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"A corrupção é o inferno das empresas", afirma Walfrido Warde

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22 de maio de 2019, 10h06

Os efeitos da corrupção sobre o país são amplamente conhecidos. Já as consequências desse crime sobre as empresas que com ele se envolvem passam despercebidas da maior parte da população. O advogado Walfrido Warde, 45 anos, explica que se debruça sobre elas por duas razões. A primeira: o dever profissional — ele é titular de um dos escritórios brasileiros de contencioso societário que mais se projetou do país nos tempos recentes: o Warde Advogados. A segunda envolve o ambicioso projeto de encabeçar a produção de soluções jurídicas, judiciais e institucionais para o Brasil pós-operação "lava jato".

A conclusão de Warde com décadas de prática jurídica e a pesquisa surpreende: “A corrupção é o inferno das empresas”. Warde conclui que, no âmbito corporativo, esse crime costuma ser acompanhado de crises e conflitos societários. As empresas que cedem à tentação pagam alto preço com disputas que consomem lucros, capital, credibilidade, respeito dos funcionários e fornecedores. Flagradas, muitas têm dificuldade de se manter vivas.

À frente de uma banca que tem entre seus sócios advogados como Valdir Simão, ex-ministro do Planejamento, Leandro Daiello, ex-diretor da Polícia Federal, Caetano Vasconcellos, ex-conselheiro do Fundo Garantidor de Crédito, e o ex-desembargador Carlos Renato Ferreira, Warde explica à ConJur como o novo arcabouço formado pelas leis de Leniência, Anticorrupção e de Organização Criminosa obrigou a advocacia societária a lidar com questões como investigações internas nas empresas e com acordos de colaboração com as autoridades.

Também joga luz sobre como essas mudanças levaram a uma modernização da estratégia de defesa das empresas, que, agora, tem de incluir órgãos como Ministério Público, Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Banco Central, Controladoria-Geral da União (CGU) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

ConJur — Qual é a relação entre corrupção e contencioso societário?
Walfrido Warde — A corrupção é o inferno das empresas. Existe, claro, a corrupção envolvendo entes públicos e a outra, da qual pouco se fala, que é aquela que só envolve agentes privados. É compreensível que só nos lembremos da corrupção com o setor público porque não há empresas que prescindam do Estado. Todas mantêm alguma relação com entes estatais. Há inclusive as que se dedicam a obter contratos do Estado. A mera investigação de um ato de corrupção desencadeia uma série infindável de crises nas empresas, que inevitavelmente inflamam as relações entre sócios. Os conflitos ficam mais explosivos quando a investigação tem contornos espetaculosos, com buscas, apreensões, prisões cautelares e cobertura da imprensa. Em geral, o que se segue são disputas entre acionistas minoritários e o bloco de controle. Há também casos em que as disputas ocorrem entre os sócios e os administradores das empresas.

ConJur — Como começa o conflito entre os sócios ou entre os sócios e os administradores das empresas investigadas?
Walfrido Warde — Imagine que uma companhia teve o seu administrador preso no contexto de uma prisão cautelar. Ou que em sua casa ou, pior, na sede da empresa, tenha sido cumprido um mandado de busca e apreensão de documentos. Uma ação dessas desencadeia imediatamente uma crise de imagem. Essa crise de imagem, por sua vez, leva a uma crise cadastral. Ou seja, a uma restrição de crédito, que é a maneira elegante de dizer que bancos e financiadores usuais fecham as torneiras do dinheiro. Os fornecedores passam a exigir pagamento à vista. Os empregados tremem. Os clientes torcem o nariz. O negócio vai para o brejo.

ConJur — O que pode acontecer em seguida? O colapso da empresa?
Walfrido Warde — Não é incomum a Justiça decretar o bloqueio de bens e de parte do faturamento da empresa. Do dia para a noite, aquela organização, mais ou menos pujante, geradora de caixa e lucrativa, cai em desgraça. Seus sócios sabem que não terão dividendos e que sua companhia corre risco de morte. Temem responder pelos danos ao erário com seu patrimônio pessoal. É natural que, numa situação assim, comece dentro da empresa um processo de contenção da crise e de apuração de responsabilidades, que pode atingir os sócios ou os administradores. O conflito societário é quase uma consequência natural dessa sequência de fatos.

ConJur — Existe uma maneira de uma empresa lidar com tudo isso e sobreviver?
Walfrido Warde — O mercado vem tentando se adaptar a essas condições desde 2014. Está claro que é preciso atuar em novas frentes e dispor de novos instrumentos. A advocacia entendeu que não é possível trabalhar em casos assim sem realizar uma investigação interna na empresa. Essa investigação serve para dois objetivos. No que tange à defesa, é essencial para saber o que realmente aconteceu, formular a estratégia defensiva, cooperar com os órgãos de controle do Estado no âmbito de acordos de colaboração e de leniência. As investigações também são indispensáveis para apurar responsabilidades e para conter riscos no âmbito societário. É importante saber o papel que cada um tem no problema. O controlador sabia? E a diretoria? O conselho de administração notou algo estranho?

ConJur — Essas não são questões que devem ser tratadas pelas autoridades no momento da negociação dos acordos de colaboração e de leniência?
Walfrido Warde — Eu recomendo que a empresa esteja preparada quando começar a discutir acordos com autoridades. É preciso ter tudo claro: do diagnóstico ao que pode ser alcançado na mesa de negociação. Ainda há muita incerteza e subjetividade. A advocacia tem trabalhado no nível das instituições de Estado para que se pavimente um caminho objetivo e pragmático pelo qual as empresas possam virar a página. Essa é uma construção em curso.

