogo. Ideologia política de Francisco Campos: influência na legislação processual brasileira. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (orgs.). Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 1-86; SULOCKI, Victoria Amália de Barros Carvalho Gozdawa de. Autoritarismos presentes: biopolítica, estado de exceção e poder soberano. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo (orgs.). Autoritarismo e Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 87-127; VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. Belo Horizonte: DePlácido, 2016.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!