Estado da Economia

Reforma tributária não pode ignorar diferenças entre as regiões

Autor

  • José Maria Arruda de Andrade

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP) livre-docente e doutor pela mesma instituição professor do programa master de pós-graduação em Finanças e Economia da Escola de Economia de São Paulo Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

19 de maio de 2019, 10h50

Spacca
Como exercício intelectual, o design de um novo sistema tributário – ou de reformas tributárias parciais, mais simples, mais lineares, sem tantos atores com competência tributária e sem exceções é sedutor.

São tantos, antigos e notórios os problemas de nosso modelo tributário, que difícil seria não ter alguma opinião crítica reformadora.

Ademais, toda reflexão crítica sobre nossa questão financeira deve ser incentivada, ainda mais quando reúne ilustres estudiosos de lado a lado.

Nosso texto alerta, contudo, para o risco de reformas parciais que, em nome da simplificação e da uniformidade, possam ter um efeito desastroso sobre uma realidade que insiste em não se comportar como uma sociedade homogênea dos manuais de economia.

Preocupa-nos, especificamente, sem entrar no mérito de qual projeto e em quais termos será efetivamente votado, as propostas de tributo federal ou nacional que eliminem ou esvaziem incentivos regionais sem qualquer preocupação de substituição fiscal consistente. Ainda mais quando as razões parecem ser de natureza quase preconceituosa, já que não precedidas por estudos consistentes.

Em linhas gerais, as propostas pretendem criar um grande tributo sobre o consumo (ainda que denominado valor agregado ou bem e serviços), em que qualquer isenção setorial ou regional seria vedada.

Reformas parciais não atuam no vácuo, elas interferem em sistemas constitucionais concretos, de países específicos e sobre a vida de famílias reais. A Constituição brasileira não fixa apenas regras de competências e de limites individuais, ela prescreve objetivos audaciosos de forma sistemática e teleológica.

Relevante para a compreensão de nossa política econômica constitucionalizada é o que vem disposto no artigo 3º do texto maior:

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Perceba-se que, ao lado da liberdade – sempre tão lembrada –, há a preocupação com a justiça e, realce-se, com a solidariedade.

Outro componente importante desse dispositivo, que encontrará ecos em outros locais do texto normativo – notadamente na Ordem Econômica –é a preocupação com o desenvolvimento nacional, aqui entendido como algo muito mais pretensioso do que o mero crescimento econômico, já que inclui preocupações estruturantes de longo prazo, necessárias em países como o Brasil.

E aqui temos o tema principal de nossa preocupação: a eleição, como objetivo fundamental da República Federal do Brasil, da erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais. Não há muito espaço para dúvidas cerebrinas de que o texto normativo impõe essa tarefa primordial de atuar decisivamente para buscar a redução das desigualdades regionais.

O grande problema das coisas simples é que elas, em geral, não resolvem as situações complexas, e, o pior, camuflam a verdadeira extensão dos problemas, isso quando não vendem a ideia de que, ao se resolver parte desse problema, os estragos realizados (como a revogação generalizada de incentivos fiscais, por exemplo) podem ser resolvidos em um segundo momento político (outra reforma?) ou economicamente (algum auxílio assistencial qualquer, sem qualquer caráter estruturante ou um grande bolsão de empregos não qualificados?).

Modelos de tributação que partem de ideias sedutoras simples, mas que pretendem “rodar” em realidades complexas, revelam grande despreocupação com a realidade brasileira, ainda marcada por subdesenvolvimento em todas as suas regiões, além da, ainda mais acentuada, desigualdade regional (norte e nordeste em situação desfavorecida).

A tributação sobre consumo – ainda que com outros nomes – já é regressiva por si só. A sedução pela simplicidade e concentração federal não parece passar pelo crivo dos desafios históricos de nosso país.

A busca pela superação do subdesenvolvimento regional não surge de teorias em voga, mas da necessidade de reflexão sobre a realidade brasileira, situada, histórica e espacialmente, em região periférica do capitalismo, e com uma extensão geográfica tão relevante, que acaba por reproduzir, internamente, suas próprias desigualdades.

Alguns dos incentivos fiscais que visam a objetivos regionais são instrumentos de implementação de políticas econômicas de longo prazo e de difícil execução. Uniformidade e simplicidade nem sempre funcionam quando se tem como objetivo fundamental a necessidade redistributiva de perseguir a redução dessas desigualdades.

A questão regional demanda uma análise que não é apenas econômica, idealizada e simples. Há a necessidade de se refletir sobre as estruturas sociais locais das regiões de difícil desenvolvimento e o componente econômico é apenas uma das variáveis

Propostas simplistas que interfiram em determinadas políticas, como a do incentivo da Zona Franca de Manaus (aqui considerada como escolha constitucional e não como mera renúncia), afrontam os objetivos constitucionais que respeitam a nossa realidade não homogênea.

E há um duplo problema aqui. O primeiro, o de tentar compreender e criticar incentivos em análises superficiais de custo e benefício, como se essa relação devesse ser sempre ótima, como se a superação de problemas estruturais de longo prazo fosse ser resolvida de forma direta, apenas com uma única fonte de custeio.

O segundo, o de achar que a mera revogação de uma realidade que produziu alguns resultados significativos possa ser implantada sem maiores consequências. Como se a população local – "eles, os outros" – pudessem se virar em busca de uma forma mais eficiente qualquer de sobrevivência.

Por fim, vale lembrar que muitas das críticas expostas a algumas das políticas aqui mencionadas partem de dados quantitativos imprecisos, como aqueles apontados como sendo o valor total da renúncia. A inclusão de meras diferimentos de arrecadação como renúncias tributárias mostra como estamos longe de uma visão mais clara dos componentes relevantes de nosso orçamento.

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  • Brave

    é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede & Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

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