Senso Incomum

Distopia: os algoritmos e o fim dos advogados: kill all the lawyers!

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23 de maio de 2019, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Recebi do advogado Mario Barbosa, lá de Nazaré da Mata (PE). O autor é o advogado Rafael Berthold, do Rio Grande do Sul. Fiz adaptações. Ao autor original, meus cumprimentos.

Advertência: Este texto vai na sequência da coluna da semana passada (Lawtechs, startups, algoritmos: Direito que é bom, nem falar, certo?). Sem ler esse, não dá para entender o de hoje. Portanto, quem não leu o da semana passada, peço que tenham a pachorra de abrir o arquivo.

Antes, quero registrar que muitos disseram que eu não entendo de startups (me lasquei, não?) e por isso minha opinião está errada. Disseram: a startupização não tem nada a ver com o Direito. Lenio não entendeu. E eu respondo: os meus críticos têm razão, a startupização e a algoritmização nada tem a ver com o Direito. Mas não tem, mesmo. Esse é o busílis. Tanto não tem nada a ver com o direito que a startupização deveria ficar ao largo do direito e não substituir o jurista. Tanto não têm nada a ver com o direito que os algoritmos acabam com o Direito. Basta ver os (milhares de) recursos fulminados por robôs. Dá para entender, agora, ou tenho que fazer um emoji? Bom, de todo modo, a pequena distopia que Mário Barbosa me mandou ajuda a explicar por que tenho razão em estar em pânico. Leiam.

Ao trabalho. Antes disso, vejam o quadro abaixo (e entrem em pânico também):

O ano é 2069 D.C, ou seja, daqui a cinquenta anos — e uma conversa entre avô e neto tem início a partir da seguinte interpelação:

— Vovô, por que o mundo está acabando?
A calma da pergunta revela a inocência da alma infante. E no mesmo tom vem a resposta:
— Porque não existem mais advogados, meu anjo.
— Advogados? Mas o que é isso? O que fazia um advogado?
O velho responde, então, que advogados eram homens e mulheres elegantes que se expressavam sempre de maneira muito culta (isso, claro, antes de aparecerem os livros resumidos, facilitados e quejandos, além de professores que davam aula pulando e ensinando macetes, querido neto) e que, muitos anos atrás, lutavam pela justiça defendendo as pessoas e a sociedade.
— Eles defendiam as pessoas? Mas eles eram super-heróis?
— Sim, defendiam. Não, eram super-heróis, embora, pelo salário em grandes escritórios tipo Uberjus que muitos recebiam, sim, eram super-heróis, netinho. Sobreviviam. Mas eles eram não bem vistos. Seus próprios clientes muitas vezes não pagavam os seus honorários e ainda faziam piadas, dizendo que as cobras não picavam advogados por ética profissional. Eles mesmos, entre eles, se esculachavam.
— E como foi que eles desapareceram, vovô?
— Ah, foi tudo parte de um plano secreto e genial, pois todo super-herói tem que enfrentar um supervilão, não é? No caso, para derrotar os advogados esse supervilão se valeu da “União” de vários poderes e forças. Por isso chamamos esse supervilão de “União”.

Segundo o avô, por meio do primeiro poder, a União permitiu a criação de infinitos cursos de Direito no país inteiro, formando dezenas de milhares de profissionais a cada semestre, o que acabou com a qualidade do ensino e entupiu o mercado de bacharéis. Depois, a União acabou com o exame da extinta OAB. Então entrou no mercado mais um percentual que quase duplicou o número de causídicos. Uberizou-se o Direito de forma super-rápida.

Com o segundo poder, a União criou leis que permitiam que as pessoas movessem processos judiciais sem a presença de um advogado, favorecendo a defesa de poderosos grupos econômicos e do Estado contra o cidadão leigo e ignorante. Por estarem acostumadas a ouvir piadas sobre como os advogados extorquiam seus clientes, as pessoas aplaudiram a iniciativa.

Também já ninguém, principalmente nas pequenas cidades, procurava os causídicos, porque se lhes dava advogados pagos por um dos Poderes. Já não sobrava trabalho para os advogados. Depois que inventaram os aplicativos, já ninguém buscava o aconselhamento jurídico. Grandes empresas ganharam muito dinheiro com isso. Só se falava em startups.