ConJur — Mas os acordos de leniência estão sendo celebrados.
Walfrido Warde — É verdade, mas ainda com muita dificuldade. Há anos, aponto um problema que chamo de síndrome de múltiplas personalidades nos acordos de leniência. Vou dar um exemplo para ficar mais claro. Imagine uma instituição financeira de capital aberto, com ações negociadas na bolsa, envolvida com corrupção no âmbito da União e ilícitos à concorrência. Essa empresa, se quiser fazer leniência, terá de celebrar diferentes acordos com o Ministério Público, a Controladoria-Geral da União, o Cade, a CVM e o Banco Central. E todos esses acordos se sujeitam ao controle externo do Tribunal de Contas da União. Não é mole. E demora. E, enquanto demora, a instituição financeira corre sério risco quebrar.

ConJur — Quais são os litígios societários mais frequentes nesses casos?
Walfrido Warde — Ocorrem problemas distintos nas sociedades anônimas e nas limitadas. Nas anônimas, de grande porte, são frequentes ações de responsabilidade contra os administradores ou o controlador por violação de seus deveres e em busca de reparação de danos causados à empresa. Nas pequenas sociedades anônimas e nas limitadas o mais comum são ações de dissolução parcial propostas pelos sócios não envolvidos em corrupção. Em alguns casos, o objetivo é excluir o sócio faltoso. Em outros, determinar os haveres dos sócios inocentes que se retiram da sociedade. Nessas situações, são recorrentes também os pedidos de intervenção na administração, de suspensão de efeitos de reunião, de assembleia de sócios e outros conflitos bastante complexos sob o ponto de vista do direito material.

ConJur — Quando se trata de uma companhia aberta a situação se complica?
Walfrido Warde — Sim. Nesses casos a CVM deverá atuar. No início, por meio de inquéritos administrativos. Caso a sua equipe técnica entenda que ocorreram ilícitos de mercado, abrirá processos sancionadores. É possível que a Bolsa de Valores também se envolva, se constatar o descumprimento de seus regulamentos.

ConJur — Os minoritários podem entrar com ações contra a companhia, como fizeram os estrangeiros que detinham papéis da Petrobras vendidos na Bolsa de Nova York?
Walfrido Warde — Na verdade, o nosso sistema societário não admite ação direta de responsabilidade do acionista contra a companhia. A companhia busca ressarcimento do controlador ou do administrador faltoso e, desse modo, indeniza indiretamente todos os acionistas, por meio do valor do patrimônio líquido da ação. Nós também não temos, no Brasil, a figura da ação coletiva, à qual podem aderir os vários acionistas minoritários para buscar ressarcimento da companhia, em razão de uma conduta ilegal do controlador ou de administradores. Essas ações são bastante comuns nos EUA, ainda que consideradas altamente lesivas às empresas e à sua preservação.

ConJur — Mas temos visto ações e até mesmo arbitragens movidas por minoritários contra as companhias de que são acionistas.
Walfrido Warde — Sim, de fato há algumas. Penso que são tentativas de produzir, à força e contra a nossa lei acionária, uma corruptela do modelo americano. São, a meu ver, medidas que pretendem se aproveitar de uma espécie de tara revanchista, do sentimento comum de indignação que naturalmente existe entre nós para induzir uma ilegalidade e, por meio dela, privilegiar alguns acionistas em detrimento de todos e da companhia. Essas tentativas têm fracassado na Justiça. Acredito, deverão sucumbir também no foro arbitral. A bem da verdade, esses pedidos de instauração de arbitragem não deveriam sequer ter seguimento. São engendrações evidentemente infundadas, que não devem mesmo determinar a constituição do tribunal arbitral.

ConJur — Esses processos importam em grandes custos para as empresas. As que já foram atingidas por investigações e lutam para superar as crises que o senhor descreveu têm condições de suportar esses processos?
Walfrido Warde — No cenário que descrevi, há situações transitórias e outras definitivas. Os planos de integridade, que normalmente chamamos de compliance, vieram para ficar. Da mesma forma, vão ficar aquelas estruturas de detecção de ilícitos que já foram criadas e as que ainda serão. A maneira como advogamos, acredito, com todos esses instrumentos e situações novas, também mudou definitivamente. Por isso, todos nós temos que nos adaptar. Penso que, se somarmos ao combate repressivo, um combate às causas da corrupção, seremos capazes de diminuir em quantidade e em intensidade os problemas por que vêm passando as empresas. Essa é uma luta institucional a que me dedico pessoalmente já há quatro anos. Creio ter colaborado ainda que modestamente para que as autoridades entendam o problema e passem a olhá-lo sob outro ponto de vista.

ConJur — Como a dedicação a esse trabalho institucional se relaciona com sua atividade de advogado societário?
Walfrido Warde — As duas coisas estão intimamente ligadas. Tanto a operação "lava jato" quanto as leis de Anticorrupção e de Organização Criminosa produziram uma verdadeira revolução na disciplina das empresas. Aconteceu o mesmo no mercado de serviços jurídicos. Não é à toa que em países como os EUA os especialistas em contencioso empresarial estratégico andam de mãos dadas com as áreas de investigação e compliance. Por isso, expandimos nossa atuação para esse campo sob o comando de Valdir Simão, que foi ministro do Planejamento e da Controladoria-Geral da União, e de Leandro Daiello, que foi diretor-geral da Polícia Federal. Para dar ainda mais suporte, abrimos uma nova frente para o mercado financeiro, hoje comandada por Caetano de Vasconcellos, que foi conselheiro do Fundo Garantidor de Crédito (FGC).

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