Opinião

Perp walk: a exposição do preso e o efeito penal sedante

Autores

  • Valber Melo

    é advogado professor de Direito Penal e Processual Penal doutor em Ciências Jurídicas e Sociais especialista em Direito Penal e Processual Penal especialista em Direito Penal Econômico especialista em Direito Público autor de livros e artigos jurídicos e conselheiro nacional da Abracrim-MT.

  • Filipe Maia Broeto

    é advogado criminalista professor de Direito Penal e Processo Penal mestrando em Direito Penal Econômico (Unir-ESP) e Direito Penal Econômico e da Empresa (UC3M-Esp) especialista em Direito Penal Econômico (PUC-MG) e autor de livros e artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior.

19 de maio de 2019, 6h21

O presente texto tem por escopo trazer algumas considerações, ainda que singelas, sobre o “fenômeno” do perp walk, termo que faz referência à prática policial de expor, indevida e intencionalmente, o suspeito/acusado/réu preso de forma sensacionalista, em local público, visando à potencialização dos efeitos de divulgação e propalação da notícia, que deve repercutir, instantaneamente, no “mundo todo”, por meio de lives, stories e tweets.

Constata-se, presentemente, sem grande esforço, que tal prática traz em si um insofismável viés midiático e populista, característico de “Estados de Direito” nos quais o preso (provisório ou definitivo) é, antes de um sujeito de direito, um mero objeto, um prêmio franqueado às autoridades responsáveis pela captura do indivíduo.

A pena, por sua vez, com seus vieses sancionatórios, mas também ressocializantes, é totalmente marginalizada, dando lugar apenas à satisfação coletiva da estigmatização gerada pela exposição do indivíduo, que, não raras vezes, antes mesmo de haver processo penal deflagrado em seu desfavor, já se encontra (pré)julgado e (pré)condenado pelos “juízes sociais”.

É bem de ver que os defensores dessa prática afirmam que a intenção do perp walk é garantir à sociedade o direito à informação, trazendo, inclusive, maior credibilidade ao Poder Judiciário por, supostamente, levar a mensagem de que ninguém escapa da Justiça.

De fato, por ser uma prática, na maioria das vezes, utilizada nas prisões envolvendo os chamados crimes de colarinho branco, não restam dúvidas de que a exposição dessas imagens pela mídia produz, ainda que simbólica e momentaneamente, um certo clima de segurança, mesmo que o acusado seja ao final da persecução criminal considerado inocente — informação essa que não é tão divulgada quanto a prisão.

Nada obstante, para além do direito à informação, pertencente à sociedade, referido “método” revela, ainda, um inegável “efeito penal sedante”[1], o qual transmite uma ideia de que o investigado/acusado não restou impune de sua prática delitiva, ainda que essa dita punição venha, primeiramente, da mídia, num momento totalmente equivocado em que sequer há processo criminal instaurado, mas cuja condenação se antecipa como vindoura e certeira.

Assim ocorre porque, numa sociedade fluída — típica de uma “modernidade líquida” —, consumista e de certa forma invejosa, em que o sucesso de outras pessoas incomoda ou até mesmo passa a ser visto como ilícito, a notícia de que o “vizinho-rico” está sendo processado por lavagem de dinheiro, por exemplo, soaria até como um conforto para o condômino que não alcançou o mesmo status financeiro. Vale dizer, seria um afago no sentido de que o honesto não prosperou por ser honesto.

Deveras, não se pode negar que o perp walk, como meio de exposição do preso, independentemente do título da prisão, tem mais efeitos sociais e psicossociais do que jurídicos propriamente ditos, na medida em que o seu ápice é justamente a efêmera e devastadora exibição do preso — visto como mero objeto — para a mídia nacional e internacional, o que fornece a falsa sensação de que pessoas com comportamentos contrários à lei estão sendo “punidos” e que a engrenagem jurídico-repressiva está “a todo vapor”, quando, em verdade, bem se sabe que a prisão deve ser implementada, sem qualquer contentamento ou exaltação, somente após a formação da culpa, que se dá, evidentemente, ao término do processo.

É de se reconhecer, também, o chamado “efeito dúplice”, intrínseco ao perp walk, percebido com mais nitidez nos últimos anos, por meio do qual ao mesmo tempo que a prática gera, por um lado, uma devastação antecipada — e muitas vezes indevida — para o suspeito/investigado/acusado/réu (primeiro efeito), “agrega”, por outro, “valor público” às autoridades exibicionistas e populistas (segundo efeito).

