Academia de Polícia

É preciso muita cautela com a palavra da vítima na justiça criminal

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

21 de maio de 2019, 8h00

Spacca
O ofendido (ou vítima) corresponde ao sujeito passivo (imediato)[i] do delito, isto é, ao titular do bem jurídico lesionado ou exposto ao risco de lesão pela prática criminosa de terceiro. Assim podem ser considerados a pessoa física (ex.: estupro) e jurídica (ex.: furto), bem como o próprio Estado (ex.: corrupção passiva) e até mesmo sujeitos tão indefinidos ou fluidos quanto a coletividade (ex.: crimes ambientais) ou a sociedade (ex.: crimes contra a paz pública).[ii]

A vítima tem uma disciplina bastante tímida na atual legislação processual e, no tocante à fase de investigação criminal, praticamente nula. O seu regramento mais detido, que compreende apenas um artigo de lei, pode ser encontrado no capítulo V do título VII do CPP ao tratar da prova processual penal, aplicado por analogia à fase de inquérito policial.

Em verdade, isso diz muito a respeito do lugar ainda reservado ao ofendido no sistema processual penal brasileiro, visto prioritariamente como meio de prova ou fonte de informação. Não seria exagero afirmar que infelizmente aquela pessoa física considerada vítima do crime segue importando muito mais ao modelo de persecução penal pelo que pode dizer a respeito do caso sob apuração do que pela violência experimentada contra si em virtude do fato criminoso.

Não sem motivo a crítica criminológica recupera as noções de vítima enquanto “duplas perdedoras”[iii], “notas de rodapé do processo criminal” [iv] ou persona estranha” ao duelo processual.[v] Alguém que ocupa uma “posição extremamente débil” no sistema de justiça criminal.[vi] Um sujeito absolutamente secundário, expropriado de suas faculdades, no modelo de persecução penal pública,[vii] gravado historicamente pelo “confisco dos conflitos (do direito lesionado da vítima)”[viii].

É justamente a esse sujeito, ou melhor, a essa fonte de informação que a autoridade policial vai recorrer, na maior parte dos casos, como uma de suas primeiras providências investigativas criminais. Em se tratando de crime praticado contra pessoa jurídica, caberá ao seu representante legal essa declaração. Por óbvio, naquelas hipóteses em que o sujeito passivo é coletivo (crimes vagos) ou, embora individualizado, a pessoa física (específica) não tenha sido localizada ou já se encontre falecida, a sua oitiva resta prejudicada.

Vale destacar que o ofendido, na estrutura do CPP de 1941, embora tenha um dever legal de colaboração com a instrução do caso,[ix] não fica submetido ao mesmo regramento aplicável à testemunha,[x] até mesmo porque, enquanto vítima, seria impossível considerá-lo juridicamente um terceiro desinteressado.[xi]

Quanto à oitiva, em si, uma observação preliminar bastante importante. Embora não haja qualquer elemento de informação que mereça crédito absoluto ou valoração privilegiada, inegável que as palavras da vítima “devem ser recebidas com grande reserva”.[xii] Afinal de contas, se o injusto penal realmente tiver ocorrido, trata-se de sujeito diretamente afetado pela conduta criminosa e, portanto, com marcas importantes no âmbito da subjetividade. Há, por óbvio, uma expressão do relato da vítima a partir de seus próprios desejos, muitas vezes inconscientes, aflorados pela experiência conflitiva (o fato criminoso) e a necessidade de reprodução histórica sob a forma de declaração no contexto da justiça criminal.

