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Opinião: Bom senso manda que Funai fique com Ministério da Justiça

23 de maio de 2019, 0h07

Por Andrea Prado, Fernando Vianna

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Por meio da Medida Provisória 870, de 1o de janeiro, o governo Bolsonaro propôs drásticas alterações na política indigenista brasileira. À resistência que geraram soma-se concreta e salutar perspectiva de que sejam agora revistas pelo Congresso Nacional.

O compromisso do Ministério da Justiça (MJ) com os direitos indígenas, realidade desde o governo Collor, cessaria. Esses direitos e, portanto, a Fundação Nacional do Índio (Funai), autarquia responsável pela sua proteção e promoção, vincular-se-iam já não ao MJ, mas ao recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Sairiam da Funai, indo para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), as competências de demarcar terras e manifestar-se em processos de licenciamento ambiental.

A proposição de um indigenismo dividido entre MMFDH e Mapa, com MJ apartado e Funai esvaziada de atribuições fundamentais, combina-se com inconstitucional promessa do presidente da República: não mais demarcar terras indígenas.

O discurso presidencial é contraditado dentro do próprio governo: a intenção não seria paralisar as demarcações, mas, transferindo-as da Funai ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sob supervisão da Secretaria de Assuntos Fundiários (Seaf)/ Mapa, conferir-lhes eficiência.

Contudo, o discurso de que “nem um palmo de terra indígena será demarcado” é também do titular da Seaf, como registrado em recente evento em Guaíra (PR), para cabal evidenciação da intenção de submeter direitos indígenas a interesses representados no Mapa.

No argumento falacioso, o fato de ser responsável pela demarcação de terras quilombolas tornaria o Incra mais indicado do que a Funai para cuidar da matéria no caso indígena. Ocorre, porém, que o Incra é hoje um órgão que precisa, tanto quanto a Funai, ser fortalecido para cumprir com suas próprias atribuições: das 3.212 comunidade quilombolas identificadas, apenas 44 obtiveram títulos da terra.
 

Falácia à parte, não há por que afastar o MJ da questão indígena. É esse o ministério responsável pela defesa da ordem jurídica e, em especial, dos bens da União – caso, precisamente, das terras indígenas, conforme conceito constitucional. Diferentemente do Mapa, trata-se de ministério neutro, constitucionalmente ligado não à ordem econômica, mas à ordem social, onde se inserem os direitos indígenas.

Do mesmo modo, os mais de cem anos de história de indigenismo representados pela Funai e seu antecessor (o Serviço de Proteção aos Índios) guardam técnicas, arquivos, métodos de trabalho e memória que não podem ser repartidos sem relevante perda de capital institucional.

Tudo isso suscita forte resistência. Críticas advêm de organizações indígenas e indigenistas, antropólogos, juristas, Ministério Público Federal, Conselho Nacional de Direitos Humanos e mesmo da relatora especial da Organização das Nações Unidas sobre direitos dos povos indígenas.

Em abril, os presidentes da Câmara e do Senado receberam lideranças da mobilização nacional indígena “Acampamento Terra Livre” para tratar da supressão das mal recebidas novidades na política indigenista. No início de maio, a Comissão Mista (senadores e deputados) responsável pela apreciação da MP 870 acolheu pleitos que nós, da Indigenistas Associados (INA), sintetizamos na campanha “Funai inteira e não pela metade”. No projeto para conversão da MP em lei (PLV) saído da Comissão, direitos indígenas voltam para o MJ e as competências relativas à demarcação de terras, para a Funai.

Garante-se a “Funai inteira” se, até 3 de junho, o PLV for aprovado pelos plenários de Câmara e Senado. Líderes das principais forças políticas representadas no Congresso parecem concordar que a questão é de bom senso: a proposta do governo desafia fundamentos constitucionais, aprofunda conflitos e implica desgaste para a imagem do Brasil.

Ademais, os dispositivos da MP 870 aqui comentados são objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.062. Seu relator, ministro Barroso, negou-se a conceder liminar, tendo em vista estar a matéria sob apreciação do Congresso. Mas registrou que o Supremo, atento ao desdobramento dos fatos, poderá intervir. Confirmar o texto do PLV, impondo um freio de arrumação à política indigenista do novo governo, é evitar etapa adicional no Supremo.