O segundo efeito, infelizmente, tem sido notado com frequência no Brasil, uma vez que diversas autoridades, no exercício de suas funções públicas, têm se valido da exibição de imagens não autorizadas dos presos como “trampolim” para a satisfação das suas vaidades pessoais, como forma de se tornarem nacionalmente conhecidas como agentes atuantes ou até mesmo — e nos casos mais deploráveis — como meio de divulgação do próprio nome, vislumbrando cargos políticos ou ascensão na carreira.

Nesse delicado contexto, deve-se acrescer o fato de que, hodiernamente, a modernidade dos meios de comunicação agrava sobremaneira a problemática, porquanto, para além de difundir com rapidez e eficiência as notícias pelo mundo inteiro, as “eterniza”, haja vista que, uma vez inseridas na internet, estas podem ser facilmente acessadas, mesmo que já tenham sido exibidas há muito tempo e mesmo que o fotografado tenha sido absolvido (a imagem em que aparece algemado, porém, permanecerá “eternamente” na rede mundial de computadores).

Em nível internacional, cita-se, por todos, a título de exemplo, o emblemático caso de Dominique Strauss Khan, diretor-gerente do FMI, cuja foto, divulgada na internet, o expõe saindo algemado e escoltado por dois policiais da delegacia do Harlem, em Nova York[2].

No Brasil, por sua vez, há casos aos montes em que se nota o demasiado emprego do reprovável perp walk. Veja-se, nesse sentido, a imagem do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral — de ampla divulgação na internet — algemado pelos pés e pelas mãos, conduzido por um grande número de policiais encapuzados, por ocasião da operação "lava jato"[3][4]. Na mesma esteira, assistem-se a episódios nos quais acusados são exibidos como verdadeiros “troféus” pela mídia, a saber: José Dirceu[5], Luiz Inácio Lula da Silva, cuja prisão foi divulgada em tempo real nos mais variados canais de comunicação[6], e outros mais, a nível nacional.

Valem-se, alguns (muitos), da divulgação da imagem de pessoas investigadas/acusadas/processadas como inescrupuloso meio de pessoal e/ou institucional, em franca violação aos princípios que devem reger as atividades estatais, notadamente a legalidade, moralidade e impessoalidade.

A propósito, bem sintetiza a reprovabilidade dessas ações as palavras da ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, para quem:

“Vivemos, nos tempos atuais, o Estado espetáculo. Porque muito velozes e passáveis, as imagens têm de ser fortes. A prisão tornou-se, nesta nossa sociedade doente, de mídias e formas sem conteúdo, um ato de grande teatro que se põe como se fosse bastante a apresentação de criminosos e não a apuração e a punição dos crimes na forma da lei. Mata-se e esquece-se. Extinguiu-se a pena de morte física. Mas instituiu-se a pena de morte social. O ser humano não é troféu para ser apresentado por outro, inclusive com alguns adereços que podem projetar ainda mais uma situação vexaminosa e de difamação social” (Habeas Corpus 91.952/SP).

Nesse trágico panorama, em que se deturpam não só os fins do Direito e da pena, esta como consequência jurídica do injusto penal, busca-se compreender qual o — real — interesse social tutelado nas fotos de suspeitos sendo conduzidos algemados, fortemente escoltados para uma delegacia de polícia, quando é perfeitamente possível que se veicule a informação de outra forma, respeitando, inclusive, os direitos à privacidade, à honra, à imagem, à presunção de inocência daquele que não precisa estar na mira das câmeras e nas telas dos televisores.

A conclusão a que se chega é apenas uma: pouco valor têm os direitos do “inimigo”. O que importa, mesmo, é a busca pelo sensacionalismo, típico de um Direito Penal populista, que visa o exibicionismo de resultados rápidos e “efeitos sedantes”, ainda que meses ou anos após esses “resultados” venham a ser destruídos judicialmente — seja por ausência de provas, seja por nulidades decorrentes do açodamento na persecução penal. Quer-se saber do “momento”, “do hoje”, “do agora”, e, para esse fim, inexistem dúvidas de que o perp walk tem o condão de chamar muito mais atenção do público do que uma nota informativa em um jornal.

Por fim, não se pode perder de vista que os mesmos que se beneficia(ra)m com essas práticas violadoras de direitos e garantias fundamentais (imagem, intimidade, honra), valendo-se da exploração da imagens de pessoas que estavam sob a custódia estatal, podem, do ponto de vista jurídico, ser perfeitamente demandados em ações de caráter indenizatório, na medida em que a própria Constituição Federal, de 1998, em seu artigo 5º, inciso V, é clara ao garantir o direito à indenização, por parte daquele que sofre o dano, seja ele material, moral ou à imagem[7].


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