Segundo Lopes Jr., não se pode ignorar a relação da vítima com o caso penal, do qual faz parte, o que gera interesses (diretos) na persecução criminal, os quais podem se manifestar em diferentes sentidos, tanto para beneficiar o imputado (ex.: por medo) como também para prejudicar um inocente (ex.: vingança pelos mais diversos motivos). Além desse comprometimento material, existe, ainda, a disciplina processual, que desobriga o ofendido de prestar compromisso de dizer a verdade, abrindo-se a porta para eventuais mentiras impunes.[xiii] Nesse viés, há quem fale em "uma suspeita objetiva de parcialidade" quanto às declarações da vítima.[xiv]

A doutrina especializada aponta que a oitiva do ofendido é muito similar à do imputado, uma vez que está em jogo o mesmo interesse que o investigado/acusado, porém em sentido contrário. O mais comum de se imaginar é que, se alguém formaliza uma notícia crime ou apresenta uma acusação em juízo com imputação delitiva a terceira pessoa, manifestando interesse na persecução penal, justo porque busca a condenação do imputado. Logo não pode figurar como testemunha. Ademais, tem-se na vítima um protagonista dos fatos em questão. Por consequência, flagrante interesse na reconstrução narrativa do evento, o que já enseja por si só consideráveis riscos à instrução do caso penal, bastante semelhantes aos existentes por ocasião do interrogatório do investigado/acusado.[xv]

Por tudo isso, defende Hassan Choukr uma nova compreensão a respeito da oitiva do ofendido como fonte informativa excepcional da persecução criminal, com vistas a: i) "diminuir a exposição reiterada da vítima aos danos psicológicos do processo ou da investigação, bem como, em situações mais rumorosas, ao impiedoso assédio da mídia (vitimização secundária ou terciária)"; ii) "exigir dos responsáveis pela investigação/acusação que elevem seus padrões de colheita de vestígios, indícios, fontes e meios de prova".[xvi]

De fato, em busca de um novo lugar à vítima no sistema processual penal,[xvii] indispensável repensar a sua instrumentalização abusiva e exploratória, não apenas endoprocedimental (isto é: nos autos do inquérito policial ou processo penal), mas também no contexto social em geral. Por vezes, até mesmo situações aparentemente favoráveis às vítimas, em um primeiro momento, como a (hiper)valorização de seu relato em crimes às escondidas, podem funcionar como gatilhos de sobrevitimização, na medida em que acabam profundamente exploradas de forma vulgar (atécnica) e como recurso único de apuração.

Aliás, segundo Jordi Fenoll, nessas situações de clandestinidade delitiva, tendo a vítima como a única pessoa a presenciar os fatos, bastante recorrente em crimes contra a dignidade sexual (ex.: estupro), imprescindível a corroboração de seu relato diante de outros elementos informativos. Ademais, Fenoll sustenta que a forma mais apropriada de declaração da vítima em casos desse tipo, não apenas quando envolver menor de idade, seja por meio de um profissional especializado, isto é, um “psicólogo do testemunho”. Nessa linha, tem-se que o relato deveria ser tomado por meio de uma “entrevista cognitiva” entre o psicólogo e a vítima, com a produção, ao final, de um parecer a respeito do que fora observado, bem como das conclusões técnicas do profissional (psicólogo do testemunho) a respeito da credibilidade da declaração apresentada pelo ofendido.[xviii]

Há, por óbvio, outras interessantes propostas no campo da psicologia jurídica como a entrevista autoaplicada[xix] e os diferentes protocolos de entrevista estruturada para investigação de violência sexual infantil com destaque ao NICHD[xx], tudo com o fito de estabelecer ferramentas mais adequadas à coleta e valoração das informações prestadas pelas vítimas (e testemunhas) a partir da (problemática) memória humana[xxi]

De fato, é preciso rever as atuais práticas,[xxii] bem como promover alternativas concretas de redução de danos, a partir da conjugação entre sistemática processual acusatória e psicologia do testemunho, a fim de evitar os inúmeros (e aberrantes) erros investigativos e judiciais[xxiii] que assolam o modelo brasileiro.


[i] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. v. 1. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 293.

[ii] BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. 01 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 736.

[iii] CHRISTIE, Nils.“Conflict as Property”. British Journal of Criminology, v. 17(1), 1977, p. 1-15 apud GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Um Modelo Restaurativo de Censura como Limite ao Discurso Punitivo. 2014. 230 f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014, p. 27.

[iv] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008, p. 31 apud GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Um Modelo Restaurativo de Censura como Limite ao Discurso Punitivo. 2014. 230 f. Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014, p. 27.

[v] CASARA, Rubens R. R.; MELCHIOR, Antônio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro: dogmática e crítica. v. I: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 402.