O terceiro poder só completou o serviço. Seus integrantes fixavam honorários irrisórios para os advogados, mesmo quando a lei estabelecia limite mínimo! Isso sem falar na compensação de honorários. Honorário vem de honor, meu neto. Honra. E os advogados foram desonrados.
Mas o terceiro poder não durou muito tempo. Logo depois da criação do processo eletrônico, os computadores se tornaram tão poderosos que aprenderam a julgar os processos sozinhos. Inventaram robôs que interpretavam leis, como o quadro acima mostra, meu neto. E a comunidade jurídica vibrava com isso. Rumo ao fim.

Foi o que se denominou de Justiça “self-service”, fast food e UberEatsJus. Tinha também os juizados especiais, em que cada membro julgava como queria e ninguém poderia recorrer. Quer dizer, até se recorria. Mas as turmas respondiam como queriam. Bom, meu neto, desse “modelo jus algorítmico” não cabia recurso, já que um computador sempre confirmava a decisão do outro, pois todos obedeciam à mesma lógica. Era o império dos algoritmos. Houve um dia que, em 30 segundos, julgaram 3,5 mil processos. E com piscar de tela, um computador, conhecido como Exterminator One, liquidava 10 mil recursos.

Devo lembrar, também, que um dos fatores que incrementou o caos foi o ensino jurídico e a literatura prêt-à-porter usada pelos alunos e professores. Era a tempestade perfeita para uma terra jurídica-arrasada. Os algoritmos só completaram o serviço.

Sigo. O primeiro poder, então, absorveu o segundo, com a criação das "medidas definitivas", novo nome dado às "medidas provisórias". Só quem poderia fazer alguma coisa eram os advogados, mas já era tarde demais. Estes estavam muito ocupados tentando sobreviver, dirigindo táxis e vendendo cosméticos. Muitos viraram youtubers. Outros ficaram viciados na internet e ofereciam macetes para decoreba de algoritmos. Ah, sim, os cursinhos viraram cursinhos startups.

Sem advogados, como fazer funcionar a democracia, meu neto? Raimundo Faoro, um antigo advogado, dizia que não há democracia sem advogados. E Shakespeare imortalizou o medo que ditadores têm de advogados, na figura de Dick, o açougueiro, em Henry VI (Kill all de lawyers, sugeriu Dick ao golpista Jack!).

Bom, o resultado está aí, meu neto. Tinha um personagem em um livro (você não sabe o que é, mas existia uma coisa chamada livro) de Eça de Queiroz (Eça com ç), Primo Basílio, chamado Conselheiro Acácio, que dizia: as consequências vêm sempre depois.

E foi assim. Desligue o tablet, meu neto. Vamos dormir.
— Tudo bem, vovô, pode ser. Já estou mesmo com sono. Mas ainda estou curioso com uma coisa!
— Com o que, meu filho?
— O que é esse tal de livro?
— Ah, meu netinho querido. Que distraído que sou. Lembrei-me de que esqueci de lembrar que você não pegou essa época. Livros, meu neto, são aqueles objetos composto por páginas, folhas de papel, que permitiam que conhecêssemos o mundo sem que precisássemos sair do lugar. “A chave de acesso para nos tornarmos melhores”, dizia um autor de que o vovô gostava.
— O senhor fala, vovô, daquelas coisas que nos ensinam a queimar nas escolas?
— Isso mesmo, meu neto. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que era o contrário: as escolas serviam para ensinar a ler esses mesmos livros que hoje elas têm a obrigação de queimar.
— Que loucura, vovô! Nós temos até musiquinhas: “Na segunda, queimamos Millay; na quarta, Whitman; na sexta, Faulkner! Queime-os até que se tornem cinzas, e depois queime as cinzas!
— Ah, meu netinho, não se engane. Sei bem que se tem dito por aí que Millay, Whitman, Faulkner (e Joyce, e Proust, e Orwell, e Cervantes e Shakespeare, e todos os outros) eram imbecis. Mas, hoje, o vovô vai contar um segredo: eles eram geniais, precisamente por mostrarem que, na verdade mesmo, os imbecis somos nós.
— Mas por que, vovô?
— É melhor parar por aqui, meu neto. Responder a verdade nesse caso já é contra a lei, e eu não posso correr nenhum risco.
— Por que não, vovô?
— Porque já não há mais advogados.

Post scriptum. Ao leitor, na verdadeira acepção da palavra, atento: qualquer semelhança com Fahrenheit 451, e qualquer semelhança com a realidade, bem… não é mera coincidência. Nunca é. Mas paro por aqui. Vai que dizer a verdade já se tornou contra a lei. Melhor não correr o risco de ser condenado por um algoritmo!

*Texto alterado no dia 29/5 para acrescentar o nome do advogado Rafael Berthold.

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