[vi] HULSMAN, Louk. Alternativas à Justiça Criminal. In: PASSETTI, Edson. Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004, p.46.

[vii] MAIER, Julio. Derecho Procesal Penal: parte general: sujetos procesales. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p. 582, 583.

[viii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito penal. v. 1. 03 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 385.

[ix] Segundo Bento de Faria, as declarações do ofendido não seriam propriamente “meio de prova, mas um auxílio prestado à justiça” (FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. v.1. Rio de Janeiro: Livraria Jacintho, 1942, pp. 259-260). Sublinhe-se, ainda, que, nos termos da legislação em vigor, a vítima que, regularmente intimada para prestar declarações, deixar de comparecer sem motivo justo, poderá ser conduzida (coercitivamente) à presença da autoridade (art. 201, § 1º, do CPP).

[x] O ofendido, ao contrário da testemunha, em geral, não presta compromisso de dizer a verdade e, portanto, não pode ser alcançado pelo delito de falso testemunho (art. 342 do CP). A depender do caso, no entanto, essa falta de verdade do ofendido pode dar ensejo ao crime de denunciação caluniosa (art. 339 do CP).

[xi] Há, inclusive, uma diferença terminológica quanto à rotulação dessas oitivas no modelo brasileiro. Diz-se tecnicamente que o ofendido presta “declaração” (art. 201, caput, CPP) enquanto a testemunha presta “depoimento” (art. 204, caput, CPP).

[xii] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 317.

[xiii] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 09 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 649.

[xiv] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Comentários. Da Prova. In: ___________________; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique (Coord.). Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 444.

[xv] FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires: EditorialBdeF, 2012, p. 242.

[xvi] CHOUKR, Fauzi Hassan. Iniciação ao Processo Penal. 01 ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 93.

[xvii] BARROS, Flaviane de Magalhães. A Participação da Vítima no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

[xviii] FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires: EditorialBdeF, 2012, p. 243.

[xix] Registre-se, no entanto, que, segundo o próprio autor, “a SAI© não parece apropriada para vítimas de crimes sexuais ou muito violentos, já que é um meio muito impessoal de entrevista para casos tão graves” (PINTO, Luciano Haussen; STEIN, Lilian Milnitsky. Nova ferramenta de entrevista investigativa na coleta de testemunhos: a versão brasileira da Self-Administered Interview©. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 1, p. 110-128, 2017. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/nova-ferramenta-de-entrevista-investigativa-na-coleta-de-testemunhos-a-versao-brasileira-da-self-administered-interview/>. Acesso em: 20 maio 2019).

[xx] WILLIAMS, Cavalcanti de Albuquerque et al. Investigação de suspeita de abuso sexual infantojuvenil: o protocolo NICHD. Temas em Psicologia, v. 22, p. 415-432, 2014. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2014000200013&nrm=iso>. Acesso em: 20 maio 2019.

[xxi] CECCONELLO, William Weber; ÁVILA, Gustavo Noronha de; STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir) repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão a partir da psicologia do testemunho. UNICEUB. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 1058-1073, 2018. Disponível em: < https://www.rdi.uniceub.br/RBPP/article/view/5312>. Acesso em: 20 maio 2019.

[xxii] Confira, a esse respeito, a seguinte pesquisa nacional: STEIN, L. M.; ÁVILA, G. N. Avanços científicos em psicologia do testemunho aplicados ao reconhecimento pessoal e aos depoimentos forenses. Brasília: Secretaria de Assuntos Legislativos, Ministério da Justiça (Série Pensando Direito, No. 59), 2015. Disponível em: <http:// pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf>. Acesso em: 20 maio 2019.

[xxiii] Quanto aos dilemas probatórios ligados à memória humana e os erros do sistema brasileiro de persecução criminal, disponíveis na internet as excelentes palestras de Janaina Roland Matida e Antônio Vieira no I Seminário Regional do IBADPP (https://www.youtube.com/channel/UCtQzzjpXxuUv-CyT8yJccDw).

Autores

  • é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação. Contato: www.leonardomarcondesmachado.com.br

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